segunda-feira, 25 de agosto de 2025

PONTO A PONTO: HISTÓRIAS FEMININAS EM CORES NO SETTING ARTETERAPÊUTICO

 

Por Débora Castro - RJ

@deborarteterapia

 

O pontilhismo, movimento artístico caracterizado pela criação de imagens por meio de pequenos pontos de cor, revela-se uma poderosa ferramenta expressiva no setting arteterapêutico com grupos de mulheres. Sua técnica, minuciosa e repetitiva, favorece a concentração e permite o acesso à interioridade de forma suave e simbólica. Ao trabalhar com pontos, cada mulher se conecta com o ritmo do próprio corpo e mente, criando um espaço de escuta interna que favorece o autoconhecimento e a regulação emocional.

 


Tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte (1884-1886), tela de Seraut.

A obra Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte (1884–1886), de Georges Seurat, é um ícone do neoimpressionismo que se destaca pela técnica do pontilhismo, na qual pequenos pontos de cor são aplicados com precisão para formar uma imagem coesa e vibrante. A composição revela uma cena de lazer às margens do rio Sena, com figuras humanas rígidas e silenciosas, quase escultóricas, que transmitem uma sensação de ordem e contemplação. Os aspectos expressivos da tela se manifestam na harmonia cromática, na organização espacial e na atmosfera serena que convida à introspecção. Seurat transforma o cotidiano em algo quase ritualístico, onde cada elemento parece cuidadosamente calculado para provocar equilíbrio visual e emocional.

No contexto terapêutico, o pontilhismo pode refletir aspectos da vivência feminina: a construção paciente da própria identidade, os fragmentos de memórias que emergem ponto a ponto e a rede de apoio simbólica entre mulheres que compartilham seus processos criativos. Ao pintar utilizando essa técnica, o grupo pode explorar temas como pertencimento, reconstrução, delicadeza, força e resiliência.

Além disso, o aspecto não verbal da arte permite que emoções difíceis de nomear ganhem forma e cor, oferecendo a cada participante  um espaço seguro de expressão. A repetição dos pontos pode funcionar como um recurso de autorregulação, especialmente em contextos de ansiedade, traumas ou processos de cura emocional.

No grupo, as produções compartilhadas criam conexões entre as histórias individuais, favorecendo o acolhimento e o fortalecimento da identidade coletiva. Assim, o pontilhismo não é apenas uma técnica artística, mas um instrumento terapêutico potente que, em mãos femininas, pontilha caminhos de cuidado, afeto e transformação.

Algumas das produções das participantes do grupo de Arteterapia na modalidade continuada, revelam sensibilidade, expressão única e profundas narrativas visuais.

 


 Participante J

Minha vida é feita de fases, ciclos e momentos. A sessão de hoje me fez pensar que cada ponto, cada cor, revela minha história. A minha expressão plástica fala sobre quem eu sou  as cores traduzem a minha luz interna, minhas escolhas e toda a força da minha ancestralidade.

 


Participante – D

Partindo do girassol que se abre para o sol, para a luz, envolto pelo céu, onde o azul representa a emoção, eu me expando. O girassol é a expressão da minha luz e da minha sabedoria. Essa expansão acontece pelas raízes que crescem entre folhas verdes  símbolo da vida  e se conecta às cores: o amarelo da luz, o azul da emoção, e o violeta da transformação. Cada tom é um reflexo do meu caminho interior.

A pluralidade do grupo enriquece o processo: mulheres de diferentes trajetórias compartilham olhares, cores e impressões, pontilhando juntas um mural simbólico que fala de cuidado, força e transformação. A arte feita ponto a ponto torna-se símbolo da construção paciente da identidade, da reconstrução das partes fragilizadas e da celebração das potências femininas.

Esse trabalho não é apenas estético é profundamente terapêutico. Ao entrelaçar cores e histórias, as mulheres se reconhecem, se acolhem e se fortalecem. Cada pontinho é um sopro de vida, um gesto de cura, um convite à escuta de si e do outro. Assim, o pontilhismo floresce como caminho de expressão, conexão e empoderamento no universo da Arteterapia.

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Sobre a autora: Débora Castro



Sou Débora de Castro, educadora apaixonada pelo poder da arte e do conhecimento. Graduada em Pedagogia e Educação Artística, com pós-graduação em Psicopedagogia e Educação Especial e Inclusiva, sigo aprofundando minha jornada acadêmica como graduanda em Psicologia.

