segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

ARTE E DESINSTITUCIONALIZAÇÃO: UM ENCONTRO POTENTE




Por Rosangela Nery - RJ
rosanery1975@hotmail.com

Arte é cultura, e cultura fomenta reflexão e desenvolve pensamento crítico. Esse relato traz como inquietação o que o encontro entre Arte, Saúde e Cultura tem contribuído no processo de desconstrução do imaginário social da loucura.

Refletir e descrever o lugar da arte no processo de desinstitucionalização dos usuários(as) internados por longos períodos em instituições asilares, tem sido um grande desafio e ao mesmo tempo se apresenta como uma potência na construção de novas formas de cuidado e escuta. 

Nesse sentido, Joel Birman sublinha:

“A loucura torna-se verdade médica. Cria-se uma clínica das enfermidades mentais e uma concepção de terapêutica... Cria-se um corpo de conceitos, a teoria psiquiátrica, que instrumentalizariam esta prática clínica. O asilo é criado, aparecendo como figura histórica, tornando-se o lugar adequado para a realização desta cura.” (BIRMAN, 1978, p.2).

Ao falar de desintitucionalização é necessário apresentar o processo político/histórico que a antecede e regulamenta essa prática.  A Lei 10.216/01 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas que apresentam sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em Saúde Mental na direção ao processo de desinstitucionalização a partir de novas práticas clínicas dentro dos hospitais e do uso de novos dispositivos assistenciais pensados como modelo substitutivo dos hospitais psiquiátricos, que, neste relato, será citado o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como um desses dispositivos dentre outros existentes na Rede de atenção Psicossocial (RAPS). A Lei regulamenta o cuidado especial à clientela internada por longos anos. A relevância da arte inserida nesse contexto está em contribuir para que  os usuários da saúde mental internados em hospitais psiquiátricos ou ainda os que estão inseridos no CAPS, possam contar com a  construção de outras possibilidades de formação de vínculos, que não se dão somente a partir da escuta tradicional, mas, que é possível, através da arte, em suas várias formas, apontar à construção de uma subjetividade e caminhar a um  processo de ressignificação psíquica, visando busca por autonomia e muitas vezes chegando a uma reinserção social.

Hoje, vamos falar sobre Pedro (nome fictício), jovem, internado em um dos núcleos da Colônia Juliano Moreira* no Rio de janeiro, desde maio de 2019, já esteve em outras instituições e totaliza mais ou menos 07 anos de internação em lugares inóspitos e muitas vezes sem acesso a direitos básicos para manutenção da vida, refiro-me, por exemplo, a luz solar. O trabalho na Colônia tem sido na direção de cuidar e construir um caminho que seguirá para além do processo de desospitalização (saída do hospital).   Um dos espaços de arte e cultura existentes no território da colônia é o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que conta com várias oficinas terapêuticas e também oficinas de geração de renda, que visam contribuir no processo de reinserção social. Pedro, assim como muitos possui o diagnóstico de Esquizofrenia (CID - classificação internacional das doenças; F-20), diagnóstico esse atribuído à todos que se apresentavam fora da  “razão”, também há relatos do próprio Pedro sobre uso abusivo de álcool e outras drogas, o que refere com a grande causa da sua primeira internação.

Para pensar a Loucura, Foucault (1975) nos apresenta: 
                    
“As dimensões psicológicas da Loucura não podem então ser reprimidas a partir de um princípio de explicação ou de redução que lhes seria exterior. Mas elas devem situar-se no interior dessa relação geral que o homem ocidental estabeleceu há praticamente dois séculos consigo mesmo... Esta relação que funda filosoficamente toda psicologia possível só pode ser definida a partir de um momento preciso da história de nossa civilização: o momento em que o grande confronto da Razão e da Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em que a razão deixou de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza.” (FOUCAULT, 1975, p. 97-98).

A partir do convívio com Pedro, que se apresenta extremamente preservado do ponto de vista psíquico, com muitas possibilidades e habilidades,  o mesmo é inserido em alguns projetos, todos com direção de preparo para ocupação da cidade, afinal, a rua é um lugar a ser ocupado. Um dos projetos que desperta o interesse de Pedro é a oficina de mosaico, coordenada pelo profissional V. Pedro, no auge da sua juventude e produtividade, solicita em um dos nossos atendimentos que gostaria de ter seu próprio dinheiro, ainda que seja pouco, pois entende que precisará disso para sair do manicômio. Nesse momento lembro-me de um espelho antigo com moldura de madeira que ficava no canto do meu quarto e que por várias vezes pensei em jogar fora, ufaa... Não joguei!! Levo o espelho para Pedro e digo que pode usar de sua criatividade e combinamos então que ele cobraria pelo trabalho do mosaico. O trabalho durou pouco mais de 1 mês e durante esse processo a cada dia Pedro trazia a alegria de estar novamente criando algo, estar produzindo o fazia lembrar que era humano e capaz, algo que a instituição total rouba das pessoas.

