Por Mercedes Duarte – RJ
Esse é mais um
texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô,
associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos.
Nesse artigo, trago o Arcano VI, o Enamorado, em diálogo com os Objetos relacionais da artista Lygia
Clark.
Aqui
não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o que seria
inalcançável, tampouco explanar com profundidade a proposta da artista em
questão. O escopo é trazer um recorte que privilegie as afinidades entre ambos.
O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para a ampliação do repertório arteterapêutico.
O
Enamorado
Nossos sentidos (...) são todos órgãos
de fazer amor com o mundo.
Rubem Alves
Tarô de Marselha
Tarô de Waite e Smith
No
Tarô de Marselha vemos três pessoas em relação, em um mesmo plano. Um rapaz
está posicionado entre duas mulheres[3],
uma mulher jovem e outra mais velha, que o tocam. Ele olha para uma, mas se
posiciona em direção à outra. Poderíamos especular uma cena em que o rapaz do
centro está entre dois caminhos e que precisa fazer uma escolha. O cupido acima
do rapaz lhe acusa uma direção ao apontar sua flecha para a jovem à sua
esquerda. Ainda que pareça envolvido com as duas personagens, a configuração
parece apontar para um conflito que o impele à escolha entre o “velho” e o
“novo”.
Em
termos psicológicos, o protagonista representa o ego, ainda jovem, que está a
se desvencilhar da fascinação pelo arquétipo da Mãe e a libertar sua alma para
se envolver na vida[4]
(NICHOLS, 1997, p. 141). Esse é um momento importante em sua iniciação. De
acordo com Sallie Nichols “o Papa do Tarô [arcano anterior] oferece iniciação
na vida do espírito. [No Enamorado], o desafio consiste em ligar a vida
espiritual à emocional e, através do apaixonado envolvimento em toda a vida,
conseguir um novo relacionamento com os outros e uma nova harmonia consigo
mesmo” (1997, p.141).
Nesse sentido, podemos considerar,
especialmente no Tarô de Waite, como vemos acima, a ideia de integração entre
opostos. Entre céu e terra, por exemplo, e entre masculino e feminino. Ainda
que a escolha possa pressupor o abandono de um dos elementos envolvidos, como
especulamos no Enamorado do Tarô de Marselha, aquele que se retira, ou é
retirado para dar lugar ao “novo”, já é parte constitutiva do protagonista.
Portanto, essa carta propõe um nível de elaboração, integração e equilíbrio
entre os aspectos nela envolvidos, como, por exemplo, passado, presente e
futuro.
Esse arcano, portanto, trata sobretudo
do aspecto relacional do indivíduo, que é permeado por conflitos/atritos,
necessários ao desenvolvimento humano, e pela dimensão dos prazeres, elementos
esses constitutivos da experiência dos encontros.
Lygia Clark e seus objetos
relacionais
Em
suas obras Bichos (1960)
e Caminhando (1963), a
artista rompe com a arte formal, e concebe um deslocamento das fronteiras
da arte, de modo a tornar o expectador sujeito e coautor da obra. A artista passa
a ser então uma propositora. Busca religar arte e vida, através de suas proposições
experienciais.
Em
Estruturação do Self (1978),
uma proposta artístico-terapêutica, Clark radicaliza e concebe experimentações
corporais, em seu “ateliê-consultório”, em sessões individuais. Sistematiza os Objetos
relacionais, já encontrado em
propostas anteriores, em um método terapêutico que toma o corpo como
elemento central da experiência. Nesse trabalho, o sujeito ao vivenciar sensações
provocadas pelo contato criativo com objetos simples, confeccionados pela
artista, seria estimulado à reelaboração de si (ALMEIDA, 2013).
De
acordo com o psicanalista Donald W. Winnicott, por quem o trabalho de Clark é
inspirado, “Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, (...) uma
área intermediária entre a realidade interna (...) e a realidade compartilhada
do mundo” (WINNICOTT, 1975, p. 93). Desse modo, a proposta de Lygia busca
mobilizar a percepção e a sensação, que permitem a apreensão da alteridade do mundo. (...) Trata-se do paradoxo dentro/fora (...) que é a área iminentemente da experiência e constitui um espaço onde o sujeito está sempre em trânsito de um a outro, entre si e a alteridade do mundo, continuamente se criando. É nesta região da experimentação e do brincar que o homem pode ser criativo e somente sendo criativo ele descobre o seu eu (self), pois é ali que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Portanto, (...) o eu (self) se constrói na experiência; o homem só pode ser na experiência (REA, 2017, p. 98)
Lygia Clark com um objeto relacional
Lygia Clark com um objeto relacional
Nesse sentido, a concepção dos Objetos relacionais de Lygia Clark nos traz um repertório pertinente, em termos arteterapêuticos, para elaboração do arcano do Enamorado, que encarna justamente a experiência do encontro com aquilo que nos é externo, possibilitando, assim, a percepção e diálogo entre o dentro e o fora.
Proposta Arteterapêutica
Foi
sugerido, antes do encontro, a escolha, pelas participantes, dos materiais e da
técnica para o trabalho plástico, levando em conta o prazer no contato com os
elementos escolhidos. Antes da produção plástica, houve a manipulação de
objetos previamente selecionados para estimular sensações distintas. A proposta
do trabalho plástico era o de expressarem a experiência de estarem em relação.
Título: Integração
Título: Deleite na Integração
Ambas
obras acima trouxeram a noção de integração. Na primeira foi utilizada pintura
e colagem, e enfatizada a união interna entre o feminino e o masculino; matéria
e espírito; corpo e alma. Na segunda obra a participante utilizou a colagem, e ressaltou
o prazer em estabelecer consigo mesma a integração interna, possibilitada pelo
encontro amoroso.
[1] DUARTE,
Mercedes. Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog
Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
[2] A Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, remotas,
inspiradas nos arcanos maiores do tarô em diálogo com determinados elementos da
arte.
[3] Em algumas
interpretações dessa carta a personagem à esquerda é considerada um homem.
[4]
Esse
arquétipo se insere no Reino dos Deuses, mas está há uma carta do segundo
setenário, considerado o Reino Terreno, onde o herói vai construir seu lugar no
mundo. Divisão essa, a cada sete cartas, explicitada no texto: DUARTE,
Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de
maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Eduardo Augusto Alves de. (2013). Aspectos da Estruturação do Self de Lygia Clark: perspectivas críticas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interunidades de Pós-Gradução em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.
ALVES, Rubem (2012). Educação dos Sentidos e mais… 9ª ed. Verus Editora: Campinas - SP.
DUARTE, Mercedes (2021). Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van
Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.
REA, Silvana (2017). Lygia Clark: Arte e Vida. Ide. São Paulo, 40 [64] dezembro, 2017. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062017000200008 Acesso em 30/11/21.
WINNICOTT, D. (1975). O brincar e a realidade. Ed. Imago: Rio de Janeiro.
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos
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