Com formação em Arteterapia (AARJ/1411), atuo há mais de 28 anos na área da Educação, compartilhando saberes como professora de Artes Visuais e História da Arte. Atualmente, dedico-me à coordenação de um grupo de Arteterapia para Mulheres e à condução de oficinas arte terapêuticas, tanto no formato online quanto presencial.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

REGULAÇÃO EMOCIONAL NA ABORDAGEM DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL (TCC) E ARTETERAPIA: TAMBÉM EM MOMENTOS DE CRISE



Por Juliana Mello - RJ

@vivendotccearte 


Sr. Miyagi: Confie na sua intuição.

Daniel: E como vou saber se é o certo?

Sr. Miyagi: Se vier de dentro de você é sempre certo.

(Karate Kid: A Hora Da Verdade,1984)

 

No texto anterior falei um pouco sobre as emoções e a importância da regulação emocional. É importante flexibilizarmos a nossa forma de sentir emoções. Por exemplo, em uma situação de perigo ou catástrofe é importante regular a emoção e ativar o pensamento mais racional, para um comportamento mais adequado e seguro possível. Por outro lado, em uma situação agradável, como conquistar um objetivo (fazer exercícios, passar em uma prova), sentir a emoção de forma intensa fortalece nossas memórias afetivas e a forma como nos percebemos. Esse equilíbrio entre sentir e expressar as emoções com consciência é o que chamamos de Inteligência Emocional, e ela se desenvolve justamente por meio da Regulação Emocional.

De acordo com as emoções desagradáveis adotamos comportamentos disfuncionais, que em muitos casos, reforçam as sensações “ruins”: esquiva (evitar ou fugir da situação estressora), compensação (descontar as emoções em ingestão de comida e/ou bebidas), ruminação (ficar preso em pensamentos repetitivos e negativos) e a manutenção (ações automáticas que só reforçam o estado emocional difícil). De acordo com Leahy e seus colaboradores:

“Expressão e validação são úteis na medida em que normalizam, melhoram a compreensão, diferenciam várias emoções, reduzem a culpa e a vergonha e ajudam a aumentar a crença na tolerabilidade da experiência emocional” (2013).

Ou seja, o objetivo não é deixar de sentir, mas acolher, aceitar e expressar de forma funcional, aprendendo a lidar com o que sentimos e reconhecendo os sinais que o corpo nos dá.

Para relembrar nosso funcionamento na TCC:

  • Pensamento: automático, surge sem nosso controle — como se “caísse” na nossa mente.
  • Sentimento/emoção: também não controlamos o que vamos sentir, pois ela está conectada ao pensamento. Mas é possível aprender a regular a intensidade.
  • Comportamento: aqui está nosso ponto de escolha. Entendendo como pensamos e sentimos, podemos decidir agir conscientemente, em vez de apenas reagir.

A TCC nos ajuda a ressignificar pensamentos, emoções e comportamentos, ampliando a forma como percebemos e lidamos com as situações. Ressignificar é um processo, e exige dedicação ao autoconhecimento. Quanto tempo você pensa, sente e se comporta da maneira atual? Lembre-se: se você age de um certo jeito há muito tempo, não se cobre mudanças da noite para o dia. Mas mudança pode acontecer antes do que você imagina, desde que você se comprometa com você mesmo(a).

 

Mas, na prática, como podemos trabalhar isso?

A Terapia Cognitivo-Comportamental nos oferece várias técnicas eficazes, que podem nos auxiliar:

-Treinamento de habilidades emocionais na psicoterapia: O processo terapêutico é um espaço seguro para aprender como funcionamos emocionalmente. Ali, vamos identificando padrões e treinando, na relação terapêutica segura, novas formas de agir e reagir.

- Flexibilidade cognitiva: que é a habilidade de ver uma situação por vários pontos de vista, adaptar nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos diante de mudanças e imprevistos, deixando de lado uma ideia fixa quando ela já não serve mais e tentar novas estratégias. Favorece o uso da reestruturação cognitiva.

- Reestruturação Cognitiva: Técnica terapêutica de identificar, questionar e reformular pensamentos. É um método estruturado para mudar crenças disfuncionais.

