Eliana Moraes – MG
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As reflexões sobre as aplicações da escrita criativa nas práticas arteterapêuticas seguiram seu curso após a publicação do primeiro texto sobre o tema há alguns meses CLIQUE AQUI. As experiências clínicas individuais e grupais foram solidificando as percepções e orientações sobre o uso deste recurso em meu repertório como arteterapeuta, de forma cada vez mais consciente. E no percurso de me instrumentalizar para esta prática, resgatei a leitura de um livro que muito me inspirou no início do meu caminho de escrita neste blog. No ano de 2013 ganhei de uma pessoa querida o livro “Crônicas para jovens de escrita e vida” de Clarice Lispector, que me estimulou aos enfrentamentos da escrita intuitiva e hoje articulo as palavras desta mestra com a escrita criativa dentro do setting arteterapêutico.
Este é um livro que reúne alguns fragmentos dos escritos de Clarice para o jornal ao qual era colunista, mas selecionados aqueles em que ela falava sobre os caminhos de sua escrita, caminhos estes, sem destino certo:
Embora representando grande risco, só é bom escrever
quando ainda não se sabe o que acontecerá...
Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver com o que escrevi. Paciência. (LISPECTOR, 2010, 74-76)
Este é o convite que fazemos ao experienciador da Arteterapia quando o apresentamos à escrita: que ele se liberte do controle racional, tanto da forma culta de escrita, quanto ao fluxo da temática abordada. Inclusive, ao fazer este convite ao meu paciente, tomo emprestado a fala de Clarice: “O que salva então é escrever distraidamente.” (LISPECTOR 2010, 95).
Este “escrever distraidamente” promove um rebaixamento de consciência ao qual Clarice muito bem descreve com sua poética, mas que nós arteterapeutas podemos lê-los para compreender o que acontece com nossos pacientes:
Aliás, pensando melhor nunca escolhi linguagem.
O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo.
Ir me obedecendo – é na verdade o que faço quando escrevo, e agora mesmo está sendo
assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. Às vezes ir me
seguindo é tão difícil...
Bem, mas o fato é que mesmo não me entendendo, vou
lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei... (LISPECTOR, 2010,
73-75)
Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho... (LISPECTOR, 2010, 77)
Este rebaixamento de consciência abre portas para o contato com conteúdos mais inconscientes antes não acessados devido ao controle racional. Clarice descreve estes momentos de insights sobre si mesma durante o processo da escrita, aos quais podemos fazer um paralelo com o processo que acontece dentro setting ao convite do arteterapeuta:
Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples
curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas
surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das
coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.
(LISPECTOR, 2010, 85)
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o
irreproduzível, é sentir até o último
fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também
abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 2010, 91-92)
Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento... De outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. (LISPECTOR, 2010, 103)
A migração da expressão oral para a escrita, dentre outros fatores, é tão benéfica pelo fato de convidar o sujeito à um demorar-se, e consequentemente a um maior contato com seus conteúdos internos. E dentro da escrita este demorar-se ganha ainda mais potência e profundidade, embora não seja fácil permitir-se à esta paciente lentidão:
Escrevi procurando com muita atenção o que se estava
organizando em mim, e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a
perceber. Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita.
Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. (LISPECTOR, 2010, 115)
Este processo de desaceleração, paciência,
contato e escrita deve ser estimulado ao paciente pois é justamente este o
percurso que permitirá o acesso à uma outra dimensão denominada por Clarice
como “não palavra”:
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como
isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a
entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. (LISPECTOR, 2010, 95)
A palavra é uma isca para pegar aquilo que é “não palavra” e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão... (LISPECTOR in PHILIPPINI, 2009, 108)
A escrita criativa na Arteterapia
Ao nos reencontrarmos com as palavras de
Clarice Lispector, somos lembrados que a Arteterapia é um procedimento que se
utiliza das mais variadas linguagens da arte no processo terapêutico. Desta
forma, precisamos manter nosso olhar ampliado para as múltiplas possibilidades
e recursos acessíveis ao arteterapeuta. Nas palavras de Angela Philippini:
Em Arteterapia, a codificação de emoções e afetos pela
mediação da palavra corresponde a mais uma, entre inúmeras das possibilidades
expressivas de acesso ao inconsciente,
oferecendo canal e continente para sentimentos difusos, muitas vezes
desconhecidos... um produtivo recurso para a ativação do processo criador e uma
possibilidade de configurar novas informações na consciência. A escrita oferece
meios de estabelecer um efetivo diálogo silencioso entre indivíduo e fragmentos
seus, muitas vezes sombrios e inconscientes que, em cada releitura dos textos
produzidos, tornam-se mais claros, pois gradualmente os significados vão sendo
apreendidos pela consciência. (PHILIPPINI, 2009, 113)
Como suas propriedades, podemos dizer que esta é uma técnica organizadora e estruturante, que de acordo com a Psicologia Analítica Junguiana, tem como Função Principal a função pensamento.
Ela promove o desbloqueio criativo, um rebaixamento de consciência, e um deslocamento do discurso oral já viciado. Promove também um profundo diálogo consigo mesmo.
Ao escrever, os verbos/as ações externas
e internas envolvidas são: dar forma, configurar, ordenar, organizar,
estruturar, identificar, nomear. Suas palavra-chaves são:
decodificação, elaboração, compreensão, integração à consciência.
Por fim, esta é uma atividade tão simples quanto aos materiais, mas na mesma proporção tão profunda em reflexões.
Encerro estas articulações com as
palavras de Clarice: “Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre
pintar com palavras?” (LISPECTOR, 2010, 108)
Referências Bibliográficas:
LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita
e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, RJ. 2010.
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos
em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Ed WAK, RJ, 2009.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Oi Eli! Me reconheço bastante nesse processo: deixar fluir a escrita que vem em ondas que não permitem a interferência da consciência. É na releitura que vou me informando de mim, dos significados... Às vezes a releitura te joga de novo nas correntes, nas ondas... Ainda não é possível pensar. Já nas formas em que optamos pelo diálogo a razão é mais palpável e não há fluxo, tudo fica mais lento, menos misterioso, mais pobre, num certo sentido.Obrigada pela oportunidade de jogar com essas ideias.Beatriz Coelho
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