segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A ARTETERAPIA E O BRINCAR COM MATERIAIS DE LARGO ALCANCE



Por Claudia Tona

@libelula_psicopedagogia



"A criação de algo novo não é realizada pelo intelecto, mas pelo instinto de brincar agindo por necessidade interior. A mente criativa brinca com os objetos que ama." Jung

O que a arteterapia pode acrescentar ao brincar e vice-versa? Esta pergunta pode ser respondida quando experimentamos as duas coisas juntas, ou melhor, quando descobrimos que brincar carrega muito da arte e que a arte carrega muito do brincar. Lev Vygotsky diz, em sua obra “A Formação Social da Mente” que “ao brincar, a criança assume papéis e aceita as regras próprias da brincadeira, executando, imaginariamente, tarefas para as quais ainda não está apta ou não sente como agradáveis na realidade.” (2007, p. 83). Quando incluímos o brincar nas vivências com crianças, adolescentes e até mesmo adultos, é possível observar uma liberação das inibições e passamos a perceber o quanto a criatividade é impulsionada nesses momentos de criação livre, de inventividade.

O presente texto foi inspirado numa vivência com pessoas adultas, educadoras e educadores ávidos por levar propostas diferenciadas aos seus educandos. Mas, acima de tudo, o que se deseja mesmo, é dar espaço ao arquétipo criança, voltando ao livre brincar e, daí sim, compartilhar estas experimentações. Na Oficina “A Arte do brincar”, além da proposta de criação de brinquedos com materiais de largo alcance (ou materiais não estruturados), surgiu a reflexão em torno dos brinquedos que as crianças mais acessam atualmente e os brinquedos e brincadeiras que carregam a nossa ancestralidade: como podemos reavivar essa chama deixada por quem veio antes de nós? Como reaprender a criar peças que saem da nossa imaginação, como os primeiros humanos? E é aí que surge a flexibilidade dos materiais de largo alcance.

Mas que materiais são esses? O termo "materiais de largo alcance", no contexto pedagógico, é a tradução da expressão em inglês "loose parts" (literalmente "peças soltas" ou "partes soltas") e tem origem na teoria desenvolvida pelo arquiteto e designer paisagista Simon Nicholson, cuja teoria mostra que as crianças deveriam ter a oportunidade de brincar com materiais versáteis e que pudessem ser inventados, construídos, desenvolvidos e modificados por elas mesmas. Ele criticava os ambientes de lazer e playgrounds modernos por serem muito estruturados e limitarem a criatividade infantil.

A relação entre arte e materiais de largo alcance é profunda e simbiótica: os materiais de largo alcance servem como ferramentas essenciais e ilimitadas para a expressão e experimentação artística, enquanto a arte oferece o campo fértil para que o potencial desses materiais seja plenamente explorado.



Em Arteterapia, esses materiais são frequentemente referidos como materiais expressivos ou recursos artísticos, e a sua utilização possui um potencial terapêutico significativo, cuja exploração livre se torna uma ferramenta poderosa para a expressão, a comunicação e o bem-estar emocional. A seguir, alguns pontos de convergência e benefícios do uso desses materiais no setting arteterapêutico:

Expressão Não-Verbal: Para a arteterapia, o ato de criar é um meio de expressão, especialmente para indivíduos que têm dificuldade em verbalizar seus sentimentos ou experiências traumáticas. Os materiais de largo alcance, por sua natureza aberta e versátil (panos, sucatas, elementos da natureza, etc.), permitem que as pessoas projetem seus mundos internos de forma simbólica e metafórica, sem a pressão de "fazer arte" de uma maneira específica.

Foco no Processo Terapêutico: Assim como na, na arteterapia o foco recai sobre o processo de criação e não no produto final. A manipulação, organização e transformação dos materiais ajudam o indivíduo a explorar emoções, a desenvolver a consciência de si mesmo e a encontrar novas perspectivas. A riqueza das situações faz emergir um registro mais fino e matizado das reações, o que facilita a ação terapêutica.

Estímulo à Criatividade e Resolução de Problemas: A ausência de instruções prontas ou de um "uso correto" dos materiais de largo alcance estimula a criatividade e a capacidade de resolver problemas (como juntar peças, equilibrar, construir). Isso se traduz em habilidades de enfrentamento e adaptação na vida real, um objetivo central da terapia.

Acessibilidade e Descompressão: Sendo materiais de baixo custo e fáceis de obter, eles tornam a arteterapia mais acessível e menos intimidadora do que materiais de arte tradicionais. A simplicidade dos materiais ajuda a desarmar resistências e a facilitar a entrada no processo criativo, junto aos materiais específicos de expressão artística ou não.