- Reavaliação dos resultados: É um momento de pausa para refletir: qual era meu objetivo? O que fiz para alcançá-lo? Quais foram os resultados? Ao identificar o que funcionou (ou não) através de evidências (fatos inquestionáveis), podemos ajustar rotas, criar novas estratégias e fortalecer o autoconhecimento. Avaliar e criar estratégias mais adequadas, auxilia na regulação emocional, pois é possível acessar previamente momentos que podem ser desregularizadores.

- Escrever: Auxilia a não perder o controle da situação, dando tempo para pensar. Colocar no papel o que se passa na cabeça ajuda a organizar os pensamentos e as emoções. Não precisa se preocupar com ortografia ou estrutura — é uma escrita livre e criativa, que serve como canal de expressão e autorregulação.

- Respiração consciente: Uma sugestão simples: inspire contando até 4, segure por 2 segundos e expire contando até 4. Mãos sobre a barriga ajudam a perceber o movimento. Outra opção é usar os dedos (indicador e mínimo) para alternar as narinas ao inspirar e expirar. São técnicas que ajudam a regular a intensidade emocional.

- Mindfullness (Atenção Plena): Muito utilizado atualmente, o mindfulness ajuda a nos manter no presente, o que é essencial para lidar com ansiedade (futuro) e depressão (passado). Podemos meditar até nas pequenas atividades do dia: ao beber água, tomar banho, lavar louça ou caminhar. Recomendo sempre o vídeo no YouTube chamado “Meditação em um minuto”, que mostra como meditar de forma prática é possível, quebrando a ideia de que meditar é parar tudo e “esvaziar a mente”.

 

Como reconhecer que é hora de usar uma técnica de regulação emocional?

 

Tudo começa com reconhecer que estamos sentindo algo. O corpo sempre dá sinais — quanto mais intensa a emoção, mais evidente será a resposta fisiológica (como sudorese, taquicardia, tensão muscular, etc). Esses sinais são como um termômetro emocional. Ao percebê-los, conseguimos escolher qual técnica aplicar naquele momento.

É importante destacar: as técnicas precisam ser praticadas mesmo quando você estiver bem, para que o cérebro registre e torne essas estratégias mais acessíveis e naturais no momento de crise

E quando o emocional “explode”? Técnicas emergenciais:

- Mudança de foco: olhe ao redor e descreva o ambiente. Note as cores, os objetos, o número de móveis, pessoas ou sons. Isso ajuda a "aterrar" sua atenção e reduzir a intensidade emocional.

- Gelo nas mãos: segure um cubo de gelo enrolado num pano. A sensação térmica ajuda a mudar o foco e traz o corpo de volta para o presente.

- Atividade física: Uma caminhada rápida, pular corda ou dançar pode ajudar seu cérebro a sair do “modo alerta”. A atividade física libera substâncias que reduzem a tensão e trazem bem-estar. Além disso, o movimento desvia o foco da mente para o corpo, favorecendo o retorno ao presente e interrompendo ciclos de ruminação ou pensamentos catastróficos."

 

E como a Arteterapia auxilia na regulação emocional, inclusive como técnica emergencial?

a Arteterapia também pode ser uma estratégia eficaz em momentos de desregulação emocional.

Quando colocamos nossas emoções em forma de desenho, colagem, pintura ou escrita espontânea, ativamos áreas do cérebro relacionadas ao autocontrole e à autorregulação.


Além disso, o ato de criar nos ajuda a sair do piloto automático, focar no presente e processar sentimentos de maneira segura e simbólica. Não é preciso “saber desenhar” — o que importa é permitir que o corpo e a emoção se expressem, sem julgamento. O movimento do pincel, o rasgar do papel ou o toque do lápis já são formas de ‘esvaziar’ o que está sobrecarregado internamente. Também não é preciso saber escrever, a ideia não é fazer uma redação, mas expressar livremente os conteúdos internos.

Uma outra forma é escolher uma música, cantar e dançar de forma livre, além de criar movimentos livres em uma folha de papel. Posteriormente, pintar os espaços com as cores que as emoções representam naquele momento, de formar a mapear, organizar e regular a intensidade das emoções presentes.

 

“Você não pode impedir que as ondas cheguem, mas pode aprender a surfar” (Jon Kabat-zinn – criador do Mindfulness baseado na redução de estresse)

 

 

Bibliografia:

LEAHY, Robert L.; TIRCH, Dennis; NAPOLITANO, Lisa A. Regulação Emocional em Psicoterapia: um guia para o terapeuta cognitivo-comportamental. Porto Alegre: Artmed, 2013.

