segunda-feira, 3 de maio de 2021

REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA CRIATIVA – PARTE 2

 


Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

As reflexões sobre as aplicações da escrita criativa nas práticas arteterapêuticas seguiram seu curso após a publicação do primeiro texto sobre o tema há alguns meses CLIQUE AQUI. As experiências clínicas individuais e grupais foram solidificando as percepções e orientações sobre o uso deste recurso em meu repertório como arteterapeuta, de forma cada vez mais consciente. E no percurso de me instrumentalizar para esta prática, resgatei a leitura de um livro que muito me inspirou no início do meu caminho de escrita neste blog. No ano de 2013 ganhei de uma pessoa querida o livro “Crônicas para jovens de escrita e vida” de Clarice Lispector, que me estimulou aos enfrentamentos da escrita intuitiva e hoje articulo as palavras desta mestra com a escrita criativa dentro do setting arteterapêutico. 

Este é um livro que reúne alguns fragmentos dos escritos de Clarice para o jornal ao qual era colunista, mas selecionados aqueles em que ela falava sobre os caminhos de sua escrita, caminhos estes, sem destino certo: 

Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá...

 

Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver com o que escrevi. Paciência. (LISPECTOR, 2010, 74-76) 

Este é o convite que fazemos ao experienciador da Arteterapia quando o apresentamos à escrita: que ele se liberte do controle racional, tanto da forma culta de escrita, quanto ao fluxo da temática abordada. Inclusive, ao fazer este convite ao meu paciente, tomo emprestado a fala de Clarice: “O que salva então é escrever distraidamente.” (LISPECTOR 2010, 95). 

Este “escrever distraidamente” promove um rebaixamento de consciência ao qual Clarice muito bem descreve com sua poética, mas que nós arteterapeutas podemos lê-los para compreender o que acontece com nossos pacientes:

 

Aliás, pensando melhor nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo.

 

Ir me obedecendo – é na verdade o que faço quando escrevo, e agora mesmo está sendo assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. Às vezes ir me seguindo é tão difícil...

 

Bem, mas o fato é que mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei... (LISPECTOR, 2010, 73-75)

 

Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho... (LISPECTOR, 2010, 77) 

Este rebaixamento de consciência abre portas para o contato com conteúdos mais inconscientes antes não acessados devido ao controle racional. Clarice descreve estes momentos de insights sobre si mesma durante o processo da escrita, aos quais podemos fazer um paralelo com o processo que acontece dentro setting ao convite do arteterapeuta:

 

Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia. (LISPECTOR, 2010, 85)

 

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 2010, 91-92)

 

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento... De outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. (LISPECTOR, 2010, 103) 

A migração da expressão oral para a escrita, dentre outros fatores, é tão benéfica pelo fato de convidar o sujeito à um demorar-se, e consequentemente a um maior contato com seus conteúdos internos. E dentro da escrita este demorar-se ganha ainda mais potência e profundidade, embora não seja fácil permitir-se à esta paciente lentidão:

 

Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim, e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita.

 

Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. (LISPECTOR, 2010, 115) 

Este processo de desaceleração, paciência, contato e escrita deve ser estimulado ao paciente pois é justamente este o percurso que permitirá o acesso à uma outra dimensão denominada por Clarice como “não palavra”: 

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. (LISPECTOR, 2010, 95)

 

A palavra é uma isca para pegar aquilo que é “não palavra” e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão... (LISPECTOR in PHILIPPINI, 2009, 108) 

A escrita criativa na Arteterapia 

Ao nos reencontrarmos com as palavras de Clarice Lispector, somos lembrados que a Arteterapia é um procedimento que se utiliza das mais variadas linguagens da arte no processo terapêutico. Desta forma, precisamos manter nosso olhar ampliado para as múltiplas possibilidades e recursos acessíveis ao arteterapeuta. Nas palavras de Angela Philippini:

 

Em Arteterapia, a codificação de emoções e afetos pela mediação da palavra corresponde a mais uma, entre inúmeras das possibilidades expressivas de acesso ao inconsciente, oferecendo canal e continente para sentimentos difusos, muitas vezes desconhecidos... um produtivo recurso para a ativação do processo criador e uma possibilidade de configurar novas informações na consciência. A escrita oferece meios de estabelecer um efetivo diálogo silencioso entre indivíduo e fragmentos seus, muitas vezes sombrios e inconscientes que, em cada releitura dos textos produzidos, tornam-se mais claros, pois gradualmente os significados vão sendo apreendidos pela consciência. (PHILIPPINI, 2009, 113)  

Como suas propriedades, podemos dizer que esta é uma técnica organizadora e estruturante, que de acordo com a Psicologia Analítica Junguiana, tem como Função Principal a função pensamento. 

Ela promove o desbloqueio criativo, um rebaixamento de consciência, e um deslocamento do discurso oral já viciado. Promove também um profundo diálogo consigo mesmo. 

Ao escrever, os verbos/as ações externas e internas envolvidas são: dar forma, configurar, ordenar, organizar, estruturar, identificar, nomear. Suas palavra-chaves são:

decodificação, elaboração, compreensão, integração à consciência. 

Por fim, esta é uma atividade tão simples quanto aos materiais, mas na mesma proporção tão profunda em reflexões. 

Encerro estas articulações com as palavras de Clarice: “Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?” (LISPECTOR, 2010, 108)

 

Referências Bibliográficas:

LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, RJ. 2010.

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Ed WAK, RJ, 2009.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

Um comentário:

  1. Oi Eli! Me reconheço bastante nesse processo: deixar fluir a escrita que vem em ondas que não permitem a interferência da consciência. É na releitura que vou me informando de mim, dos significados... Às vezes a releitura te joga de novo nas correntes, nas ondas... Ainda não é possível pensar. Já nas formas em que optamos pelo diálogo a razão é mais palpável e não há fluxo, tudo fica mais lento, menos misterioso, mais pobre, num certo sentido.Obrigada pela oportunidade de jogar com essas ideias.Beatriz Coelho

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