segunda-feira, 26 de abril de 2021

CUSTOMIZANDO EMOÇÕES: INTERFACE ENTRE ARTESANATO E ARTETERAPIA - PARTE 2

 

Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com


Abandonando a extensiva tarefa de explicar a diferença entre Artesanato e Arteterapia, busco neste texto mostrar a interface entre dois conceitos tão próximos em sua essência e ao mesmo tempo tão distantes em seus objetivos e resultados.

Meu trabalho de pesquisa, ao longo de vinte e oito anos como artesã, possibilitou tecer reflexões, a partir de uma visão abrangente, sobre o fazer artesanal.  O conceito que a palavra “artesanal” adquiriu ao longo do tempo, como sendo “tudo aquilo que é feito com as mãos”, se torna muito simplista diante da perspectiva de que há uma estreita ligação entre executar e sentir. 

A habilidade exigida pela técnica artesanal, a necessidade da perfeição, a busca constante pela estética encontra seu contraponto na criatividade livre e descompromissada, cujo foco é a interiorização.

O processo criativo tem enfoques diferentes, quando observado pelo Artesanato ou pela Arteterapia. O primeiro determina apreender técnicas de uso comum, enriquecidas por habilidades individuais. Já a Arteterapia, liberta de fatores limitantes, utiliza e vê o processo criativo como facilitador, como meio para exteriorizar o que de mais interiorizado possa existir. Sobre o ato criativo:


Criar é, basicamente, forma. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER, 2014, p.9).

 

O objetivo  é ampliar o olhar do artesão, a partir da Arteterapia, para que ele possa ampliar seu olhar e perceber que as técnicas artesanais transmitidas por gerações, por vezes enrijecidas e endurecidas podem dar lugar ao fluir de ideias e sentimentos e que o "customizando emoções" do artesanato dá lugar ao “conhecendo emoções” na Arteterapia.

O local escolhido para a realização das atividades foi uma instituição beneficente de São Paulo, cuja finalidade maior é o desenvolvimento integral das potencialidades humanas, por meio da assistência à criança, ao adolescente, ao jovem e ao adulto com deficiência intelectual.

A Instituição conta vários trabalhos realizados por voluntários, entre eles um espaço para execução de peças artesanais chamado de “Cantinho do Artesanato”, formado por voluntárias e por mães cuidadoras de atendidos do local. Dentre os objetivos do grupo está o aprendizado de técnicas artesanais e sua reprodução, assim como a execução de peças para comercialização em eventos promovidos pela Instituição, visando angariar fundos. 

A excelência exigida pelo artesanato satisfazia parte desse grupo; entretanto as cuidadoras pareciam buscar ali algo além, talvez alento a uma rotina conturbada pelo excesso de afazeres, talvez uma forma de amenizar as preocupações incessantes, talvez o aprendizado de um novo olhar. O Artesanato, pura e simplesmente não atendia a esta demanda e, por vezes, frustrava, aborrecia e irritava enquanto exigia uma beleza não contemplada pela situação de vida daquelas mulheres.

Notou-se, neste momento, a necessidade de trazer a Arteterapia para aquele contexto. Dessa forma, novo projeto implantado e nomeado “Cuidando do Cuidador” que passou a funcionar em dia e horários diferentes.

Optou-se por “Cuidar do Cuidador”, por entender que a sociedade cobra destes comportamentos equivocados – como doses excessivas de coragem, renúncia, desapego – o que, muitas vezes, o distanciam de um cuidar com discernimento e equilíbrio. 

O objetivo do processo arteterapeutico foi o de fortalecer a autoestima e a autoconfiança, valorizando a importância do equilíbrio emocional. Neste percurso, notou-se nos participantes uma diminuição das manifestações de ansiedade, irritabilidade e agressividade, consequente amenização do estresse.

 Realizado entre os meses de março e novembro de 2018, o processo teve trinta e quatro encontros. Selecionei dois, nos quais pode-se facilmente enxergar uma interface entre Artesanato e Arteterapia

O primeiro encontro fazia parte do bloco “Redução do Estresse e da Ansiedade” e tinha como objetivo possibilitar ao participante manter o foco no presente, no que se estava realizando. De acordo com Santesso (2015, p.91): “Objetivo, remeter os participantes à consciência de que somos nós que criamos a nossa própria realidade”. A atividade foi nomeada “Tecendo a vida: entrelaçando experiências – Tear de gravetos”


Foi sugerido aos participantes que escolhessem, como suporte, um graveto que poderia ter espessura fina ou grossa. Depois, deveriam montar os fios na posição vertical, representando situações trazidas pela vida, para, então, tecer entre eles, buscando a solução dos problemas. O resultado, o desenho formado pelos fios, a trama que eventualmente surgisse, representaria formas de como se contornar situações e o que escolher em tais situações (escolha os fios).

 Sobre a possibilidade de escolhas:

 

Muitas pessoas nutrem sentimentos que causam sofrimento e muita dor por acreditarem que sua realidade é prejudicada por elementos externos e alheios, porém, mesmo que estes elementos existam cabe somente a nós mesmos tomarmos a rédea de nossos destinos e tecermos nossos caminhos sem parar um minuto como se fosse uma teia de aranha. (SANTESSO, 2015, p.92).

