segunda-feira, 12 de setembro de 2022

ARTETERAPIA E CONTRIBUIÇÕES AO AMOR CONTEMPORÂNEO



Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

Sigo refletindo sobre a questão das relações humanas em nossos dias. Esta é uma demanda que salta à minha escuta clínica mas também me atravessa em minhas relações e observações pessoais. Permaneço motivada em colaborar para instrumentalizar artererapeutas à esta escuta tão delicada e cheia de sutilezas, mas na mesma proporção, tão necessária para a clínica atual. 

Acredito que um dos caminhos para este estudo seja lançar mão de literaturas contemporâneas e buscar possíveis articulações com a nossa prática profissional. Neste texto trago um fragmento da palestra “Arteterapia e contribuições ao amor contemporâneo”, oferecida pelo Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo em agosto de 2022. Este estudo se deu a partir de um livro que me foi apresentado por uma paciente. Embora já tivesse ouvido falar dele por outras fontes, atender ao convite de uma paciente para finalmente lê-lo, me pareceu compreender o espelhamento de possíveis demandas terapêuticas que ele aborda. 

Através desta paciente pude conhecer um pouco mais sobre Bell Hooks (1952-2021) intelectual pública, nascida nos EUA, em uma pequena cidade segregada de Kentucky. Batizada como Glória Jean Watkins, adotou seu pseudônimo em homenagem à bisavó, “uma mulher de língua afiada, que falava o que vinha à cabeça, que não tinha medo de erguer a voz”. Lecionou em várias universidades estatunidenses e é autora de mais de trinta obras sobre questões de raça, gênero, classe, educação, crítica cultural e amor, além de poesia e livros infantis.  

O livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” (2000 nos EUA, 2021 no Brasil) é o primeiro livro da chamada “Trilogia do amor”, seguido de “Salvação: pessoas negras e amor” (2001), e “Comunhão: a busca feminina pelo amor” (2002). Na teoria sobre o amor de Bell Hooks, observamos as inspirações das igrejas cristãs negras do sul dos EUA e Martin Luther King em paralelo à filosofia budista com base no mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh e o conceito de “budismo engajado”. 

Já no início do livro, a prefaciadora já nos anuncia que a tônica do texto de Bell Hooks se dá em entender o amor como uma ética de vida:

 

... Bell Hooks faz a defesa da prática transformadora do amor, que manda embora o medo e liberta nossa alma. Assim, ela nos convoca a regressar ao amor. Se o desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar de amor pode ser revolucionário. Para compreendermos a proposta da autora e a profundidade de suas reflexões, o primeiro passo deve ser abandonar a ideia de que o amor é apenas um sentimento e passar a entendê-lo como ética de vida... o quanto nossas ações pessoais relacionadas ao amor implicam uma postura perante o mundo e uma forma de inserção na sociedade...

Bell Hooks reposiciona o amor como uma força capaz de transformar todas as esferas da vida: a política, a religião, o local de trabalho, o ambiente doméstico e as relações íntimas... E, nessa perspectiva, compreende que o pessoal sobrevive por meio da ligação com o coletivo: é o poder de se autoagenciar (self-agency) em meio ao caos e determinar o autoagenciamento coletivo. (SILVA in HOOKS, 2022, 10-11) 

O final deste trecho me toca de forma especial, pois algo que embasa meu manejo clínico é a conscientização do meu paciente sobre a relação entre as esferas individual e coletiva. Que embora percebamos o caos coletivo, um dos objetivos do processo terapêutico está em o indivíduo se fortalecer para se autogerenciar, fazer uso de sua liberdade interior e responsabilidade individual (fazendo referência à conceitos da Logoterapia) frente à vida. 

Vale ressaltar que a autora vê o amor como uma força transformadora para todas as esferas da vida, sejam elas em nível macro (política, religião), mas também nas esferas micro (o local de trabalho, o ambiente doméstico e as relações íntimas) – sendo exatamente estes os campos onde a maior parte dos enredos abordados no setting terapêutico se apresentam. 

A autora nos espelha um grande calcanhar de Aquiles das relações contemporâneas: o conflito entre o desejo de amor e o desejo de poder:

 

Infelizmente, o amor não prevalecerá em qualquer situação em que uma das partes, seja feminina ou masculina, queira manter o controle. (HOOKS, 2022, 184)

 

É importante lembrar a percepção de Jung, de que, se o desejo de poder predomina, o amor estará ausente. Quando o amor está presente, o desejo de dominar e exercer poder não pode ser a ordem do dia. (HOOKS, 2022, 134)

 

Para curar a guerra entre os gêneros baseada em lutas por poder, mulheres e homens escolhem fazer da reciprocidade a base de seus vínculos, garantindo que o crescimento de cada pessoa seja importante e seja estimulado. (HOOKS, 2022, 196) 

A citação junguiana lembrada pela autora é: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.”. Vale destacar o quanto esta dinâmica é frequente em demandas terapêuticas trazidas ao setting por pacientes que sofrem o desamor, mas não se percebem não abrindo mão de algum desejo de poder. 

