Por Rosangela Nery - RJ
rosanery1975@hotmail.com
Arte é cultura, e cultura
fomenta reflexão e desenvolve pensamento crítico. Esse relato traz como
inquietação o que o encontro entre Arte, Saúde e Cultura
tem contribuído no processo de desconstrução do imaginário social da loucura.
Refletir e descrever o lugar da arte no
processo de desinstitucionalização dos usuários(as) internados por longos
períodos em instituições asilares, tem sido um grande desafio e ao mesmo tempo
se apresenta como uma potência na construção de novas formas de cuidado e
escuta.
Nesse sentido, Joel Birman sublinha:
“A loucura torna-se verdade médica. Cria-se
uma clínica das enfermidades mentais e uma concepção de terapêutica... Cria-se
um corpo de conceitos, a teoria psiquiátrica, que instrumentalizariam esta
prática clínica. O asilo é criado, aparecendo como figura histórica,
tornando-se o lugar adequado para a realização desta cura.” (BIRMAN, 1978,
p.2).
Ao falar de desintitucionalização é necessário apresentar o processo
político/histórico que a antecede e regulamenta essa prática. A
Lei 10.216/01 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas que apresentam
sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em Saúde Mental na
direção ao processo de desinstitucionalização a partir de novas práticas
clínicas dentro dos hospitais e do uso de novos dispositivos assistenciais
pensados como modelo substitutivo dos hospitais psiquiátricos, que, neste
relato, será citado o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como um desses
dispositivos dentre outros existentes na Rede de atenção Psicossocial (RAPS). A
Lei regulamenta o cuidado especial à clientela internada por longos anos. A
relevância da arte inserida nesse contexto está em contribuir para que os usuários da saúde mental internados em
hospitais psiquiátricos ou ainda os que estão inseridos no CAPS, possam contar
com a construção de outras
possibilidades de formação de vínculos, que não se dão somente a partir da
escuta tradicional, mas, que é possível, através da arte, em suas várias
formas, apontar à construção de uma subjetividade e caminhar a um processo de ressignificação psíquica, visando
busca por autonomia e muitas vezes chegando a uma reinserção social.
Hoje, vamos falar sobre Pedro (nome fictício),
jovem, internado em um dos núcleos da Colônia Juliano Moreira* no Rio de janeiro, desde maio de 2019, já esteve em outras instituições e
totaliza mais ou menos 07 anos de internação em lugares inóspitos e muitas
vezes sem acesso a direitos básicos para manutenção da vida, refiro-me, por
exemplo, a luz solar. O trabalho na Colônia tem sido na direção de cuidar e
construir um caminho que seguirá para além do processo de desospitalização
(saída do hospital). Um dos espaços de
arte e cultura existentes no território da colônia é o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea, que conta com várias oficinas terapêuticas e também oficinas
de geração de renda, que visam contribuir no processo de reinserção social.
Pedro, assim como muitos possui o diagnóstico de Esquizofrenia (CID -
classificação internacional das doenças; F-20), diagnóstico esse atribuído à
todos que se apresentavam fora da “razão”, também há relatos do próprio Pedro
sobre uso abusivo de álcool e outras drogas, o que refere com a grande causa da
sua primeira internação.
Para pensar a
Loucura, Foucault (1975) nos apresenta:
“As
dimensões psicológicas da Loucura não podem então ser reprimidas a partir de um
princípio de explicação ou de redução que lhes seria exterior. Mas elas devem
situar-se no interior dessa relação geral que o homem ocidental estabeleceu há
praticamente dois séculos consigo mesmo... Esta relação que funda
filosoficamente toda psicologia possível só pode ser definida a partir de um
momento preciso da história de nossa civilização: o momento em que o grande
confronto da Razão e da Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e
em que a razão deixou de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza.”
(FOUCAULT, 1975, p. 97-98).
A partir do convívio com Pedro, que se
apresenta extremamente preservado do ponto de vista psíquico, com muitas
possibilidades e habilidades, o mesmo é inserido
em alguns projetos, todos com direção de preparo para ocupação da cidade,
afinal, a rua é um lugar a ser ocupado. Um dos projetos que desperta o
interesse de Pedro é a oficina de mosaico, coordenada pelo profissional V.
Pedro, no auge da sua juventude e produtividade, solicita em um dos nossos
atendimentos que gostaria de ter seu próprio dinheiro, ainda que seja pouco,
pois entende que precisará disso para sair do manicômio. Nesse momento
lembro-me de um espelho antigo com moldura de madeira que ficava no canto do
meu quarto e que por várias vezes pensei em jogar fora, ufaa... Não joguei!!
Levo o espelho para Pedro e digo que pode usar de sua criatividade e combinamos
então que ele cobraria pelo trabalho do mosaico. O trabalho durou pouco mais de
1 mês e durante esse processo a cada dia Pedro trazia a alegria de estar
novamente criando algo, estar produzindo o fazia lembrar que era humano e
capaz, algo que a instituição total rouba das pessoas.