O resultado foi inusitado: o montar despretensioso em um tear improvisado que permaneceu longe de regras especificas de tecelagem e não trouxe a peça perfeita e sim a exteriorização de sentimentos.

Atividade “Tecendo a vida”

Fonte: arquivo pessoal

O segundo encontro fazia parte do bloco “Resgate das Brincadeiras Infantis”. Seu início foi uma “viagem no tempo”, na qual os participantes foram convidados a lembrar das regras do jogo Cinco Marias.  

Durante a atividade, foi estimulado o contato com o feltro, cuja maciez era “quase um carinho”, conforme depoimento. Surgiram dificuldades em colocar o fio na agulha, em escolher a linha que combinasse formaram. Mas, em pouco tempo, tudo isso se tornou detalhes que contribuíam para execução. Aos poucos, os participantes passaram a relatar que cada ponto despertava uma lembrança:


O trabalho delicado e minucioso do “ponto por ponto” ajuda-nos a redimensionar a compreensão do tempo que deve-se destinar o trabalho criativo, e a paciência para ver pequenos resultados decorrentes de um lento processo, feito de pequenos passos (PHILIPPINI, 2018, p.65)

 Atividade “Cinco Marias”

Fonte: arquivo pessoal

A observação do resultado também surpreendeu. A preocupação com o cabamento deu lugar à simples possibilidade de jogar, ao prazer de ver os saquinhos jogados e à alegria ao pegá-los.

Foram anos dedicados ao Artesanato e um caminho que parecia belo pois supostamente era enfeitado com as técnicas ensinadas. Muitos profissionais surgiram, muito tempo foi valorizado. Lidar, falar e ensinar era fácil, afinal o fazer de forma manual, o fazer com as mãos nasceu junto com o homem e a arte sempre esteve presente.

Posteriormente, a Arteterapia surge com seu olhar peculiar: o olhar para dentro. O ato criativo, interiorizado em sua plenitude, valoriza o que o ser humano tem de mais sagrado: si próprio.

Todos os participantes do processo aqui descrito relataram amadurecimento pessoal e a sensação de terem melhorado suas atitudes. É importante para o cuidador ter um tempo para olhar para si, enxergar-se no mundo, sentir que suas necessidades são autênticas, reais e merecem atenção. Ter um espaço para si é uma grande vitória. Também é importante poder enxergar o outro, enxergar o problema do outro e estar fortalecido para auxiliar, sem mais o viés da vitimização:

Os objetivos sociais destas terapias em grupo favorecem o reconhecimento da dimensão simbólica presente na relação com o outro, as qualidades humanas positivas e negativas e o aumento da tolerância e paciência para com a dificuldade dos outros indivíduos, desenvolvendo sentimentos de companheirismo, intimidade, satisfação, identificação, semelhança, compreensão, esclarecimento, apoio, proteção e ajuda (SANTESSO, 2015, p.25).

 

Sair vitorioso é poder sair das ideias pré-concebidas, das regras impostas, do modo correto de fazer. É ganhar da estética, da beleza pela beleza, da perfeição exigida por um mundo imperfeito. É ganhar de si mesmo. E para que se siga em frente, enfrentando o que vier, só resta viver. Viver de forma criativa:

 

A criatividade é a essencialidade do humano no homem. Ao exercer o seu potencial criador, trabalhando, criando em todos os ambitos do seu fazer, o homem configura a sua vida e lhe dá um sentido. Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário (OSTROWER,1987, p.166).

 

Viver pode sim ser fácil ou difícil; que se siga, então, customizando emoções!

Bibliografia

OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. 30ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. 

PHILIPPINI, A. Afinal, o que é Arteterapia? Imagens da Transformação. Pomar, 1998. 

______.  Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Wak, 2018. 

SANTESSO, W. A. N.  Técnicas de Oficinas Expressivas: a Arte como forma de ressignificação. São Paulo: Edição do Autor. 2015.

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Sobre a autora: Silvia A. S. Quaresma


Arteterapeuta

Graduada em Letras

Pós-Graduada em Finanças

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora de Othila Arteterapia em Ação

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento individuais e em grupos em Arteterapia

 

3 comentários:

  1. Parabéns, Silvia pela riqueza deste texto. Está linha tênue que difere o artesanato da Arteterapia é muito singular. A leitura de ambos os textos trouxe memórias do por quê decidi por aprofundar esta pesquisa para além do artesanato: justamente por perceber que algo a mais poderia ser oferecido às pessoas do curso que fazia na época. E mais uma vez, através do seu relato, foi possível reafirmar a potência da Arteterapia no contexto e sob a ótica de atividades artesanais. Gratidão por nós presentear com suas experiências! Tânia Salete - Caminhartes.Arteterapia

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  2. "Ser vitorioso é sair das ideias preconcebidas"está frase pode salvar vidas! Parabéns Sílvia. Beatriz Coelho

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  3. Silvia,
    essa parte 2...não tem como eu não me "incluir" nela, pelo menos emocionalmente. Afinal de contas, estávamos nós, juntas e com mais 2 amigas, fazendo parte da equipe. Adorei ler sobre os 2 encontros e relembrar o nosso projeto lá na instituição. Foi um aprendizado e tanto, né ?!
    Texto excelente e muito esclarecedor!!!
    Um forte abraço, Claudia Abe

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