segunda-feira, 10 de outubro de 2022

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TARÔ E ARTETERAPIA: A RODA DA FORTUNA E AS MANDALAS

Por Mercedes Duarte - RJ

duarte.mercedes@gmail.com

@mercedesdu.arteterapia

@baoba.arteterapia

Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar dessas imagens arquetípicas encontradas nas cartas de tarô. Nesse artigo, trago o Arcano X, a Roda da Fortuna, em diálogo com as mandalas. Aqui não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o que seria inalcançável, tampouco explanar com profundidade a diversidade das concepções simbólicas acerca das mandalas. O escopo é trazer um recorte que privilegie as afinidades entre o arquétipo e algumas das concepções acerca dos círculos e mandalas. 

O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para as reflexões do fazer arteterapêutico e a ampliação de seu repertório.

 A Roda da Fortuna – Arcano X


Tarô de Marselha

Tarô de Waite e Smith

         A Roda da Fortuna frequentemente está associada ao destino, às suas leis e engrenagens. Vemos na carta do tarô de Marselha dois animais que parecem estar presos à roda. Enquanto um sobe o outro desce. Há uma manivela que foge ao enquadramento. E tais seres não possuem acesso a ela. E quem o teria? Temos uma incógnita. Os dois seres estariam, portanto, submetidos aos movimentos da roda, desprovidos de direcionamento consciente. Poderíamos considerar aqui as leis de causa e efeito, ação e reação, vividas de maneira instintual, inconsciente, dado o caráter animal dos seres presentes, ainda que com vestes humanas. 

No alto da roda temos uma espécie de esfinge empunhando uma espada. Seria o guardião de um tipo de transcendência que nos leva a um lugar mais alto, seguro, menos ao sabor das inconstâncias, dos altos e baixos, da roda da vida? A esfinge, como é sabido, pressupõe um enigma a ser desvendado para que não sejamos devorados. 

No tarô de Waite e Smith os quatro elementos da natureza aparecem representados  nos quatro cantos da carta. De acordo com Carl Jung (2002) o self frequentemente é representado pelos quatro cantos do mundo, ou quatro elementos, com o centro de um círculo dividido em quatro.

 Nessa carta ainda que todos os seres estejam alados, o touro pode estar associado à terra, o leão ao fogo, a ave ao ar e o anjo à água (JODOROWSKY & COSTA, 2004). Terra, fogo, ar e água são elementos que também falam das dimensões humanas, respectivamente, material, espiritual, mental e emocional. Assim, nessa imagem arquetípica, teríamos contidos os elementos que nos compõe e a possibilidade de realização da integração e equilíbrio de tais elementos, seja por meio do desvelamento do enigma da esfinge e/ou pelo encontro da perspectiva do eixo da roda que, além do topo que parece ser estável, representa o centro de equilíbrio, lugar onde se tem sustentação. 

Os círculos, as mandalas e a roda da fortuna 

Carl Jung (2002) recorreu as imagens dos círculos, ou mandalas, para designar a representação simbólica da psique, ou seja, do próprio self. Esse que ao mesmo tempo é o centro da psique e sua totalidade. Símbolo da completude, o círculo, ou a mandala, “teria esse significado de lugar sagrado, um tememos para proteger o centro da personalidade (...), pois impede que ela seja atraída para fora ou que seja influenciada pelo mundo exterior” (SHARP, 1997, p.154). 

Jung introduziu então o termo mandala -  palavra de língua sânscrita que significa “círculo”, sendo também entendida como o “círculo da essência” (GREEN, 2005) - na psicologia moderna, pois descobre que essas imagens aparecem espontaneamente em nossos sonhos em épocas de estresse, configurando uma forma de compensação de conflitos internos e externos (NICHOLS, 1997). É nesse cenário que a psiquiatra brasileira Nise da Silveira passa a ser interlocutora de Jung quando identifica várias mandalas produzidas espontaneamente por seus clientes com diagnóstico de esquizofrenia. 

Outro conceito de Jung importante para compreendermos essas imagens, é o de individuação. O processo de individuação, grosso modo, é aquele que engendra a realização do si mesmo, do self, e que se definiria pelo descentramento do ego, em favor da realização da totalidade da psique. Isso pressuporia a integração dos diferentes aspectos que compõe a psique, como é o caso da dimensão inconsciente. A individuação é, portanto, definida “pelo processo de diferenciação psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual” (SHARP, 1997, p.90). E aqui devemos enfatizar que se trata de um processo, sempre em movimento, um estado constante de vir a ser. 