De acordo com Amarante,
Venturini e Lima:
“A função da arte é
alimentar e ampliar a empatia do homem com o diferente. Portanto, é possível
afirmar que a arte cura a loucura. A ideia de que a arte pode ser útil ao
doente mental já é antiga e deriva também do mito de que os gênios e os artistas
têm sempre um pouco de loucos. Ele alertou ainda para o perigo da manipulação
no uso da arte. O risco é o trabalho da arte se tornar caricatura na
psiquiatria, se transformar em uma modalidade de exploração física e
intelectual que corresponde ao entretenimento nesse tipo de tratamento. Penso
que, no inferno do manicômio ou em todos os outros lugares onde exista
repressão e marginalização, algumas obras de internos até podem ser obras
artísticas, mas as técnicas não são terapêuticas, pois sem liberdade pode
existir arte, mas nunca poderá existir terapia. A arte é contrária ao poder e
inimiga da autoridade. Ela é cultura, e cultura fomenta reflexão, desenvolve
pensamento crítico.” (AMARANTE, VENTURINI, LIMA, 2010 p.01).
A tão
esperada peça ficou pronta, algo tão lindo que foi pensado um lugar
para ela na exposição que acontece atualmente no Museu Bispo do Rosário. O
trabalho com mosaico, técnica que propõe a colocação de fragmentos de pedras,
pastilhas de vidro, seixos e outros materiais, sobre qualquer superfície,
trouxe a Pedro a esperança de refazer a vida e as relações perdidas, trabalhar
com essa técnica remete a possibilidades de juntar os cacos, os fragmentos de
vida que foram deixados no caminho. Pedro
recebeu pela peça, seguiu no trabalho e foi inserido em mais um projeto de
geração de renda no Bistrô do museu, que serve alimentos preparados por
profissionais, ex - usuários que em sua grande maioria já não ocupam mais os
espaços asilares dos manicômios. O trabalho com Pedro continua, ele segue
internado e tendo que lidar com a
vulnerabilidade que se coloca quando o mesmo faz uso de drogas; não tem sido fácil pra ele e para nós enquanto
equipe, a cada dia temos novos desafios
a enfrentarmos, afinal, a instituição deixa marcas na vida dos sujeitos, a
diferença é que hoje Pedro conta com uma equipe embasada pelos preceitos da
Reforma Psiquiátrica. O desafio da superação do manicômio não está apenas em
cerrar suas portas, como propõe a Reforma, mas, ao se pretender
desinstitucionalizar a clientela internada, é necessário um cuidado e atenção
especial, a fim de não produzir novas formas de exclusão e asilamento nos
serviços substitutivos da RAPS. Deste modo, um processo de reconstrução,
implica refazer as relações que a sociedade estabelece com a loucura, e a arte
tem sido fundamental nesse processo e segue nos apontando uma resposta.
A exposição: “Utopias: A vida para todos os tempos e glória” acontece no museu
Bispo do Rosário, inaugurada em 25/09/2019 com data de término em 25/01/2020
sempre no horário de 10 às 17h, de terça a sexta feira, e nos últimos sábados
de cada mês. Venha visitar e se emocionar com os caminhos que a arte pode
apontar para a vida!
O museu fica localizado na Estrada Rodrigues
Caldas 3.400 – Curicica – Rio de Janeiro
* O território da Colônia Juliano Moreira originou-se a partir de um dos mais antigos engenhos de cana de açúcar em Jacarepaguá, integrando inicialmente as terras do Engenho da Taquara, que é então desmembrado em 1664 e denominado Fazenda Nossa Senhora dos Remédios. Em 1778 recebe o nome de Engenho Novo da Taquara. Após o processo de municipalização, passa a chamar-se IMAS JM – Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira, e segue no processo de desinstitucionalização dos usuários para os serviços substitutivos da RAPS.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARANTE, P.; VENTURINI, E.; LIMA, R. Arte e cultura: ferramentas utilizadas para
cura no campo da saúde mental. Rio de Janeiro: Informe ENSP, 2010.
DAMASCENO, N.F.P. et al . A narrativa como
alternativa na pesquisa em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 22, n.
64, p. 133-140. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0815.
FOUCAULT, M. Doença Mental e
Psicologia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
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Autora:
Rosangela Ferreira Nery
Psicóloga, especialista em Saúde mental e atenção
psicossocial pela ENSP- Fiocruz e em Arte, Ciência e Cultura na Saúde pelo IOC
– Fiocruz, servidora da Secretaria Municipal de Saúde atuando como diretora do
Núcleo de apoio a desinstitucionalização Franco da Rocha – IMAS JM/ RJ.
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