Por Claudia Tona
@libelula_psicopedagogia
"A criação de algo novo não é realizada pelo intelecto, mas pelo instinto de brincar agindo por necessidade interior. A mente criativa brinca com os objetos que ama." Jung
O que a arteterapia pode
acrescentar ao brincar e vice-versa? Esta pergunta pode ser respondida quando
experimentamos as duas coisas juntas, ou melhor, quando descobrimos que brincar
carrega muito da arte e que a arte carrega muito do brincar. Lev Vygotsky diz,
em sua obra “A Formação Social da Mente” que “ao brincar, a criança assume
papéis e aceita as regras próprias da brincadeira, executando, imaginariamente,
tarefas para as quais ainda não está apta ou não sente como agradáveis na
realidade.” (2007, p. 83). Quando incluímos o brincar nas vivências com
crianças, adolescentes e até mesmo adultos, é possível observar uma liberação
das inibições e passamos a perceber o quanto a criatividade é impulsionada
nesses momentos de criação livre, de inventividade.
O presente texto foi inspirado
numa vivência com pessoas adultas, educadoras e educadores ávidos por levar
propostas diferenciadas aos seus educandos. Mas, acima de tudo, o que se deseja
mesmo, é dar espaço ao arquétipo criança, voltando ao livre brincar e, daí sim,
compartilhar estas experimentações. Na Oficina “A Arte do brincar”, além da
proposta de criação de brinquedos com materiais de largo alcance (ou materiais
não estruturados), surgiu a reflexão em torno dos brinquedos que as crianças
mais acessam atualmente e os brinquedos e brincadeiras que carregam a nossa
ancestralidade: como podemos reavivar essa chama deixada por quem veio antes de
nós? Como reaprender a criar peças que saem da nossa imaginação, como os
primeiros humanos? E é aí que surge a flexibilidade dos materiais de largo
alcance.
Mas que materiais são esses? O
termo "materiais de largo alcance", no contexto pedagógico, é a
tradução da expressão em inglês "loose parts" (literalmente
"peças soltas" ou "partes soltas") e tem origem na teoria desenvolvida
pelo arquiteto e designer paisagista Simon Nicholson, cuja teoria mostra que as
crianças deveriam ter a oportunidade de brincar com materiais versáteis e que
pudessem ser inventados, construídos, desenvolvidos e modificados por elas
mesmas. Ele criticava os ambientes de lazer e playgrounds modernos por serem
muito estruturados e limitarem a criatividade infantil.
A relação entre arte e materiais
de largo alcance é profunda e simbiótica: os materiais de largo alcance servem
como ferramentas essenciais e ilimitadas para a expressão e experimentação
artística, enquanto a arte oferece o campo fértil para que o potencial desses
materiais seja plenamente explorado.
Em Arteterapia, esses materiais
são frequentemente referidos como materiais expressivos ou recursos artísticos,
e a sua utilização possui um potencial terapêutico significativo, cuja
exploração livre se torna uma ferramenta poderosa para a expressão, a comunicação
e o bem-estar emocional. A seguir, alguns pontos de convergência e benefícios
do uso desses materiais no setting arteterapêutico:
Expressão Não-Verbal: Para
a arteterapia, o ato de criar é um meio de expressão, especialmente para
indivíduos que têm dificuldade em verbalizar seus sentimentos ou experiências
traumáticas. Os materiais de largo alcance, por sua natureza aberta e versátil
(panos, sucatas, elementos da natureza, etc.), permitem que as pessoas projetem
seus mundos internos de forma simbólica e metafórica, sem a pressão de
"fazer arte" de uma maneira específica.
Foco no Processo Terapêutico:
Assim como na, na arteterapia o foco recai sobre o processo de criação e não no
produto final. A manipulação, organização e transformação dos materiais ajudam
o indivíduo a explorar emoções, a desenvolver a consciência de si mesmo e a
encontrar novas perspectivas. A riqueza das situações faz emergir um registro
mais fino e matizado das reações, o que facilita a ação terapêutica.
Estímulo à Criatividade e
Resolução de Problemas: A ausência de instruções prontas ou de um "uso
correto" dos materiais de largo alcance estimula a criatividade e a
capacidade de resolver problemas (como juntar peças, equilibrar, construir).
Isso se traduz em habilidades de enfrentamento e adaptação na vida real, um
objetivo central da terapia.
Acessibilidade e
Descompressão: Sendo materiais de baixo custo e fáceis de obter, eles
tornam a arteterapia mais acessível e menos intimidadora do que materiais de
arte tradicionais. A simplicidade dos materiais ajuda a desarmar resistências e
a facilitar a entrada no processo criativo, junto aos materiais específicos de
expressão artística ou não.
Reaproveitamento e
Transformação: A prática de buscar potencial em objetos
"descartados" ou "abandonados" reflete simbolicamente um
caminho de transformação e integração de partes da própria vida ou psique do
paciente, um conceito poderoso na arteterapia.
