Tania Salete (RJ) - CE
taniasalete@gmail.com
“O mais importante do
bordado
É o avesso...
O mais importante em mim
É o que eu não conheço
O que de mim aparece
É o que dentro de mim Deus tece...
É o segredo do ponto
O rendado do tempo
É como me foi passado o ensinamento”
É o avesso...
O mais importante em mim
É o que eu não conheço
O que de mim aparece
É o que dentro de mim Deus tece...
É o segredo do ponto
O rendado do tempo
É como me foi passado o ensinamento”
J.Vercilo
Introdução:
O bordado é
um oficio milenar e intergeracional, sendo a arte de ornamentar os tecidos com
fios diferentes, coloridos, formando desenhos. A palavra bordar etimologicamente
também quer dizer “seguir junto à borda, orlar, margear, delimitar as
margens". O ato de bordar provém da tecelagem e há registros desta
atividade na pré-história, quando se tecia peles de animais para vestimentas,
usando ossos como agulhas.
Nas antigas civilizações que se
desenvolveram as margens do Rio Eufrates, a arte do bordado foi muito
cultivada. Os romanos descreviam o bordado como “pintura de uma agulha”. Em
alguns textos bíblicos, no Velho Testamento, encontramos referências ao bordado
como atividade manual importante e artística.
Na idade Média, principalmente, o bordado
estava vinculado à nobreza e religiosidade, alguns deles confeccionados em
conventos para ornamentar e diferenciar vestimentas comuns daquelas usadas em
cerimônias especiais. Só mais tarde adquiriu status de lazer e ocupação do
tempo livre, principalmente para as mulheres das classes mais elevadas. Assim
sendo, ampliou-se a variedade e foi possível criar figuras, desenhos,
contornos e aplicação de cores e pontos variados.
Historicamente, o bordado estava
atrelado ao universo feminino e, durante décadas, foi disciplina obrigatória e
inseparável do currículo de uma “boa esposa”, assim como cozinhar, tricotar,
cuidar dos filhos e da casa. A despeito do estigma, o bordado atualmente vem
ganhando força e outros significados, ocupando novos espaços, conquistando
públicos de diferentes culturas e ocupações, inclusive servindo de estudo e
tese no meio acadêmico, além de ser utilizado como técnica terapêutica, como no caso da
Arteterapia.
Como ferramenta de
conscientização política, o bordado é reconhecido como possibilidade de fonte de
renda familiar, dando maior autonomia às mulheres, ou como instrumento de
denuncia de condições abusivas e repressivas , como caso das mulheres no Chile,
onde existem as Arpilleras, técnica de bordado
utilizada para denunciar as violações cometidas pela ditadura militar no país, na
época do ex Presidente Pinochet. As Arpilleras foram criadas por um grupo de
bordadeiras de Isla Negra, no litoral chileno, que costuravam à mão imagens
feitas de retalhos e distribuídas
clandestinamente. Esta mesma técnica que relata, através do bordado, as
angústias, dores, a vida e o cotidiano de uma comunidade, servirá
de fio condutor para o desenvolvimento do documentário “Arpilleras: bordando a resistência”,
sobre pessoas atingidas por barragens no Brasil. (CLIQUE AQUI)
Da fragmentação à desfragmentação – O Bordado na
Arteterapia: um relato pessoal
Em Arteterapia, a construção do
símbolo significa concretização do “não-dito”, ou daquilo que as palavras não
alcançam. Fonseca (2015), afirma que:
“Ao
olhar para o símbolo, o indivíduo adquire a capacidade de olhar seu sentimento
sob outra dimensão e com isso elabora outros tantos sentimentos que podem
acolher essa dor, aceita-la para depois transformá-la como parte de seu
desenvolvimento, de sua superação”. FONSEA
Em um tempo
recente, foi preciso mudar toda organização da minha vida: familiar,
profissional, relacional, em função de transferência para outro estado. Apesar
do entusiasmo pelas novas possibilidades que um lugar diferente pode causar,
lidar com a realidade desta mudança repentina não foi fácil. Passados os
primeiros momentos, fui envolvida por sentimentos ambíguos e em pouco tempo,
sem a estrutura anterior que me permitia alguma segurança emocional, percebia-me
fragmentada, partida e sem chão ou raízes. Literalmente, parecia ter sido “desarraigada”
da vida.