KOTSOU, Ilios. Caderno de exercícios de inteligência emocional. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 4ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

KOTSOU, Ilios. Caderno de exercícios de Atenção Plena. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 4ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

SMEDT, Marc de. Caderno de exercícios de meditação no cotidiano. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2016.


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Sobre a autora: Juliana Mello



Psicóloga, Arteterapeuta e Coach

Atendimento clínico  individual e grupo om criança, adolescente, adulto e idoso.
Abordagem em Terapia Cognitivo- Comportamental e Arteterapia

Palestras e Workshop motivacionais.

GRUPO DE ESTUDOS: "TCC e técnicas expressivas"

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

RESPIRAÇÃO, PRANAYAMAS E A ARTETERAPIA: INTEGRAÇÕES POSSÍVEIS



por Karine Drumond - MG


“O que a arte oferece é um tipo de espaço de respiro para a alma” – em livre tradução de John Updike


Recentemente participei de uma vivência conduzida pela arteterapeuta Eliana Moraes onde exploramos o tema dos caminhos da vida, seus percalços e singularidades. A vivência foi muito rica e particularmente despertou em mim reflexões profundas sobre carreira e minhas escolhas. Durante o momento de exploração artística surgiu a produção que chamei de “O Caminho-Pulmão". Esta imagem e as conexões que ela evoca dialogam profundamente com meu momento atual. Após mais de 15 anos atuando como designer, experimento um processo de transição de carreira, me formando em Arteterapia e paralelamente me preparando para me tornar também instrutora de Yoga Integral. Nestes estudos, vislumbro muitos diálogos possíveis e sinergias nestas duas áreas de saber. 


A ideia deste artigo, nasce, portanto, destas reflexões sobre os diálogos possíveis entre os ensinamentos da Yoga Integral e Arteterapia. Quais são estes diálogos? De que maneira podem se complementar e potencializar as vivências arteterapêuticas? Neste artigo, em especial, proponho começarmos explorando os diálogos possíveis entre os pranayamas – as práticas respiratórias do yogae Arteterapia.

Pranayama e arteterapia: uma base em comum

A palavra pranayama é composta de dois termos: prana, que significa respiração, alento primordial, energia vital, e ayama, que significa pausa, retenção. Literalmente, pranayama, quer dizer, portanto, retenção da energia vital. Segundo Blay (1996), Pranayama é a parte do Yoga que trata do domínio das energias psíquicas mediante a regulação do movimento respiratório. 


Tanto o pranayama quanto a arteterapia partem da experiência presente.

Enquanto a arteterapia dá forma às sensações internas por meio da expressão visual, as técnicas de pranayama nos convidam a mergulhar em nosso ritmo respiratório como ponto de conexão entre corpo e psique. Ambos criam um espaço para que o que está latente — emoções, imagens, memórias, impulsos — possa emergir com mais clareza. Além do que, compartilham o mesmo objetivo: a integração do Eu superficial com o Eu mais profundo, levando ao desenvolvimento pessoal. 

Aspectos psíquicos da respiração e a arteterapia

Como sabemos, a respiração, enquanto ato ao mesmo tempo voluntário e involuntário, reflete e influi nos estados mentais dos indivíduos. Um dos objetivos primordiais do controle da respiração, no Yoga, consiste em promover um diálogo saudável e nutritivo entre a energia contida na personalidade profunda (inconsciente) com a personalidade superficial (consciente).  Esta integração, na ordem fisiológica, leva a integração de todos os seus sistemas nervosos (central, simpático e parassimpático).  No Hatha Yoga, a integração no nível psíquico leva a integração no nível fisiológico e vice e versa. A respiração é o primeiro ato do ser humano ao nascer, é o ato vital que o mantém em contato permanente com o mundo que o rodeia. Ao integrar práticas de respiração em Arteterapia, um primeiro diálogo importante que podemos fazer é explorar as fases ou tempos da respiração e suas relações simbólicas, como veremos a seguir.

Inspiração e expansão (puraka)

Fisiologicamente é o movimento do aparelho respiratório que permite a entrada do ar nos pulmões. Psicologicamente é o ato pelo qual o indivíduo recolhe ou deixa entrar o ar de que necessita; relaciona-se diretamente com a afirmação do indivíduo dentro de si mesmo. O desenvolvimento da inspiração profunda representa o ato de acolher o novo, nutrir-se, abrir-se às possibilidades.


