domingo, 5 de abril de 2015

O luto, as projeções e a arteterapia


Por Maria Cristina Resende


A morte é a maneira mais brutal de guilhotinar os fios da projeção. Estes, que se comportam como elásticos, retornam com a força proporcional à sua tensão e invadem, com a mesma brutalidade que fora cortada, as intimidades da psique. Ali, tocam e acordam quietos conteúdos que habitam o entorno daqueles outrora projetados, e agora, todos insones, reclamam e berram ao pé do ouvido do Ego, que desorientado com tantas informações pode recorrer a qualquer patologia para salvar-se do não preparado confronto, do não trabalhado “recolhimento de suas projeções”.

Resta a ele o apoio de alguma ferramenta terapêutica para retomar suas projeções e restabelecer a dinâmica psíquica que fora acometida pelo mal súbito da realidade. Esta revela que na verdade quem morre não é o outro, mas o outro em nós. E mais difícil do que agüentar a morte de alguém é agüentar a morte de um de nós!

Crises de ansiedade, crises de pânico, fobias ou problemas do sono podem ser uma dessas balsas que o Ego se agarra diante da possibilidade de um naufrágio psíquico. O que fazer diante do horror do incontrolável? Diante da impotência humana sobre os ciclos de vida-morte-vida? Não acredito que o caminho seja ir contra este movimento, mas a favor, ou seja, não se segurar em bóias que na verdade só deixam à deriva os afetos “abandonados”, mas mergulhar o mais fundo possível, sentir a dor, refletir sobre esses conteúdos que invadem a mente, mas que um dia estiveram depositados em outrem. Deixar que esses vizinhos, agora acordados e solidários àquele que retorna só para sua casa, falem e se apresentem.

Ao fazer esta, nada fácil, tarefa é possível compreender quem de nós esteve junto com aquele que partiu, como o olhávamos, o entendíamos, o que esperávamos, como o sentíamos e principalmente, o que ele nos evocava. Nesse processo, além de sermos “obrigados” a nos reaver com o que projetamos no outro, se faz necessário que nos apresentemos aos conteúdos vizinhos, que agora querem seu espaço.

Essas foram as minhas percepções ao longo dos primeiros dias do meu processo de luto. Perdi uma irmã de apenas 11 anos, literalmente de um dia para o outro, não tivemos tempo para compreender que havia um processo de morte e que aquela pessoa, e tudo meu que estava nela, estava indo embora.

A partir das minhas reflexões e da leitura que a Psicologia me dá, enquanto Psicóloga que estou, percebi em mim mesma e nos meus familiares tudo o que orientava e pontuava para meus pacientes de forma muito viva e gritante. Com a ajuda da literatura tenho a oportunidade de compreender mais a fundo esse processo e de poder estar aqui hoje passando adiante minhas percepções e conclusões a nível profissional.

A compreensão do processo de luto é uma tarefa que exige muita paciência e reflexão por parte de quem vive, de quem está em seu entorno e principalmente do profissional que trabalha com alguém que vive este momento. Quem vive, acredita, durante um bom tempo, que não resistirá à tamanha dor, busca culpar-se, punir-se pelo que fez ou deixou de fazer. Quem está ao seu entorno, muitas vezes não agüenta compartilhar o sofrimento e, ou se afasta, ou busca através de frases de efeito, de conselhos clichês e até mesmo de curas mágicas, possibilidades externas para ajudar a “acabar” com a dor (talvez com o objetivo máximo, ainda que oculto, de acabar com a própria dor). Por fim, o profissional precisa de paciência e de uma escuta refinada para saber que este é um movimento muito singular da psique e que tem um tempo próprio, e não as 2 semanas dadas pelo nosso “adorável” DSM-V. um tempo onde lentamente a fala e/ou as expressões realizadas no consultório podem dar indicativos desse movimento psíquico, para onde ele aponta e o quem vem junto com ele. Freud já dizia em Luto e Melancolia que 
“embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-la a tratamento médico. Confiamos que seja superado após certo lapso de tempo, e julguemos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele”.[1]

Para Jung, em nossa psique reside um grande conjunto de conteúdos que chamamos complexos. Estes estão conectados uns com os outros, assim como ilhas de um arquipélago que se conectam através de um substrato em comum. Nossos complexos se apresentam para nós através das projeções, movimento natural da psique em que olhamos o outro através das nossas lentes, vemos no outro partes de nós, boas ou não que ficam carregadas da nossa energia psíquica. O que tornam as relações mais próximas muito afetivas, ou melhor, afetadas por nossos conteúdos. No luto, a perda do objeto dessas projeções, faz com que elas retornem para nossa psique, e quando ocorre um movimento muito brusco de introjeção da libido, como dito anteriormente, esses complexos ficam carregados e acabam por invadir o Ego com essa sobrecarga de energia, daí as diversas informações que ele recebe e que podem bagunçar ainda mais o processo doloroso do luto.