Ao refletir sobre o amor, Bell Hooks dedica um capítulo inteiro para pensar sobre o compromisso com amor-próprio: 

Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades... [e] aprender a estendê-las a nós mesmos...

 

Se é importante compreendermos as origens de uma autoestima frágil, também é possível ultrapassar esse estágio (a identificação  de quando e onde recebemos socialização negativa) e ainda criar uma base para construção do amor-próprio. (HOOKS, 2022, 94-95)

 E alerta:

De todos os capítulos deste livro, este foi o mais difícil de escrever. Quando falei com amigos e conhecidos sobre amor-próprio, fiquei surpresa em ver como muitos de nós se sentem inquietos diante dessa noção, como se a simples ideia implicasse em narcisismo ou egoísmo demais. Todos nós precisamos nos livrar de ideias equivocadas a respeito do amor-próprio. Precisamos parar de igualar covardemente o amor-próprio a egoísmo ou egocentrismo.

 

Amor-próprio é a base de nossa prática amorosa. Sem ele, nossos outros esforços falham. Ao darmos a nós mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado receber da outra pessoa. (HOOKS, 2022, 106) 

Mas em um segundo momento, ela nos alerta de que o caminho para a “cura” se encontra justamente na relação: 

Raramente, se é que isso acontece, nós nos curamos em isolamento. A cura é um ato de comunhão.

A maioria de nós encontra esse espaço de comunhão curativa entre almas afins... (HOOKS, 2022, 243)

 

O amor redime. Apesar de todo o desamor que nos cerca, nada tem sido capaz de bloquear nosso desejo pelo amor, a intensidade do nosso anseio. A compreensão de que o amor redime parece ser o aspecto resiliente do saber do coração. O poder curativo do amor redentor nos atrai e nos convoca em direção à possibilidade de cura. (HOOKS, 2022, 247) 

Contribuições arteterapêuticas 


Desenho de Leonilson

Bell Hooks defende que só é possível viver a ética do amor, se houver uma busca engajada por consciência:

Abraçar uma ética amorosa significa utilizar todas as dimensões do amor – ‘cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento’ – em nosso cotidiano. Só podemos fazer isso de modo bem-sucedido ao cultivar a consciência. Estar consciente permite que examinemos nossas ações criticamente para ver o que é necessário para que possamos dar carinho, ser responsáveis, demonstrar respeito e manifestar disposição de aprender. (HOOKS, 2022, 130) 

É neste sentido que observo a grande contribuição do setting terapêutico, pois, de fato, este é um espaço endereçado para que os indivíduos possam se pensar, se conhecer e tomarem decisões conscientes sobre si e como se relacionarem. 

A autora também defende a perspectiva de que devemos enxergar o amor não como um sentimento, mas sim como uma ação:

 

A melhor definição de amor é aquela que nos faz pensar o amor como ação... Uma das contribuições fundamentais trazidas por Bell Hooks é nos fazer pensar que são as ações que constroem os sentimentos. Dessa maneira, ao pensar o amor como ação, nos vemos obrigados a assumir a responsabilidade e o comprometimento com esse aprendizado. (SILVA in HOOKS, 2022, 12)

 

O amor é uma ação, uma emoção participativa. Quando nos engajamos num processo de amor-próprio ou de amar os outros, devemos nos mover além do reino do sentimento para tornar o amor real. É por isso que é útil ver o amor como uma prática. (HOOKS, 2022, 197) 

É neste ponto que observo uma costura entre o texto de Bell Hooks com a Arteterapia em uma de suas especificidades: a perspectiva da ação. A autora nos estimula a enxergarmos o amor como uma prática endereçada ao comprometimento e responsabilização do indivíduo. É específico e singular do setting arteterapêutico, o convite ao ato criativo como veículo de tomada de consciência, comprometimento e responsabilização sobre si mesmo. Neste sentido, nós arteteapeutas podemos pensar práticas criativas que coloquem o sujeito em ação para a conscientização de sua ética amorosa. 

Como por exemplo, a releitura do desenho do artista contemporâneo Leonilson, que nos faz pensar sobre as “pontes” que nos interligam.

 


Desenho de Leonilson


Pontes de esperança

Concluo este texto, certa de que estive longe de esgotar tantas reflexões que o livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” pode nos trazer. Por isso, estimulo que você leitor deste texto, o leia de forma integral e trace suas próprias articulações. Por hora, encerro essa reflexão com duas citações de Bell Hooks que me trouxeram esperança e sentido para continuar minha caminhada de reflexão sobre o amor no setting arteterapêutico e na vida:

 

Nós podemos recuperar coletivamente a nossa fé no poder transformador do amor cultivando a coragem, a força para agir em favor daquilo em que acreditamos, para sermos responsáveis em palavras e ações. (HOOKS, 2022, 128)

 

Aqueles de nós que já escolheram adotar uma ética amorosa, permitindo que ela governe e oriente o modo como pensamos e agimos, sabemos que, ao deixar nossa luz brilhar, atraímos e somos atraídos por outras pessoas que também mantêm sua chama acesa. Não estamos sozinhos. (HOOKS, 2022, 137)  

Referência bibliográfica:

HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante, SP. 2022.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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