Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Sigo refletindo sobre a questão das relações humanas em nossos dias. Esta é uma demanda que salta à minha escuta clínica mas também me atravessa em minhas relações e observações pessoais. Permaneço motivada em colaborar para instrumentalizar artererapeutas à esta escuta tão delicada e cheia de sutilezas, mas na mesma proporção, tão necessária para a clínica atual.
Acredito que um dos caminhos para este estudo seja lançar mão de literaturas contemporâneas e buscar possíveis articulações com a nossa prática profissional. Neste texto trago um fragmento da palestra “Arteterapia e contribuições ao amor contemporâneo”, oferecida pelo Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo em agosto de 2022. Este estudo se deu a partir de um livro que me foi apresentado por uma paciente. Embora já tivesse ouvido falar dele por outras fontes, atender ao convite de uma paciente para finalmente lê-lo, me pareceu compreender o espelhamento de possíveis demandas terapêuticas que ele aborda.
Através desta paciente pude conhecer um pouco mais sobre Bell Hooks (1952-2021) intelectual pública, nascida nos EUA, em uma pequena cidade segregada de Kentucky. Batizada como Glória Jean Watkins, adotou seu pseudônimo em homenagem à bisavó, “uma mulher de língua afiada, que falava o que vinha à cabeça, que não tinha medo de erguer a voz”. Lecionou em várias universidades estatunidenses e é autora de mais de trinta obras sobre questões de raça, gênero, classe, educação, crítica cultural e amor, além de poesia e livros infantis.
O livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” (2000 nos EUA, 2021 no Brasil) é o primeiro livro da chamada “Trilogia do amor”, seguido de “Salvação: pessoas negras e amor” (2001), e “Comunhão: a busca feminina pelo amor” (2002). Na teoria sobre o amor de Bell Hooks, observamos as inspirações das igrejas cristãs negras do sul dos EUA e Martin Luther King em paralelo à filosofia budista com base no mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh e o conceito de “budismo engajado”.
Já no início do livro, a prefaciadora já nos anuncia que a tônica do texto de Bell Hooks se dá em entender o amor como uma ética de vida:
... Bell Hooks faz a defesa da prática transformadora
do amor, que manda embora o medo e liberta nossa alma. Assim, ela nos convoca a
regressar ao amor. Se o desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar
de amor pode ser revolucionário. Para compreendermos a proposta da autora e
a profundidade de suas reflexões, o primeiro passo deve ser abandonar a
ideia de que o amor é apenas um sentimento e passar a entendê-lo como ética de
vida... o quanto nossas ações pessoais relacionadas ao amor implicam uma
postura perante o mundo e uma forma de inserção na sociedade...
Bell Hooks reposiciona o amor como uma força capaz de transformar todas as esferas da vida: a política, a religião, o local de trabalho, o ambiente doméstico e as relações íntimas... E, nessa perspectiva, compreende que o pessoal sobrevive por meio da ligação com o coletivo: é o poder de se autoagenciar (self-agency) em meio ao caos e determinar o autoagenciamento coletivo. (SILVA in HOOKS, 2022, 10-11)
O final deste trecho me toca de forma especial, pois algo que embasa meu manejo clínico é a conscientização do meu paciente sobre a relação entre as esferas individual e coletiva. Que embora percebamos o caos coletivo, um dos objetivos do processo terapêutico está em o indivíduo se fortalecer para se autogerenciar, fazer uso de sua liberdade interior e responsabilidade individual (fazendo referência à conceitos da Logoterapia) frente à vida.
Vale ressaltar que a autora vê o amor como uma força transformadora para todas as esferas da vida, sejam elas em nível macro (política, religião), mas também nas esferas micro (o local de trabalho, o ambiente doméstico e as relações íntimas) – sendo exatamente estes os campos onde a maior parte dos enredos abordados no setting terapêutico se apresentam.
A autora nos espelha um grande calcanhar de Aquiles das relações contemporâneas: o conflito entre o desejo de amor e o desejo de poder:
Infelizmente, o amor não prevalecerá em qualquer
situação em que uma das partes, seja feminina ou masculina, queira manter o
controle. (HOOKS, 2022, 184)
É importante lembrar a percepção de Jung, de que, se
o desejo de poder predomina, o amor estará ausente. Quando o amor está
presente, o desejo de dominar e exercer poder não pode ser a ordem do dia. (HOOKS,
2022, 134)
Para curar a guerra entre os gêneros baseada em lutas por poder, mulheres e homens escolhem fazer da reciprocidade a base de seus vínculos, garantindo que o crescimento de cada pessoa seja importante e seja estimulado. (HOOKS, 2022, 196)
A citação junguiana lembrada pela autora é: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.”. Vale destacar o quanto esta dinâmica é frequente em demandas terapêuticas trazidas ao setting por pacientes que sofrem o desamor, mas não se percebem não abrindo mão de algum desejo de poder.
