Por Silvia Quaresma
Como
trabalho de conclusão de curso apresentado como exigência parcial para obtenção
de título de especialista em Arteterapia, apresentei artigo intitulado
“Customizando emoções: Interface entre Artesanato e Arteterapia.
É exatamente esta contraposição de olhares, o do
artesão fazendo Arteterapia e do arteterapeuta utilizando técnicas artesanais,
que busco mostrar neste relato, e a motivação deste texto.
Houve
um tempo em que o artesanato nada mais era do que a extensão de um aprendizado
artístico e totalmente direcionado ao sexo feminino. A sociedade preocupava-se
em formar lindas damas ocupadas única e exclusivamente com o toque harmonioso
do piano, cuja função era o entretenimento dos familiares e amigos próximos
eleitos pela figura masculina. A habilidade era imposta e pouco se dava atenção
às aptidões individuais. A dona de casa perfeita, aquela que estaria pronta
para casar-se, deveria saber tocar, coser, costurar, bordar – tudo com
perfeição.
Com
o passar do tempo, as atividades manuais saíram das residências e ficaram nas
mãos daqueles que precisavam produzir para seu uso: escravos ou de imigrantes que não tinham
recursos suficientes para aquisição de utensílios prontos. O ofício do artesanato,
longe de ser uma forma de expressão artística, era simplesmente a transmissão e
o aprendizado de técnicas – podendo ser observado em desde a cesta de um
apanhador de frutos até na rede de um pescador.
No
Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, podiam ser vistos pelas calçadas, em feiras
improvisadas, os hippies que produziam e vendiam artigos artesanais.
A
moda fashion mudou a visão que se
tinha sobre o produto artesanal, quando levou às passarelas artigos únicos,
feitos à mão. Segundo Córdula (2013), “o artesanato é simplesmente a obra
material do artesão, fruto do seu trabalho e é realizado através das mãos na
confecção de objetos destinados ao conforto do homem, carregados de expressões
da cultura”.
Como
isso, o artesão finalmente passou a ter seu destaque e importância, apesar de ainda
singela. Em contrapartida, não demorou para que os artistas plásticos se
manifestassem para prontamente exigir uma distinção entre artesanato e arte,
pois apesar de fazerem uso, de forma distinta, do processo criativo, não
tardaram expressões que denominavam seus trabalhos como “lindos artesanatos”.
Como
um acordo de cavalheiros, artesanato e arte ocupavam cada qual um extremo: o artesanato de um lado, comprometia-se em
ensinar diversas técnicas e habilitava, a quem quer que fosse, a possibilidade
de reproduzir. A arte era a expressão do sentimento puro e simples e, como tal,
seria dificilmente ensinado ou transmitido. A obra de arte resultante era para
admiração e deleite. Muito embora divididos
por conceitos e convicções, artesão e artista passaram a viver ilusoriamente
separados, mas intrinsecamente unidos:
O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria, inventa, concebe. Um depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física, a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em todo o artista que trabalha com as mãos existe um artesão. (CÓRDULA, 2013, p.11)
É comum à atividade artesanal, a paciência, a harmonia, a busca pelo belo, a paz. Fazer artesanato é entregar-se à tranquilidade e ao aprendizado. Aquilo que é aprendido cede lugar à repetição – e esta garante ao artesão ser expert em sua técnica. A distinção entre arte e artesanato fica evidenciada:
O artista distingue-se do artesão que
continua a produzir objetos de uso e preso às formas tradicionais. Uma das
características do artesanato, em contraposição à arte então nascente, é que
esta se caracteriza pela busca de novas formas e estilos, enquanto que o
artesanato é conservador e repetitivo. Nele, a experiência e passada de pai
para filho e não como conhecimento estético, forma estilística, mas como a
forma do objeto, ou seja: um copo se faz assim, uma bandeja se faz assim, um
cálice se faz assim (GULLAR, 1994, p.8).
Em
meio a necessidade constante de aprendizado e, consequentemente, a transmissão
deste, surge a figura do arte-educador.
Através da arte buscou-se conhecer e entender o desenvolvimento humano.
A arte efetivamente começou a contribuir para o aprendizado universal. Segundo Arheim (1988), “o artista usa as
categorias de forma e cor para apreender algo universalmente significativo no particular”
(p.13).
Na
medida em que a arte procurava representar o todo, também expressava
singularidades, passando a ser meio eficaz para o conhecimento do indivíduo. O
que a princípio era um estudo do universo, da evolução humana, da sociedade, da
presença e atuação neste contexto, passou a ser um processo de individuação. O
fazer artístico passou a ser instrumento de reflexão sobre as possibilidades
e/ou impossibilidades de se criar. Este processo criativo que se realiza de
forma diferenciada, tornou-se ímpar.
Toda
produção é cultura, mas toda a cultura não é, necessariamente, arte. Segundo Moraes
(2018, p.23): “Artistas são seres sensíveis às questões mais profundamente
humanas, pois eles veem, sentem e expressam o mal-estar que muitos sentem, mas
não sabem nomear”.
Aparentemente,
estando num rio de informações e supondo que este irá se encontrar com um mar
de contradições, a correnteza nos leva à certeza de que artistas plásticos,
artesãos e arte-educadores observam com entusiasmo, amor e respeito o ato de
criar. O ato criativo surge, heroico, como
a real expressão da arte:
A arte, com sua característica capacidade de expressar concomitantemente uma multiplicidade de níveis de significado, mostra-se capaz de expressar a complexidade humana, em seus conteúdos conscientes, inconscientes e quase conscientes, revelando-se um recurso poderoso e eficaz (CIORNAI, 1994, p. 29).
Para
o artista plástico, expressão pura e simples de sua arte. Para o artesão, o
nascer de um trabalho metódico e único. Para o arte-educador, meio eficaz de
transmissão de cultura. Para o arteterapeuta, a exteriorização de sentimentos.