Acesso ao Inconsciente: O
ato de brincar, sem metas ou julgamentos, permite o acesso ao inconsciente e a
expressão de conteúdos simbólicos e arquetípicos, essenciais para a integração
psíquica (processo de individuação).
Expressão Simbólica: O
brincar simbólico e as narrativas (contos de fadas, mitos) são linguagens da
psique que permitem a manifestação de imagens internas, que podem então ser
trabalhadas terapeuticamente.
Integração dos Opostos: O
brincar pode ser uma forma de integrar opostos (como o consciente e o
inconsciente, ou a luz e a sombra), promovendo o equilíbrio psíquico.
Em resumo, os materiais de largo
alcance oferecem um vasto leque de possibilidades expressivas e simbólicas que
são perfeitamente alinhadas com os princípios e objetivos da arteterapia, que
busca a cura e o autoconhecimento através da expressão criativa.
Mas não para por aí. Um dos mais
relevantes benefícios do uso desses materiais é o combate ao consumismo
infantil, um assunto muito sério. O consumismo infantil é frequentemente
impulsionado pela publicidade e pela ideia de que a felicidade vem da posse de
brinquedos industrializados, muitas vezes de plástico e com um propósito único
e limitado. Os materiais de largo alcance (caixas, tampinhas, tecidos,
elementos da natureza) oferecem uma alternativa de baixo custo e alta
versatilidade, desafiando a necessidade de comprar constantemente novos
brinquedos prontos. Além disso, ao brincar com objetos simples do dia a dia, as
crianças (bem como os adultos que delas cuidam) aprendem a valorizar a riqueza
do que está ao seu redor, em vez de desejar apenas produtos de marcas
específicas, sendo protagonistas na criação, pois participam ativamente de todo
o processo de brincar, desde a concepção da ideia até a concretização da
brincadeira, o que a torna menos suscetível à passividade imposta pelo consumo.
E tudo isso promove a sustentabilidade através do reaproveitamento e da redução
de resíduos, resultando na conscientização ambiental tão necessária nos nossos
dias.
Para finalizar, o brincar um
direito previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Direito à
liberdade: O Artigo 16, inciso III, do ECA, estabelece que o direito à
liberdade "compreende brincar, praticar esportes e divertir-se".
Dever da família, sociedade e Estado: O Artigo 3º do ECA determina que é dever
de todos garantir esse direito, sem exceção. Proteção integral: O direito ao
brincar é um dos pilares da proteção integral garantida pelo ECA, que assegura
que crianças e adolescentes se desenvolvam em condições de liberdade e
dignidade.
Isto posto, que tal lembrar de
quantas crianças você conhece (inclusive você e seus clientes) que preferem
brincar com a caixa do brinquedo novo que ganhou do que com o próprio
brinquedo? Proponho então um desafio: conheça e faça uso dos materiais de largo
alcance e encontre possibilidades ilimitadas de materiais expressivos para
criar e ser feliz!
“É bom recordar
que o brincar é por si mesmo uma terapia” (WINNICOTT, 1975, p. 83.)
REFERÊNCIAS
VYGOTSKY, L. S., A Formação
Social da Mente: o Desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores.
Edição em Português: Martins Fontes. RJ. 2007.
NICHOLSON, S. Theory of Loose
Parts, How Not To Cheat Children: The Theory of Loose Parts. Landscape
Architecture, Louisville, v. 62, n. 1, p. 30-34, jan. 1971.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de
julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
Oficial da União, Brasília, DF, 16 em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 19, nov. 2025.
APRESENTAÇÃO DO AUTOR Nome:
Claudia Tona
Formanda em Arteterapia pelo
Espaço terapêutico Caminhos do Self, no Méier, RJ.
Como Pedagogoga e Psicopedagoga,
atuou em todos os segmentos da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino
Médio, EJA e Educação Especial e Inclusiva, tanto como professora quanto
gestora; nas escolas públicas e privadas, a Arte sempre foi seu instrumento
principal, sua varinha de condão.
Atualmente, faz atendimentos
individuais e em grupo, tendo como base a Psicopedagogia com abordagem em Arte.
É Coordenadora do Solar do Guri,
segmento infanto-juvenil do Solar Artes e Terapias em Piratininga, onde
organiza junto com a Trupe Ensolarada, eventos para celebração do brincar
através da Arte.
Compõe a equipe multidisciplinar
do Espaço Terapêutico Cíntia Magacho, no Centro de Niterói, onde realiza
atendimentos individuais e participa da organização de Workshops periódicos
sobre aprendizagem e saúde mental.
Na Fundação Cultural Avatar, no
Ingá, promove a Oficina Sementes ao Pôr-do-sol, com pessoas maduras as
protagonistas do presente relato.




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