Na arteterapia, associada a técnicas de pranayamas, podemos explorar as relações simbólicas que surgem desse ato. O que pode traduzir-se, por exemplo, na pergunta-reflexão: “O que preciso inspirar agora na minha vida? Como posso dar forma a esse desejo criativamente?” “Do que preciso me nutrir para crescer?” 

Expiração e entrega  (rechaka)

Fisiologicamente é o movimento do aparelho respiratório que expulsa o ar dos pulmões. Psicologicamente, é o ato com o que o indivíduo expulsa ou se desprende do ar viciado de seus pulmões. Relaciona-se com a expansão da personalidade e com as formas que adota.


No ateliê terapêutico, esse momento pode ser explorado com convites à experimentações com práticas que permitem evocar desapego. Pergunta-reflexão: “Do que preciso abrir mão para que algo novo possa surgir em mim e na minha vida?”

Pausa entre as respirações (kumbhaka)

As retenções são como uma suspensão criadora, um momento de espera e integração entre o que foi e o que virá. A retenção com pulmão cheio, corresponde psicologicamente a um ato assimilador, retentor e conservador, em seu duplo aspecto fisiológico e psíquico. É uma fase ou movimento de equilíbrio relativamente estável. A retenção com os pulmões vazios é um ato pelo qual se mantém em estado de vazio, de ausência de ar, do mundo e dos conteúdos do eu. Momento de equilíbrio instável, abstração ou morte. Feito de forma natural, evoca o distanciar-se do vaivém das coisas. Em Arteterapia podemos indagar:

“Como posso habitar o intervalo entre o conhecido e o desconhecido? O que há neste intervalo? Como dar forma a esse momento de pausa?”


Ritmo e ciclos

A cadência da respiração nos lembra que tudo na vida é cíclico, um vai-e-vem entre dar e receber. A própria observação consciente dos ciclos respiratórios pode inspirar mandalas, padrões gráficos, imagens circulares que tragam senso de continuidade e equilíbrio.

Em ateliê terapêutico podemos explorar visualmente “Como meu ritmo interno se manifesta visualmente? O que ele me ensina sobre o fluxo da minha própria vida?”


Respiração alternada (nadi shodhana)

No Yoga, ao trabalhar técnicas de respiração alternada, busca-se equilibrar os dois canais da respiração (narina direita = positiva, narina esquerda=negativa), criamos uma disponibilidade para a harmonização das polaridades (razão e emoção, ação e entrega, luz e sombra, atividade e descanso). Pergunta-reflexão: “Que opostos dentro de mim buscam diálogo? Como eu os simbolizaria criativamente?”

Possibilidades para integrar pranayama e arteterapia na prática

Explorando alguns possíveis diálogos, vimos como as práticas de respiração do Yoga podem propiciar e potencializar o autoconhecimento, funcionando como um meio de ampliar a percepção sobre si mesmo e seus estados mentais, promovendo um diálogo interno mais harmônico. Um exemplo comum, na condução de uma sessão, o terapeuta pode começar guiando um pranayama simples e curto — o suficiente para que o participante entre em contato com a própria respiração. Depois, com os olhos ainda fechados, pode-se propor que a pessoa observe as imagens que emergem durante a prática e que as transponha para o papel, a argila, a colagem ou o material que preferir. Ao final, a reflexão sobre o que foi criado ganha ainda mais profundidade quando relacionada às qualidades da própria respiração, criando uma ponte entre o que foi vivido corporalmente e o que foi expresso visualmente.


Pesquisando, descobri algumas outras possibilidades interessantes. Como por exemplo, o relato de uma arteterapeuta que colaborou em parceria com uma instrutora de yoga, em sessões para grupos de veteranos em habilitação assistida, com foco em cessação ao tabagismo e manejo do estresse. A intenção foi oferecer estratégias alternativas de enfrentamento — como arte, movimento e atenção plena — em sessão integrativa, unindo psicoeducação, práticas respiratórias e experiências arteterapêuticas. Após o momento de respiração, os participantes foram convidados para criar mandalas com aquarela sobre círculo desenhado à base de giz branco. A técnica com giz resistiu à tinta, fazendo a forma circular emergir sob camadas de cor. Essa mandala simbólica representou o “espaço de respiração interno”, funcionando como metáfora de proteção emocional e lembrança visual a ser mantida mesmo em camadas de vida e tensão. O grupo refletiu sobre o valor de criar fronteiras que protejam momentos de desaceleração e introspecção. A mandala funcionou como lembrança visual desse espaço interno sempre acessível.