De acordo com o Léxico Junguiano (1991) de Daryl Sharp “o processo de individuação, levado a termo de modo consciente, conduz à realização do self como uma realidade psíquica maior do que o ego. Assim, a individuação é, em essência, diferente do processo de simplesmente tornar-se consciente” (p.92). 

Nesse sentido podemos considerar duas características, interrelacionadas, do círculo que podem dialogar com a imagem arquetípica da roda da fortuna. A primeira se relaciona aos “altos e baixos” possibilitados pelo movimento da roda, que podem dizer dos “altos e baixos” de que sofre o ego, sobretudo quando ele ocupa um lugar central na psique, em detrimento da abertura para a assimilação de outras dimensões psíquicas. O outro aspecto da roda, ou do círculo, pode se referir à ideia de integração, ou ao processo de individuação, que oportunizaria a experiência de totalidade da psique, o que pode conversar com o enigma da esfinge: o que eu deveria desvendar que possibilitaria essa experiência de totalidade, e/ou me traria espaço para conexão com o meu eixo, me tornando mais  íntegro/a e protegido de ser devorado pela roda da vida, pelas influências externas?  Como vemos, esses dois aspectos da roda apresentados trazem a relação entre o “dentro e fora”, sem a qual o processo de individuação não seria possível. 

Em síntese, a roda da fortuna nos faz experimentar opostos, consciente e inconsciente, expansão e retração, integração e desintegração, que em relação produzem movimento e configuram um sistema de constante transformação. Assim, “se observarmos uma roda girando, veremos como esses opostos funcionam juntos - como o amplo movimento do aro externo, que é a sua raison de’etre, seria impossível sem a estabilidade do centro fixo” (NICHOLS, 1997, p.190).

 Proposta arteterapêutica

         A proposta arteterapêutica levou em consideração a experiência de situações desafiadoras que frustram projetos e expectativas e a possibilidade de reestruturação, reorganização e centramento frente ao que ruiu. Pequenas folhas de papel, de cores diferentes, representaram tais projetos e expectativas, e a ação de rasgá-la em pequenos pedaços representou a roda da vida que passa, muitas vezes, frustrando os projetos cultivados. O segundo passo foi construir uma mandala com esses fragmentos de papel, buscando a organização e a ideia de integração da psique.

 Abaixo temos algumas imagens das mandalas produzidas:          


  Gira Vida


Roda da Vida


Árvore da vida

Algumas participantes trouxeram relatos a respeito de situações disruptivas que viveram, e sobre ter sido gratificante a sensação de assimilação e reorganização do que foi vivido através da oficina. Outras participantes enfatizaram acerca do vislumbre de seus centros, eixos de estabilidade internos, especialmente no momento da visualização dirigida realizada ao longo da oficina.

Esses relatos, e a imagem da Roda da Fortuna, vem no sentido de corroborarem a importância do fortalecimento do centro que nos dá sustentação para a abertura do “vir a ser”, dos processos de desenvolvimento pessoal, que podem ser representados por espirais, dando a ideia de processo e movimento, como vemos em algumas das imagens produzidas na oficina.

 


[1] DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/

[2] A Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas inspiradas nos arcanos maiores do tarô em diálogo com determinados elementos da arte.


Referências bibliográficas 

DUARTE, Mercedes (2021). Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio. Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/20215/. Acesso em 10/07/2022 

GREEN, S. (2005). El Livro de los mandalas del mundo. Editora Océano Âmbar: Santiago, Chile. 

JODOROWSKY, Alejandro; COSTA, Marianne (2004). O Caminho do Tarô. Editora Chave: São Paulo. 

JUNG, C. G (2002). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Editora Vozes: Petrópolis. 

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo. 

SHARP, Daryl (1997). Léxico Junguiano: Dicionário de Termos e Conceitos. Editora Cultrix: São Paulo.


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Sobre a autora: Mercedes Duarte



Arteterapeuta (AARJ - 1117/0621), Mestre em Ciências Sociais. Faz atendimentos individuais e em grupo; com Tarô & Arteterapia. É facilitadora da Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô. E integra a equipe do Espaço Baobá de Arteterapia em Niterói-RJ.

Um comentário:

  1. Que rico esse texto! Gosto muito de trabalhar com mandalas na arteterpia! Obrigada por compartilhar! Sobre a visualização dirigida, seria possível compartilhar também?

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