Reaproveitamento e Transformação: A prática de buscar potencial em objetos "descartados" ou "abandonados" reflete simbolicamente um caminho de transformação e integração de partes da própria vida ou psique do paciente, um conceito poderoso na arteterapia.

Acesso ao Inconsciente: O ato de brincar, sem metas ou julgamentos, permite o acesso ao inconsciente e a expressão de conteúdos simbólicos e arquetípicos, essenciais para a integração psíquica (processo de individuação).

Expressão Simbólica: O brincar simbólico e as narrativas (contos de fadas, mitos) são linguagens da psique que permitem a manifestação de imagens internas, que podem então ser trabalhadas terapeuticamente.

Integração dos Opostos: O brincar pode ser uma forma de integrar opostos (como o consciente e o inconsciente, ou a luz e a sombra), promovendo o equilíbrio psíquico.

Em resumo, os materiais de largo alcance oferecem um vasto leque de possibilidades expressivas e simbólicas que são perfeitamente alinhadas com os princípios e objetivos da arteterapia, que busca a cura e o autoconhecimento através da expressão criativa.



Mas não para por aí. Um dos mais relevantes benefícios do uso desses materiais é o combate ao consumismo infantil, um assunto muito sério. O consumismo infantil é frequentemente impulsionado pela publicidade e pela ideia de que a felicidade vem da posse de brinquedos industrializados, muitas vezes de plástico e com um propósito único e limitado. Os materiais de largo alcance (caixas, tampinhas, tecidos, elementos da natureza) oferecem uma alternativa de baixo custo e alta versatilidade, desafiando a necessidade de comprar constantemente novos brinquedos prontos. Além disso, ao brincar com objetos simples do dia a dia, as crianças (bem como os adultos que delas cuidam) aprendem a valorizar a riqueza do que está ao seu redor, em vez de desejar apenas produtos de marcas específicas, sendo protagonistas na criação, pois participam ativamente de todo o processo de brincar, desde a concepção da ideia até a concretização da brincadeira, o que a torna menos suscetível à passividade imposta pelo consumo. E tudo isso promove a sustentabilidade através do reaproveitamento e da redução de resíduos, resultando na conscientização ambiental tão necessária nos nossos dias.

Para finalizar, o brincar um direito previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

Direito à liberdade: O Artigo 16, inciso III, do ECA, estabelece que o direito à liberdade "compreende brincar, praticar esportes e divertir-se". Dever da família, sociedade e Estado: O Artigo 3º do ECA determina que é dever de todos garantir esse direito, sem exceção. Proteção integral: O direito ao brincar é um dos pilares da proteção integral garantida pelo ECA, que assegura que crianças e adolescentes se desenvolvam em condições de liberdade e dignidade.

Isto posto, que tal lembrar de quantas crianças você conhece (inclusive você e seus clientes) que preferem brincar com a caixa do brinquedo novo que ganhou do que com o próprio brinquedo? Proponho então um desafio: conheça e faça uso dos materiais de largo alcance e encontre possibilidades ilimitadas de materiais expressivos para criar e ser feliz!

“É bom recordar que o brincar é por si mesmo uma terapia” (WINNICOTT, 1975, p. 83.)

 


REFERÊNCIAS

VYGOTSKY, L. S., A Formação Social da Mente: o Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores. Edição em Português: Martins Fontes. RJ. 2007.

NICHOLSON, S. Theory of Loose Parts, How Not To Cheat Children: The Theory of Loose Parts. Landscape Architecture, Louisville, v. 62, n. 1, p. 30-34, jan. 1971.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras Oficial da União, Brasília, DF, 16 em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 19, nov. 2025.

 

APRESENTAÇÃO DO AUTOR Nome:

Claudia Tona

Formanda em Arteterapia pelo Espaço terapêutico Caminhos do Self, no Méier, RJ.

Como Pedagogoga e Psicopedagoga, atuou em todos os segmentos da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio, EJA e Educação Especial e Inclusiva, tanto como professora quanto gestora; nas escolas públicas e privadas, a Arte sempre foi seu instrumento principal, sua varinha de condão.

Atualmente, faz atendimentos individuais e em grupo, tendo como base a Psicopedagogia com abordagem em Arte.

É Coordenadora do Solar do Guri, segmento infanto-juvenil do Solar Artes e Terapias em Piratininga, onde organiza junto com a Trupe Ensolarada, eventos para celebração do brincar através da Arte.

Compõe a equipe multidisciplinar do Espaço Terapêutico Cíntia Magacho, no Centro de Niterói, onde realiza atendimentos individuais e participa da organização de Workshops periódicos sobre aprendizagem e saúde mental.

Na Fundação Cultural Avatar, no Ingá, promove a Oficina Sementes ao Pôr-do-sol, com pessoas maduras as protagonistas do presente relato.

Contato: claudiatona63@gmail.com 
 @libelula_psicopedagogia

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