Concluindo, o pranayama aquieta a mente e equilibra o sistema nervoso, ampliando a presença e a consciência de si. Esse estado pode potencializar a expressão simbólica, permitindo que as imagens que surgem no processo criativo sejam mais autênticas e conectadas àquilo que precisa ser visto, sentido e elaborado. Pensando nisso, essa integração entre respiração consciente e expressão artística enriquece o próprio caminho de autoconhecimento. Em ateliê arteterapêutico o ritmo da respiração pode virar traço, a inspiração pode virar cor, a pausa pode virar forma, e a entrega pode virar imagem. Respiração em arteterapia pode ser tanto usada como técnica auxiliar, potencializadora das práticas, quanto também como objeto-foco da sessão terapêutica, com ricas possibilidades.

Dessa maneira, o pranayama e a arteterapia se encontram como práticas e saberes que se entrelaçam e abrem novas vias para o florescimento pessoal e criativo.

Este entrelaçar dos dois saberes não acaba aqui, é apenas o começo, continuo seguindo minha curiosidade, ávida por descobrir novas tramas dessa costura.


Referências


BLAY, Antonio. Fundamento e prática do hatha yoga: Loyola, 1996


ROIZEN, Sara. BREATHING SPACE COLLABORATION ~ WITH VETERANS. Art Therapy Spot, 17 nov. 2013. Disponível em: https://arttherapyspot.com/2013/11/17/breathing-space-collaboration-wi/?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 22 jun. 2025.



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Sobre a autora: Karine Drumond




Karine Drumond tem uma formação em Design, Arte Educação. Pós graduanda em Arteterapia pelo INTEGRATE - MG. Com sólida experiência facilitando processos criativos para mulheres e crianças entre 7 e 14 anos. Atuou como pesquisadora e professora em Design na PUC Minas por mais de 10 anos. Recentemente atuou na ONG Projeto Reconstruir, utilizando a arte como ferramenta de expressão e transformação social. Atualmente, está à frente do EquilibrArte, projeto em construção que pretende promover vivências que integram yoga, arteterapia e autoconhecimento para resgatar o bem-estar e a criatividade pessoal e coletiva.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

OLHAR DA ARTETERAPIA NA RELEITURA DE HENRI MATISSE COM IDOSOS

 


Por Anderson Amaral  e Adriana Limeira do Nascimento - CE

O envelhecimento é um processo natural e inevitável na trajetória humana. Ao longo da vida, todos percorremos diferentes fases — infância, adolescência, vida adulta e, por fim, a velhice. Cada etapa é marcada por descobertas, desafios e transformações, e envelhecer, embora muitas vezes visto com receio, também pode ser um tempo de ressignificações, novas conexões e expressão de sabedorias acumuladas.

O Brasil, embora ainda seja considerado um país relativamente jovem, vem passando por um acelerado processo de envelhecimento populacional. Segundo os dados dos Censos Demográficos, a proporção de pessoas com 65 anos ou mais tem crescido de forma contínua: era de 4,8% em 1991, passou para 5,9% em 2000, 7,4% em 2010 e alcançou 10,9% em 2022. Em números absolutos, essa população aumentou de 10 milhões em 2000 para 14,1 milhões em 2010, atingindo 22,2 milhões em 2022 (GONÇALVES et al., 2024).

Esse cenário traz implicações importantes para a organização social e os cuidados com a população idosa. Um dos impactos mais relevantes é o crescimento do número de idosos institucionalizados. De acordo com dados do Censo de 2022, cerca de 160.784 pessoas com 60 anos ou mais viviam em instituições de longa permanência, o que representa aproximadamente 0,5% dessa população — estimada em 32,1 milhões de indivíduos (BRASIL, 2024).

Diante disso, torna-se essencial repensar os espaços terapêuticos dentro das instituições de longa permanência, para que não sejam apenas locais de cuidado físico, mas também de estímulo, afeto e dignidade. Segundo Amaral e Nascimento (2025), é fundamental que esses ambientes ofereçam propostas de estimulação cognitiva, motora e afetiva por meio de jogos, arte, musicalização, dança e outras práticas que favoreçam a ludicidade e o vínculo entre idosos, profissionais e familiares. O objetivo vai além da funcionalidade: busca-se a promoção do bem-estar, da humanização do cuidado e da valorização da pessoa idosa em sua totalidade.

