segunda-feira, 13 de abril de 2015

[Des]aprendendo com os mestres

Flávia Hargreaves

"As crianças sabem algo que a maior parte das pessoas esqueceram." Keith Haring 

Keith Haring. Série 28 cabeças. 1989, aos 31 anos.

“Em 1910, Kandinsky estava com quarenta anos e contava com um belo passado de pintor figurativo. De repente, esquece o ‘ofício’ e começa a rabiscar como uma criança de três anos que ganhou papel, lápis e tintas. [...] Kandinsky se propôs a reproduzir experimentalmente o primeiro contato do ser humano com um mundo do qual não sabe nada, nem sequer se é habitável. É apenas algo diferente de si: uma experiência ilimitada, ainda não organizada como espaço, cheia de coisas que ainda não tem lugar, forma ou nome.” [...] Kandinsky se propõe a “analisar no comportamento da criança, a origem, a estrutura primária da operação estética” [1] do qual ela se afasta gradativamente cedendo lugar a experiência racional e intelectual do mundo, passando a viver em meio a significados e explicações.

Wassily Kandinsky. Primeira Aquarela Abstrata. 1910, aos 44 anos.


Ao me apresentar como arteterapeuta, ouço com frequência comentários como: “arteterapia deve ser ótimo para crianças”, “para pessoas com necessidades especiais”, “para doentes mentais”... Ou seja, a arteterapia não atende a indivíduos adultos “normais”. Estas reflexões me levam a uma outra fala muito comum no “mundo adulto”, que quando solicitado a se expressar através de imagens defende-se automaticamente: “Parei no boneco palito”, “Não sei desenhar”, etc.

Pablo Picasso. Ciência e Caridade. 1897, aos 16 anos.
“Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisei uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças” Pablo Picasso
Ainda não tenho clareza se “eu não sei desenhar” desqualifica ou qualifica o sujeito. Considerando o processo de artistas como Kandinsky e Picasso, só para citar alguns que se impuseram este “desaprender”, em um primeiro (ingênuo) momento posso ser levada a concluir: Que maravilha !!!! Parou no ponto que grandes artistas se esforçaram em recuperar. Mas não.

Muitas vezes, simplesmente ao “crescer”abandonaram (desqualificaram) a auto-expressão por imagens da infância, mergulhando de cabeça na racionalidade em detrimento da imaginação ... Mas em algum momento da vida este “homem racional” se depara com algo que a racionalidade não dá conta, as explicações não aliviam a dor e neste momento a arteterapia pode auxiliar na recuperação de um sentido, que não é um significado ou uma explicação.
“Todas as criaturas nascem artistas. A dificuldade é continuar artista enquanto se cresce.”  Pablo Picasso
O que significa, afinal, “eu não sei desenhar?” Ou melhor o que significa “saber desenhar”? Keith Haring sabe desenhar? Sim, sabe. Saber desenhar, não só na perspectiva da arteterapia, mas também em arte, é, a meu ver descobrir um traço individual, apropriar-se de um gesto, de um movimento que lhe é próprio e valorizá-lo, buscando nesta experimentação de si através do desenho e da pintura novos modos de existir e agir. 

Os grandes mestres da Arte Moderna, Kandinsky e Picasso nos ensinam a importância de “desaprender” e resgatar a criança em sua espontaneidade e potência. O setting arteterapêutico se mostra um local propício para, inspirados nestes artistas, trilharmos este caminho de desconstrução de modo criativo. Se por um lado a história da arte nos inibe com sua exuberância e parece não restar opção senão a contemplação, a mesma história nos mostra novos caminhos e possibilidades. A Arte Moderna e a Arte Contemporânea, principalmente, nos convida a participar deste mundo criativo. Segundo Argan,  a arte “amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades e modalidades de ação".

Nos últimos anos, temos tido a oportunidade de entrar em contato “não-virtual” com a obra de grandes nomes da Arte Moderna e Contemporânea e considero esta experiência fundamental na formação do arteterapeuta. Vale lembrar que o CCBB trouxe recentemente (2015) a exposição “Kandisnky: tudo começa num ponto” (Rio, São Paulo e Brasília) e que “Picasso e a Modernidade Espanhola” já pode ser visitada em São Paulo e, em junho de 2015 estará no Rio. Keith Haring também já esteve por aqui em exposição no CCBB e na Caixa Cultural.

contato: naopalavra@gmail.com

[1] ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.

Wassily Kandinsky (1866/ 1944), artista russo. Arte Abstrata.
Pablo Picasso (1881/1073), artista espanhol. Cubismo.
Keith Haring (1958/1990), artista norte-americano.  Pop Art.

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