Buscando o devido
acolhimento junto à Arteterapia, o bordado surgiu como um caminho natural para
iniciar o processo de arraigamento ou enraizamento. Esta possibilidade de lidar
com linhas coloridas, bastidor, agulha, tesoura, vários pontos, me remeteu ao
passado quando minha avó me ensinava várias atividades manuais, como bordado,
tricô e crochê, “para sossegar essa
menina um pouco”, dizia ela.
Assim como as demais técnicas
artísticas abordadas na Arteterapia, o bordado não está associado à questão da
estética, e sim ao que representa como função simbólica para indivíduo. Neste
contexto específico, para além de suas funções próprias como a possibilidade de
escolha, atenção, minuciosidade, delicadeza, ritmo, gradualidade,
experimentação, lidar melhor com erro, pelo fazer, desfazer, refazer, o bordado teve a função de preencher os
espaços, ligar os pontos, seguir um
risco, um caminho traçado, pelo desenho escolhido (que já é um símbolo) e,
principalmente, dar contorno ao trabalho, à vida. A atividade uma vez iniciada, conscientizou-me
de que era preciso fixar bem os pontos, que não poderiam ser nem frouxos ou
apertados demais e equilíbrio foi a meta a conquistar. Fui automaticamente absorvida pela sensação de
introspecção e concentração por aquele trabalho.
Pouco a pouco, ponto a ponto, o sentimento
anterior foi dando espaço para novas percepções como no processo de
“desfragmentação”. Desfragmentar é “ação
de reorganizar, juntar arquivos fragmentados em um só local do disco rígido”.
Interessante que essa palavra advinda da informática, rima com individuação, auto avaliação, construção e
integração.
Conclusão:
O bordado manual estimula a
criatividade, eleva os níveis de concentração, tranquilidade mental, estimula a
ações equilibradas e amplia a plenitude,
o prazer, além de outros benefícios. Fonseca, cita que “...legitimar o bordado como recurso arteterapeutico é trazer para seu
contexto inúmeras possibilidades de representações simbólicas. Ao tecer, o paciente
entra em contato com sua ancestralidade, suas crenças e sua história...”.
E pensando na atividade com as
mãos, como instrumentos de arraigamento, Philippini afirma:
“...mãos ferramentas de muitos bordados, delicadas
tramas de afetos, desejos e emoções. No
processo arteterapêutico, ao colocá-las em movimento, vamos redescobri-las como
sensíveis instrumentos de captação do mundo... É preciso ativar as mãos como
instrumentos terapêuticos em suas inúmeras possibilidades de execução, pois a
cada transformação externa com os materiais expressivos, analogamente são
geradas transformações internas. E neste universo de mãos e materialidade
construímos nossa autonomia expressiva e ativamos nosso processo criativo,
deste modo, estas mãos são instrumentos potenciais de germinação e construção.”
PHILIPPINI
Diante desta experiência pessoal,
ficaram claros para mim os novos traços e riscos que podem surgir neste novo
espaço que agora transito. Conhecer
novos costumes, novos cheiros, sabores, ter outros amores, dentre eles, o
bordado. Afinal, estar na terra de tantas bordadeiras é dar asas à imaginação, à
criatividade e à vida.
1 Arpilleras: atingidas por barragens bordando
a resistência (teaser)
https://www.youtube.com/watch?v=U1Q-36to_uI
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referência Bibliográfica:
PHILIPPINI, Angela
- Cartografia da Coragem, 2008 - 4ª
edição, Ed.Wak
Linguagens e materiais expressivos em
arteterapia, 2009, Editora Wak
FONSECA, Erica L - O Bordado como representação simbólica no
atendimento arteterapeutico
Artigo
Arterevista, número 5, 2015
VASCONCELOS,
Isabella Karim M F – Tese de Mestrado em Historia -UFRPE - Uma prática, um bem cultural : uma história sobre o
bordado na cidade de Passira-PE, Fev 2016
Sobre a autora: Tania Salete
Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.
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