Por isso, o profissional deve atuar sobre o outro de modo a proporcionar um espaço onde seja possível o esvaziamento desses conteúdos, um lugar onde se possa falar sobre a dor, sobre os temores, as lembranças e sobre tudo mais que venha com esse processo. Falar sobre a morte é importante, lembrar da morte do ente querido é importante, assim disse Freud:
“Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas[2]

Ou seja, é preciso que cada memória e momento que venha à tona sejam colocados através de palavras ou expressões plásticas para que essa energia seja aos poucos liberada para realizar novos fios de projeção, pois “quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido”[3].

É quando a arteterapia é muito bem vinda neste penoso processo, pois pode ser um instrumento de descarga dos conteúdos nos quais estamos tocando, ou sendo tocados e que nos traz a possibilidade de ter um material fora de nós para olhar, refletir e falar sobre. As cores podem ser transformadas, suavizadas ou intensificadas, os materiais podem sofrer desdobramentos e se tornam aliados no processo de elaboração e de liberação dos afetos “abandonados” em nossa psique. Os medos ganham forma, a tristeza, a culpa ou as punições ganham cara e nome, podemos conversar com elas.

Pinturas realizadas com cores aguadas nos permitem a sutileza de entrar em contato com emoções profundas, com o não controlável, com o soltar as mãos através das tintas que escorrem sobre os papeis. As colagens nos ajudam a organizar e a pescar os rastros projetados, a argila toca no homem mais arcaico e traz a tona o que pode se esconder lá no fundo de nossa mente, e principalmente a livre expressão que nos mostra onde e como está o processo.

O uso de ferramentas da arteterapia no processo de luto não deveria se limitar aos consultórios após o processo já instalado. Percebi que as instituições hospitalares oferecem quase zero de ajuda aos familiares e pacientes em estados terminais ou em risco grave de vida. Penso que a Psicologia Hospitalar e a Arteterapia no contexto hospitalar podem ajudar a trabalhar esses laços projetivos, inserindo o tema da morte em reuniões com o grupo familiar trazendo a tona questões relacionadas à perda daquele ente querido, às imagens mentais e aos afetos latentes naquele momento tão delicado e singular na vida de um indivíduo. Espaços dentro das instituições onde, através das técnicas expressivas, toda a angustia que envolve esse momento possa ser expressada.

Com isso, acredito que a morte ganhe um sentido maior que a perda objetiva de alguém, mas uma possibilidade de reencontrar consigo mesmo, uma oportunidade única, ainda que muito dolorosa, de juntar nossos fragmentos e buscar aquilo que realmente é caro para nós, aquilo que realmente nos move e nos motiva, aquilo que nos faz acordar todos os dias e ir em busca, ainda que seja a própria busca!




[1] FREUD, Sigmund. Obras Completas, Vol. XIV. Cia das Letras.
[2] idem
[3] ibidem

contato: naopalavra@gmail.com

2 comentários:

  1. Olá, Eliana Moraes, eu li seu texto e foi bastante inspirador para minha pesquisa em arteterapia e a morte.
    Eu não entendi bem a metáfora do elástico e sua relação com o ego, tendo a projeção como (mecanismo de defesa) como saída. "...retomar suas projeções e restabelecer a dinâmica psíquica que fora acometida pelo mal súbito da realidade".
    porque "a morte é a maneira mais brutal de guilhotinar os fios da projeção"? e de que forma a projeção pode ser vista como algo capaz de restabelecer a dinâmica psíquica?
    Peter Gay, um dos principais biógrafos de Freud define projeção como "a operação de expulsar os sentimentos ou desejos individuais considerados totalmente inaceitáveis, ou muito vergonhosos, obscenos e perigosos, atribuindo-lhes a outra pessoa". disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Proje%C3%A7%C3%A3o_(psicologia). acessado em. 17/10/2015
    Desde já muito grato.
    Att. Prof. Edilson Botelho

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  2. Olá, Eliana Moraes, eu li seu texto e foi bastante inspirador para minha pesquisa em arteterapia e a morte.
    Eu não entendi bem a metáfora do elástico e sua relação com o ego, tendo a projeção como (mecanismo de defesa) como saída. "...retomar suas projeções e restabelecer a dinâmica psíquica que fora acometida pelo mal súbito da realidade".
    porque "a morte é a maneira mais brutal de guilhotinar os fios da projeção"? e de que forma a projeção pode ser vista como algo capaz de restabelecer a dinâmica psíquica?
    Peter Gay, um dos principais biógrafos de Freud define projeção como "a operação de expulsar os sentimentos ou desejos individuais considerados totalmente inaceitáveis, ou muito vergonhosos, obscenos e perigosos, atribuindo-lhes a outra pessoa". disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Proje%C3%A7%C3%A3o_(psicologia). acessado em. 17/10/2015
    Desde já muito grato.
    Att. Prof. Edilson Botelho

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