“Criar é basicamente formar. É poder dar uma
forma a algo novo. [...] novas coerências que se estabelecem para a mente
humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos.”
Diz Fayga Ostrower em seu livro, Criatividade e Processos de Criação.
Criar
é dar vida a alguma coisa que emerge de algum lugar em nós. Esse processo pode
ser visto na nossa vida ao mudarmos de emprego, ao buscar soluções para nossas
relações difíceis, para dar um jeito no carro quando ele quebra no meio do
nada, quando estamos sem sentido em nossa vida e conseguimos um lampejo de uma
direção. Criar é fazer algo para que possamos sair do conflito que vivemos,
seja ele um pequeno conflito: qual a melhor rota pra fugir do engarrafamento? Ou
grandes conflitos: o que fazer da minha vida?
Para
nós, arteterapeutas, a criação aparece também nas obras produzidas no setting. São mais do que testemunhas ou
cumplices de um processo de mudança, a obra é um pedaço do próprio processo. Falamos
acima sobre os conflitos que antecedem a criação, Fayga nos afirma que em todo
processo de criação há a tensão. É a crise, que vem do grego Krísis, cujo significado é separação,
avaliação, e no latim era usado na medicina antiga se referindo ao momento
decisivo da doença, onde haveria um desfecho, a cura ou a morte. É o turning point, o momento em que se
percebe que é preciso acontecer algo, onde “cada
decisão que se toma representa assim um ponto de partida, num processo de
transformação que está sempre recriando o impulso que o criou”, Fayga
completa dizendo que “a cada decisão algo
é deixado para trás e a possibilidade de algo novo permanece latente, à espera
de sua objetivação” (OSTROWER, 2014. p.
27).
Nesse
intervalo, quase imperceptível, habita o caos, cuja etimologia vem do grego Khaos, o abismo, o vasto, ou seja, é o
nada que antecede o tudo. É o momento onde mais nada existe, onde nada cabe nos
lugares conhecidos, onde nada mais é conhecido. É quando o artista está diante
da tela em branco, o escultor da pedra amórfica, onde toda a virtualidade se
apresenta em sua forma mais poderosa e completa. Os mitos de criação nos ajudam
a compreender que nesse processo há fases onde a semente da criação passa por
muitas batalhas até chegar à consciência
cada crise decisiva e cada rite de passage, o homem retorna ao inicio o drama do mundo. A operação é efetuada por duas vezes: (1) o regresso à
totalidade primordial e (2) a repetição da cosmogonia, quer dizer a quebra da
unidade primitiva. (ELIADE, p. 101)
Neste
processo a obra atua como função transcendente, ou seja, como resultado da
disparidade entre a consciência e o inconsciente (JUNG, 2011), que gera
conflito. Essa função transcendente não é representacional, ela é o próprio
processo coagulado na obra, por isso, a produção na Arteterapia atua como
força, como potencia e não como descarga de libido, como Fayga diz
Compreendemos, na criação, que a
ulterior finalidade de nosso fazer seja ampliar em nós a experiência da
vitalidade. Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem
uma substituição imaginativa da realidade; criar representa uma intensificação
do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a
realidade; é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos
articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais
elevados e mais complexos. (Ostrower, 2014. p. 28)
A
obra, portanto, é também, a encarnação dos daimones,
forças psíquicas nem boas, nem más, contendo
as possibilidades múltiplas da criação, que precisam do direcionamento da
consciência para estar presentes no mundo objetivo do homem. E quando elas
encontram essa direção é preciso retê-las, ficar na imagem, segurar o afeto e a
emoção trazidos pela obra e trabalhar com eles, a fim de adquirir cada vez mais
consciência do próprio processo, ou seja, consciência do agido e não do ato,
como nos diz Argan (1998). Uma tomada de consciência capaz de promover as mudanças
A percepção de si mesmo dentro do agir
é um aspecto relevante que distingue a criatividade humana. Movido por
necessidades concretas sempre novas, o potencial criador do homem surge na
história como um fator de realização e constante transformação. Ele afeta o
mundo físico, a própria condição humana e os contextos culturais. Para tanto, a
percepção consciente na ação humana se nos configura como premissa básica da
criação... (Ostrower, 2014. p. 10)
Criar,
na Arteterapia, é mais que fazer uma obra que respeite alguma regra estética;
criar é dar vida às forças psíquicas que precisam ser olhadas e trabalhadas com
muita atenção e uma escuta refinada, um olhar atento às curvas, retas, cores,
texturas e formas dadas a elas.
Porque
o ato criativo dentro do setting arteterapêutico é a manifestação da própria
existência
[...] A arte, portanto, é a
consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há
dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre
novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se
realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência
“racional” assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o como
fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à
consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência,
aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta
é a função insubstituível da arte”. (ARGAN, 1998, p. 320).
Bibliografia
JUNG,
C. G. A Natureza da Psique.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
OSTROWER,
Fayga. Criatividade e Processos de
Criação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
HILLMAN,
James. Ficções que Curam. Campinas,
SP: Verus, 2010
ELIADE,
Mircea. Origens – História e Sentido na
Religião. Edição 70.
ARGAN, Giulio. Arte Moderna. Ed. Companhia das Letras.
1998
contato: naopalavra@gmail.com
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