Por Mônica Ruibal
*Contém spoiler
Assistir ao filme Vitória,
protagonizado por Fernanda Montenegro, é também entrar num território simbólico
profundamente potente, onde a vida e a arte se encontram no movimento de
reparar, remendar, ressignificar.
Só que essa história não é só
ficção. Vitória existiu. Seu nome verdadeiro era Joana Zeferino da Paz. Mulher
nordestina, nascida em Alagoas, que viveu décadas no Rio de Janeiro, até que a
violência da cidade invadiu sua porta. Sem ser ouvida, sem apoio, sem
acolhimento das autoridades, Joana decidiu pegar uma câmera e, com as próprias
mãos, filmar aquilo que parecia inominável: o tráfico, a violência, a
corrupção, o abandono.
Gravou, sozinha, por meses,
enquanto também seguia sua vida, colando os cacos da casa, das xícaras, da
própria existência. Porque enquanto a cidade se estilhaçava em tiros, medo e
silêncio, ela se recusava a ser só mais uma invisível.
Quando denunciou, precisou se
esconder. Foi viver em Salvador, protegida, com um nome novo — Dona Vitória.
Viveu discretamente, longe da terra onde tudo aconteceu, carregando suas
lembranças, suas cicatrizes, seus quadros, sua fé.
E partiu recentemente, aos 97
anos, em paz, deixando esse legado de resistência e de coragem.
Vitória, essa mulher que carrega
sua própria história de dor, solidão, invisibilidade e resistência, passa boa
parte do filme tentando colar uma xícara quebrada.
As xícaras que se partiram não só
pelos impactos dos tiroteios que atravessam a sua vida, mas também como reflexo
da desintegração de seu mundo, de suas relações, de sua própria identidade
naquele espaço.
E talvez aqui esteja uma das
cenas mais simbólicas do filme — e que dialoga diretamente com o fazer
arteterapêutico: quando ela coloca café nessa xícara remendada… e o café
escorre, vaza pelas ranhuras.
A xícara já não sustenta mais.
Ela não tem mais a mesma função. Aquilo que se quebrou até pode ser colado, mas
jamais volta a ser como antes.
E o que isso tem a ver com
Arteterapia?
Tudo.
A Arteterapia é, muitas vezes,
esse espaço onde o cliente chega com seus cacos — da vida, das relações, das
histórias, dos afetos — e se senta diante de nós com a pergunta silenciosa: “O
que eu faço com isso?”
Nos processos arteterapêuticos,
aprendemos que nem sempre se trata de consertar para que volte a ser como
antes. Às vezes, trata-se de acolher o que quebrou, reconhecer as rachaduras,
dar nome às dores, olhar para os vazamentos, e então… criar algo novo.
A xícara não volta a ser xícara.
Mas ela pode se tornar escultura, mosaico, objeto poético, memória viva. E,
muitas vezes, é isso que fazemos: ajudamos nossos clientes a transformar os
estilhaços da vida em novas formas de existir.
Práticas que podemos propor a
partir desse filme:
Trabalhar com colagem, com
mosaicos, com cerâmica quebrada — convidando o cliente a criar algo novo a
partir do que se quebrou.
Utilizar a metáfora da xícara: o
que em você hoje já não comporta mais o que antes comportava? O que está
vazando? O que você tenta sustentar, mas percebe que já não cabe?
Convidar o cliente a escrever uma
carta para o espaço que precisou deixar, para aquilo que não serve mais, se
despedindo, elaborando o luto.
Fazer uma instalação simbólica:
uma mesa posta com xícaras quebradas, como representação dos lugares vazios,
das ausências, e também dos espaços de reconstrução.
Trabalhar com o conceito do
Kintsugi, técnica japonesa que valoriza as cicatrizes da cerâmica, preenchendo
as rachaduras com ouro, como uma metáfora de que as feridas também fazem parte
da beleza e da história de cada um.
O filme Vitória nos lembra que
colar os cacos é um ato de resistência. De amor próprio. De reinvenção. Mas
também nos lembra que nem sempre o colado volta a ser recipiente — às vezes,
vira obra. Vira memória. Vira história.
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Sobre a autora: Mônica Ruibal
De São Paulo, graduada em
Pedagogia com pós graduação em Arteterapia e Arte Reabilitação
Especialista em autismo, atuando
em equipe multidisciplinar.
Em 2024 foi convidada a compor um
painel sobre Arteterapia no Tearteiro, maior Festival de Autismo e Arte da
América Latina.
ARTBRAZIL, em Fort Lauderdale, expondo a sua arte e promovendo workshops sociais sobre o tema Autismo.
Criadora do grupo Arte Autismo
onde promove encontros e workshops sobre o tema.
Que lindeza de reflexão! Tocou a alma e abriu janelas de reflexões e possibilidades. Obrigada Monica por tua generosidade de partilhas💝
ResponderExcluirTexto maravilhoso! Me acendeu a vontade de ver o filme. Agradecida.
ResponderExcluirUal! Que olhar! Que sensibilidade, que reflexão ❤️
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