A
Arteterapia não consiste em fazer a arte pela arte, mas sim, no uso do processo
criativo de cada indivíduo (que se dá de forma impar e diferenciada) como meio para
atingir os objetivos desejados por clientes – e organizados pelo arteterapeuta.
Na opinião de Moraes (2018, p.24): “Em Arteterapia as atuações têm um lugar
especial, pois acreditamos que o ato criativo é uma atuação do paciente. Ao
criar, o paciente fala de si em ato, de inúmeras formas”.
Outro
detalhe que deve ser salientado quando pensamos no público que busca a
Arteterapia foi abordado por Moraes:
É comum que a clínica da Arteterapia
seja procurada por pessoas que já tem a prática nas artes: trabalhos manuais,
artesanato, artes visuais. Por um lado, o conhecimento de algumas técnicas é
interessante pois o paciente sente-se à vontade no manuseio dos materiais. Tais
pessoas, porém, são muito comprometidas com a estética, com o belo, até porque
essas produções necessitam de aprovação do público, além da preocupação com “o
que é vendável” (MORAES, 2018, p.36).
O
conhecimento de algumas técnicas é
facilitador
em primeiro aspecto, limitador em outro. O comprometimento desmedido com a
estética pode sim bloquear alguns conteúdos e trazer prejuízo para o processo
de exteriorização dos sentimentos. Por
outro lado, entrega de um trabalho belo, que obedeça a padrões pré-estabelecidos
e que demonstre técnicas apreendidas é característica do artesanato. Aliás, o
fazer artesanal também é muito particular.
O artesanato pode ser feito em qualquer lugar, assistindo TV,
conversando.
A
Arteterapia tem outros objetivos e, portanto, pede introspecção, dedicação,
exclusividade, atenção. O resultado não é mais aquele previamente esperado, e
sim, único e exclusivo.
O
artesanato é uma atividade pacífica, a arte não necessita ser. A Arteterapia pode ser a expressão de um
estado caótico, de uma mistura de sentimentos. O ato de criar obedece, então,
às singularidades correspondentes ao artesanato e a Arteterapia.
Singular
também é o olhar diferenciado aos recursos materiais de trabalho do artesão e
arteterapeuta – como buscam conclusões diferentes, lidam todo o processo
criativo de maneira ímpar. O artesão
obedecendo sempre às técnicas, à estética, à produção de peça perfeita e única,
digna de admiração e elogios, capaz de despertar o interesse para aquisição, vê
no material sua riqueza de possibilidades. O arteterapeuta, por sua vez,
interessado na sensibilização do material, tem outra visão, enxerga o fazer
criativo como uma alavanca para estimular a expressão de conteúdos internos,
como nos mostram Maciel e Carneiro (2012):
O ato de criar leva-nos à exploração dos diversos materiais de trabalho que funcionam como estímulos sensoriais que, por sua vez, nos remetem a lembranças afetivas. Essas memórias nos fazem entrar em contato com a nossa história, experiências e sentimentos íntimos, despertando a função criadora e favorecendo o aparecimento de imagens (elaborações mentais que guiam a construção representativa) carregadas de energia psíquica e significados subjetivos (p.55).
Artesão
e arteterapeuta buscam conclusões diferentes, lidam com o processo criativo de
forma ímpar. O artesão, obedecendo à técnica, à estética, à produção da peça
perfeita e única, capaz de despertar interesse para aquisição, vê no material
uma riqueza de possibilidades. O Arteterapeuta, interessado na sensibilização
do material tem outra visão, vê a produção artística como uma alavanca para
estimular a expressão de conteúdos internos.
No
próximo texto abordarei produções que mostrarão resultados compatíveis com o
olhar de cada um.
Bibliografia
ARHEIM, R. Arte
& Percepção Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora. Editora Nova Versão.10ª ed. 1988.
CIORNAI, S. Arte Terapia Gestáltica: um caminho para a expansão da Consciência. Revista de Gestalt, v. 1, n. 3, p.5-31, 1994.
CÓRDULA, R. Afinal, que é Artesanato? Revista Segunda Pessoa, v.3, n.1, 2013. Disponível em: www.segundapessoa.com.br/edicoes/1/pdf. Acesso em 09 out 2018.
GULLAR, F. O artesanato e a crise da arte. Revista de Cultura Vozes, v 8, n.4, p.7-12, 1994.
MACIEL, C.;
CARNEIRO, C. (Org.). Diálogos Criativos
entre a Arteterapia e a Psicologia
Junguiana. Rio de Janeiro: Wak. 2012.
________________________________________________________________________
Sobre a autora: Silvia A.S.Quaresma
Arteterapeuta
Graduada em Letras
Pós-Graduada em
Finanças
Pós-Graduada em
Arteterapia e Criatividade
Professora especialista
de artesanato
Idealizadora do Projeto
Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia
Idealizadora de Othila
Arteterapia em Ação
Coordenadora de Grupos
de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários
Atendimento individuais
e em grupos em Arteterapia
Parabéns!
ResponderExcluirAdorei a matéria bem como as explicações que foram bem objetivas.
Sucesso!!!
Silvinha
ResponderExcluirMuito bom saber mais sobre as maravilhas da Arte.
Privilégio estarmos ao seu lado!!!!
Silvinha, seu trabalho é sensacional, é edificante.
ResponderExcluirTe admiro como pessoa e como profissional, parabéns.
Beijos Amanda Góes
Silvia,
ResponderExcluirexcelente texto! Tinha dado uma olhada rápida neste texto outro dia...daí li agora há pouco a segunda parte e voltei para ler aqui novamente.
Parabéns!!!
bjs, Claudia Abe