De acordo com Amarante, Venturini e Lima:

“A função da arte é alimentar e ampliar a empatia do homem com o diferente. Portanto, é possível afirmar que a arte cura a loucura. A ideia de que a arte pode ser útil ao doente mental já é antiga e deriva também do mito de que os gênios e os artistas têm sempre um pouco de loucos. Ele alertou ainda para o perigo da manipulação no uso da arte. O risco é o trabalho da arte se tornar caricatura na psiquiatria, se transformar em uma modalidade de exploração física e intelectual que corresponde ao entretenimento nesse tipo de tratamento. Penso que, no inferno do manicômio ou em todos os outros lugares onde exista repressão e marginalização, algumas obras de internos até podem ser obras artísticas, mas as técnicas não são terapêuticas, pois sem liberdade pode existir arte, mas nunca poderá existir terapia. A arte é contrária ao poder e inimiga da autoridade. Ela é cultura, e cultura fomenta reflexão, desenvolve pensamento crítico.” (AMARANTE, VENTURINI, LIMA, 2010 p.01).



A tão esperada peça ficou pronta, algo tão lindo que foi pensado um lugar para ela na exposição que acontece atualmente no Museu Bispo do Rosário. O trabalho com mosaico, técnica que propõe a colocação de fragmentos de pedras, pastilhas de vidro, seixos e outros materiais, sobre qualquer superfície, trouxe a Pedro a esperança de refazer a vida e as relações perdidas, trabalhar com essa técnica remete a possibilidades de juntar os cacos, os fragmentos de vida que foram deixados no caminho.  Pedro recebeu pela peça, seguiu no trabalho e foi inserido em mais um projeto de geração de renda no Bistrô do museu, que serve alimentos preparados por profissionais, ex - usuários que em sua grande maioria já não ocupam mais os espaços asilares dos manicômios. O trabalho com Pedro continua, ele segue internado e tendo que  lidar com a vulnerabilidade que se coloca quando o mesmo faz uso de drogas;  não tem sido fácil pra ele e para nós enquanto equipe,  a cada dia temos novos desafios a enfrentarmos, afinal, a instituição deixa marcas na vida dos sujeitos, a diferença é que hoje Pedro conta com uma equipe embasada pelos preceitos da Reforma Psiquiátrica. O desafio da superação do manicômio não está apenas em cerrar suas portas, como propõe a Reforma, mas, ao se pretender desinstitucionalizar a clientela internada, é necessário um cuidado e atenção especial, a fim de não produzir novas formas de exclusão e asilamento nos serviços substitutivos da RAPS. Deste modo, um processo de reconstrução, implica refazer as relações que a sociedade estabelece com a loucura, e a arte tem sido fundamental nesse processo e segue nos apontando uma resposta.

A exposição: “Utopias: A vida para todos os tempos e glória” acontece no museu Bispo do Rosário, inaugurada em 25/09/2019 com data de término em 25/01/2020 sempre no horário de 10 às 17h, de terça a sexta feira, e nos últimos sábados de cada mês. Venha visitar e se emocionar com os caminhos que a arte pode apontar para a vida!

O museu fica localizado na Estrada Rodrigues Caldas 3.400 – Curicica – Rio de Janeiro





* O território da Colônia Juliano Moreira originou-se a partir de um dos mais antigos engenhos de cana de açúcar em Jacarepaguá, integrando inicialmente as terras do Engenho da Taquara, que é então desmembrado em 1664 e denominado Fazenda Nossa Senhora dos Remédios. Em 1778 recebe o nome de Engenho Novo da Taquara. Após o processo de municipalização, passa a chamar-se IMAS JM – Instituto Municipal de Assistência a Saúde Juliano Moreira, e segue no processo de desinstitucionalização dos usuários para os serviços substitutivos da RAPS.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARANTE, P.; VENTURINI, E.; LIMA, R. Arte e cultura: ferramentas utilizadas para cura no campo da saúde mental. Rio de Janeiro: Informe ENSP, 2010.
DAMASCENO, N.F.P. et al . A narrativa como alternativa na pesquisa em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 22, n. 64, p. 133-140. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0815.

FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

______________________________________________________________________

Autora: Rosangela Ferreira Nery


Psicóloga, especialista em Saúde mental e atenção psicossocial pela ENSP- Fiocruz e em Arte, Ciência e Cultura na Saúde pelo IOC – Fiocruz, servidora da Secretaria Municipal de Saúde atuando como diretora do Núcleo de apoio a desinstitucionalização Franco da Rocha – IMAS JM/ RJ.


Nenhum comentário:

Postar um comentário