Ao refletir sobre o amor, Bell Hooks dedica um capítulo inteiro para pensar sobre o compromisso com amor-próprio:
Quando vemos o amor como uma combinação de confiança,
compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos
trabalhar para desenvolver essas qualidades... [e] aprender a
estendê-las a nós mesmos...
Se é importante compreendermos as origens de uma
autoestima frágil, também é possível ultrapassar esse estágio (a
identificação de quando e onde recebemos socialização negativa) e ainda
criar uma base para construção do amor-próprio. (HOOKS, 2022, 94-95)
E alerta:
De todos os capítulos deste livro, este foi o mais
difícil de escrever. Quando falei com amigos e conhecidos sobre amor-próprio,
fiquei surpresa em ver como muitos de nós se sentem inquietos diante dessa
noção, como se a simples ideia implicasse em narcisismo ou egoísmo demais. Todos
nós precisamos nos livrar de ideias equivocadas a respeito do amor-próprio.
Precisamos parar de igualar covardemente o amor-próprio a egoísmo ou
egocentrismo.
Amor-próprio é a base de nossa prática amorosa. Sem ele, nossos outros esforços falham. Ao darmos a nós mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado receber da outra pessoa. (HOOKS, 2022, 106)
Mas em um segundo momento, ela nos alerta de que o caminho para a “cura” se encontra justamente na relação:
Raramente, se é que isso acontece, nós nos curamos em
isolamento. A cura é um ato de comunhão.
A maioria de nós encontra esse espaço de comunhão
curativa entre almas afins... (HOOKS, 2022, 243)
O amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada tem sido capaz de bloquear nosso desejo pelo amor, a intensidade do nosso anseio. A compreensão de que o amor redime parece ser o aspecto resiliente do saber do coração. O poder curativo do amor redentor nos atrai e nos convoca em direção à possibilidade de cura. (HOOKS, 2022, 247)
Contribuições arteterapêuticas
Bell Hooks defende que só é possível
viver a ética do amor, se houver uma busca engajada por consciência:
Abraçar uma ética amorosa significa utilizar todas as dimensões do amor – ‘cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento’ – em nosso cotidiano. Só podemos fazer isso de modo bem-sucedido ao cultivar a consciência. Estar consciente permite que examinemos nossas ações criticamente para ver o que é necessário para que possamos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e manifestar disposição de aprender. (HOOKS, 2022, 130)
É neste sentido que observo a grande contribuição do setting terapêutico, pois, de fato, este é um espaço endereçado para que os indivíduos possam se pensar, se conhecer e tomarem decisões conscientes sobre si e como se relacionarem.
A autora também defende a perspectiva de
que devemos enxergar o amor não como um sentimento, mas sim como uma ação:
A melhor definição de amor é aquela que nos faz pensar
o amor como ação... Uma das contribuições fundamentais trazidas por Bell Hooks
é nos fazer pensar que são as ações que constroem os sentimentos. Dessa
maneira, ao pensar o amor como ação, nos vemos obrigados a assumir a
responsabilidade e o comprometimento com esse aprendizado. (SILVA in HOOKS,
2022, 12)
O amor é uma ação, uma emoção participativa. Quando nos engajamos num processo de amor-próprio ou de amar os outros, devemos nos mover além do reino do sentimento para tornar o amor real. É por isso que é útil ver o amor como uma prática. (HOOKS, 2022, 197)
É neste ponto que observo uma costura entre o texto de Bell Hooks com a Arteterapia em uma de suas especificidades: a perspectiva da ação. A autora nos estimula a enxergarmos o amor como uma prática endereçada ao comprometimento e responsabilização do indivíduo. É específico e singular do setting arteterapêutico, o convite ao ato criativo como veículo de tomada de consciência, comprometimento e responsabilização sobre si mesmo. Neste sentido, nós arteteapeutas podemos pensar práticas criativas que coloquem o sujeito em ação para a conscientização de sua ética amorosa.
Como por exemplo, a releitura do desenho do artista contemporâneo Leonilson, que nos faz pensar sobre as “pontes” que nos interligam.
Concluo este texto, certa de que estive longe de esgotar tantas reflexões que o livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” pode nos trazer. Por isso, estimulo que você leitor deste texto, o leia de forma integral e trace suas próprias articulações. Por hora, encerro essa reflexão com duas citações de Bell Hooks que me trouxeram esperança e sentido para continuar minha caminhada de reflexão sobre o amor no setting arteterapêutico e na vida:
Nós podemos recuperar coletivamente a nossa fé no
poder transformador do amor cultivando a coragem, a força para agir em favor daquilo em que
acreditamos, para sermos responsáveis em palavras e ações. (HOOKS, 2022, 128)
Aqueles de nós que já escolheram adotar uma ética amorosa, permitindo que ela governe e oriente o modo como pensamos e agimos, sabemos que, ao deixar nossa luz brilhar, atraímos e somos atraídos por outras pessoas que também mantêm sua chama acesa. Não estamos sozinhos. (HOOKS, 2022, 137)
Angélica
ResponderExcluirAdorei a reflexão Eliana,obrigada!
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