segunda-feira, 8 de junho de 2015

O ATO CRIATIVO E A IMAGEM

Por Maria Cristina Resende


Cena do filme Pollock, de Ed Harris.

Criar é basicamente formar. É poder dar uma forma a algo novo. [...] novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos.” Diz Fayga Ostrower em seu livro, Criatividade e Processos de Criação.

Criar é dar vida a alguma coisa que emerge de algum lugar em nós. Esse processo pode ser visto na nossa vida ao mudarmos de emprego, ao buscar soluções para nossas relações difíceis, para dar um jeito no carro quando ele quebra no meio do nada, quando estamos sem sentido em nossa vida e conseguimos um lampejo de uma direção. Criar é fazer algo para que possamos sair do conflito que vivemos, seja ele um pequeno conflito: qual a melhor rota pra fugir do engarrafamento? Ou grandes conflitos: o que fazer da minha vida?

Para nós, arteterapeutas, a criação aparece também nas obras produzidas no setting. São mais do que testemunhas ou cumplices de um processo de mudança, a obra é um pedaço do próprio processo. Falamos acima sobre os conflitos que antecedem a criação, Fayga nos afirma que em todo processo de criação há a tensão. É a crise, que vem do grego Krísis, cujo significado é separação, avaliação, e no latim era usado na medicina antiga se referindo ao momento decisivo da doença, onde haveria um desfecho, a cura ou a morte. É o turning point, o momento em que se percebe que é preciso acontecer algo, onde “cada decisão que se toma representa assim um ponto de partida, num processo de transformação que está sempre recriando o impulso que o criou”, Fayga completa dizendo que “a cada decisão algo é deixado para trás e a possibilidade de algo novo permanece latente, à espera de sua objetivação (OSTROWER, 2014. p. 27).

Nesse intervalo, quase imperceptível, habita o caos, cuja etimologia vem do grego Khaos, o abismo, o vasto, ou seja, é o nada que antecede o tudo. É o momento onde mais nada existe, onde nada cabe nos lugares conhecidos, onde nada mais é conhecido. É quando o artista está diante da tela em branco, o escultor da pedra amórfica, onde toda a virtualidade se apresenta em sua forma mais poderosa e completa. Os mitos de criação nos ajudam a compreender que nesse processo há fases onde a semente da criação passa por muitas batalhas até chegar à consciência
cada crise decisiva e cada rite de passage, o homem retorna ao inicio o drama do mundo. A operação é efetuada por duas vezes: (1) o regresso à totalidade primordial e (2) a repetição da cosmogonia, quer dizer a quebra da unidade primitiva. (ELIADE, p. 101)

Neste processo a obra atua como função transcendente, ou seja, como resultado da disparidade entre a consciência e o inconsciente (JUNG, 2011), que gera conflito. Essa função transcendente não é representacional, ela é o próprio processo coagulado na obra, por isso, a produção na Arteterapia atua como força, como potencia e não como descarga de libido, como Fayga diz
Compreendemos, na criação, que a ulterior finalidade de nosso fazer seja ampliar em nós a experiência da vitalidade. Criar não representa um relaxamento ou um esvaziamento pessoal, nem uma substituição imaginativa da realidade; criar representa uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; e, em vez de substituir a realidade, é a realidade; é uma realidade nova que adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos. (Ostrower, 2014. p. 28)

A obra, portanto, é também, a encarnação dos daimones, forças psíquicas nem boas, nem más, contendo as possibilidades múltiplas da criação, que precisam do direcionamento da consciência para estar presentes no mundo objetivo do homem. E quando elas encontram essa direção é preciso retê-las, ficar na imagem, segurar o afeto e a emoção trazidos pela obra e trabalhar com eles, a fim de adquirir cada vez mais consciência do próprio processo, ou seja, consciência do agido e não do ato, como nos diz Argan (1998). Uma tomada de consciência capaz de promover as mudanças
A percepção de si mesmo dentro do agir é um aspecto relevante que distingue a criatividade humana. Movido por necessidades concretas sempre novas, o potencial criador do homem surge na história como um fator de realização e constante transformação. Ele afeta o mundo físico, a própria condição humana e os contextos culturais. Para tanto, a percepção consciente na ação humana se nos configura como premissa básica da criação... (Ostrower, 2014. p. 10)

Criar, na Arteterapia, é mais que fazer uma obra que respeite alguma regra estética; criar é dar vida às forças psíquicas que precisam ser olhadas e trabalhadas com muita atenção e uma escuta refinada, um olhar atento às curvas, retas, cores, texturas e formas dadas a elas.

Porque o ato criativo dentro do setting arteterapêutico é a manifestação da própria existência
[...] A arte, portanto, é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência “racional” assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o como fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrer na consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria existência. Esta é a função insubstituível da arte”. (ARGAN, 1998, p. 320).


Bibliografia
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
HILLMAN, James. Ficções que Curam. Campinas, SP: Verus, 2010
ELIADE, Mircea. Origens – História e Sentido na Religião. Edição 70.
ARGAN, Giulio. Arte Moderna. Ed. Companhia das Letras. 1998


contato: naopalavra@gmail.com

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