segunda-feira, 21 de julho de 2025

COLAR OS CACOS: REFLEXÕES SOBRE O FILME "VITÓRIA" E OS PROCESSOS DA ARTETERAPIA

 


Por Mônica Ruibal

 

*Contém spoiler


Assistir ao filme Vitória, protagonizado por Fernanda Montenegro, é também entrar num território simbólico profundamente potente, onde a vida e a arte se encontram no movimento de reparar, remendar, ressignificar.

Só que essa história não é só ficção. Vitória existiu. Seu nome verdadeiro era Joana Zeferino da Paz. Mulher nordestina, nascida em Alagoas, que viveu décadas no Rio de Janeiro, até que a violência da cidade invadiu sua porta. Sem ser ouvida, sem apoio, sem acolhimento das autoridades, Joana decidiu pegar uma câmera e, com as próprias mãos, filmar aquilo que parecia inominável: o tráfico, a violência, a corrupção, o abandono.

Gravou, sozinha, por meses, enquanto também seguia sua vida, colando os cacos da casa, das xícaras, da própria existência. Porque enquanto a cidade se estilhaçava em tiros, medo e silêncio, ela se recusava a ser só mais uma invisível.

Quando denunciou, precisou se esconder. Foi viver em Salvador, protegida, com um nome novo — Dona Vitória. Viveu discretamente, longe da terra onde tudo aconteceu, carregando suas lembranças, suas cicatrizes, seus quadros, sua fé.

E partiu recentemente, aos 97 anos, em paz, deixando esse legado de resistência e de coragem.

Vitória, essa mulher que carrega sua própria história de dor, solidão, invisibilidade e resistência, passa boa parte do filme tentando colar uma xícara quebrada.

As xícaras que se partiram não só pelos impactos dos tiroteios que atravessam a sua vida, mas também como reflexo da desintegração de seu mundo, de suas relações, de sua própria identidade naquele espaço.

E talvez aqui esteja uma das cenas mais simbólicas do filme — e que dialoga diretamente com o fazer arteterapêutico: quando ela coloca café nessa xícara remendada… e o café escorre, vaza pelas ranhuras.

A xícara já não sustenta mais. Ela não tem mais a mesma função. Aquilo que se quebrou até pode ser colado, mas jamais volta a ser como antes.



E o que isso tem a ver com Arteterapia?

Tudo.

A Arteterapia é, muitas vezes, esse espaço onde o cliente chega com seus cacos — da vida, das relações, das histórias, dos afetos — e se senta diante de nós com a pergunta silenciosa: “O que eu faço com isso?”

Nos processos arteterapêuticos, aprendemos que nem sempre se trata de consertar para que volte a ser como antes. Às vezes, trata-se de acolher o que quebrou, reconhecer as rachaduras, dar nome às dores, olhar para os vazamentos, e então… criar algo novo.

A xícara não volta a ser xícara. Mas ela pode se tornar escultura, mosaico, objeto poético, memória viva. E, muitas vezes, é isso que fazemos: ajudamos nossos clientes a transformar os estilhaços da vida em novas formas de existir.

 

Práticas que podemos propor a partir desse filme:

 

Trabalhar com colagem, com mosaicos, com cerâmica quebrada — convidando o cliente a criar algo novo a partir do que se quebrou.

Utilizar a metáfora da xícara: o que em você hoje já não comporta mais o que antes comportava? O que está vazando? O que você tenta sustentar, mas percebe que já não cabe?

Convidar o cliente a escrever uma carta para o espaço que precisou deixar, para aquilo que não serve mais, se despedindo, elaborando o luto.

Fazer uma instalação simbólica: uma mesa posta com xícaras quebradas, como representação dos lugares vazios, das ausências, e também dos espaços de reconstrução.

Trabalhar com o conceito do Kintsugi, técnica japonesa que valoriza as cicatrizes da cerâmica, preenchendo as rachaduras com ouro, como uma metáfora de que as feridas também fazem parte da beleza e da história de cada um.


O filme Vitória nos lembra que colar os cacos é um ato de resistência. De amor próprio. De reinvenção. Mas também nos lembra que nem sempre o colado volta a ser recipiente — às vezes, vira obra. Vira memória. Vira história.

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Sobre a autora: Mônica Ruibal



De São Paulo, graduada em Pedagogia com pós graduação em Arteterapia e Arte Reabilitação

Especialista em autismo, atuando em equipe multidisciplinar.

Em 2024 foi convidada a compor um painel sobre Arteterapia no Tearteiro, maior Festival de Autismo e Arte da América Latina.

 ARTBRAZIL, em Fort Lauderdale, expondo a sua arte e promovendo workshops sociais sobre o tema Autismo. 

Criadora do grupo Arte Autismo onde promove encontros e workshops sobre o tema.

3 comentários:

  1. Que lindeza de reflexão! Tocou a alma e abriu janelas de reflexões e possibilidades. Obrigada Monica por tua generosidade de partilhas💝

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  2. Texto maravilhoso! Me acendeu a vontade de ver o filme. Agradecida.

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  3. FABIANA DA SILVA GONCALVES DE OLIVEIRA23 de julho de 2025 às 19:30

    Ual! Que olhar! Que sensibilidade, que reflexão ❤️

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