Nesse contexto, a arteterapia tem se mostrado uma abordagem poderosa e sensível, especialmente no ambiente institucional. Ela contribui para a manutenção da cognição, regula o humor, favorece a expressão afetiva e possibilita a ressignificação de vivências pessoais. Por meio da arte, muitos idosos encontram novas formas de expressar emoções e histórias — especialmente quando as palavras já não são suficientes.

Este artigo apresenta um relato de experiência da utilização da arteterapia com idosos institucionalizados no Lar Amantino Câmara, em Mossoró (RN). A proposta foi inspirada na obra do artista francês Henri Matisse, conhecido por sua sensibilidade ao trabalhar com cores e formas recortadas. Matisse, mesmo diante das limitações físicas impostas pela velhice, reinventou sua arte utilizando tesouras em vez de pincéis, criando colagens vibrantes e expressivas. Sua trajetória inspira a ideia de que a criatividade pode florescer mesmo nos momentos de maior fragilidade.



A sessão contou com a participação de oito idosos, sendo dois cadeirantes e quatro com sinais de declínio cognitivo leve. Os participantes foram distribuídos ao redor de mesas, e o início da atividade foi marcado por um convite à presença e ao foco no “aqui e agora”, embalado pela trilha sonora “Acoustic Flower Vol. 35 – Henri Matisse”. O ambiente sensorial criado visava acolher, acalmar e despertar as potências criativas de cada um.

Cada idoso recebeu uma folha com desenhos inspirados na estética de Matisse, além de giz de cera colorido. A proposta era que pintassem livremente, utilizando cores vibrantes e formas fluidas, resgatando o espírito criativo e subjetivo do artista. Após essa etapa, foram convidados a observar suas produções com carinho e atenção.

Em seguida, as imagens foram cuidadosamente recortadas e coladas sobre folhas A4 previamente escurecidas com giz de cera preto. Essa preparação do fundo tinha como objetivo criar contraste visual, facilitando a percepção das formas e valorizando o resultado final da colagem. Alguns participantes necessitaram de auxílio no manuseio da tesoura, devido a limitações motoras nas mãos ou dificuldades visuoespaciais, e esse suporte foi oferecido com respeito, buscando preservar ao máximo a autonomia de cada idoso. 

Ao final, os participantes foram convidados a observar os trabalhos prontos e compartilhar as sensações e lembranças evocadas durante o processo. Muitos relataram emoções ligadas à infância, à liberdade de criação e ao prazer de realizar algo bonito com as próprias mãos. O clima geral foi de leveza, pertencimento e conquista.

 

Objetivos da atividade:

  • Estimulação cognitiva e sensorial: O uso de diferentes materiais, cores e texturas promoveu o engajamento de múltiplos canais sensoriais, contribuindo para a manutenção das funções cognitivas e perceptivas.
  • Promoção da expressão simbólica: A releitura da obra de Matisse permitiu que cada idoso imprimisse seu olhar singular sobre as formas e cores, favorecendo a livre expressão e a construção de sentido por meio da arte.
  • Valorização da história de vida e da resiliência: O paralelo com Matisse reforçou a ideia de superação e reinvenção, mostrando que a arte e a criatividade continuam sendo possíveis — e significativas — em qualquer fase da vida.
  • Fortalecimento da autoestima e do sentimento de pertencimento: Ao produzirem algo belo, coletivo e respeitosamente acolhido, os idosos sentiram-se valorizados, o que contribui para o bem-estar emocional e social.
  • Desenvolvimento da coordenação motora fina: As etapas de pintura, recorte e colagem exigiram planejamento motor e atenção, trabalhando aspectos fundamentais para a preservação da funcionalidade e da autonomia.

Os idosos demonstraram grande entusiasmo ao longo de toda a vivência, e, ao final da atividade, muitos expressaram surpresa e encantamento com os próprios resultados. Relataram que, no início, não acreditavam ser capazes de produzir algo tão bonito, criativo e colorido. Alguns verbalizaram que não tinham o hábito de desenhar ou pintar desde a juventude, e que a proposta os tirou da zona de conforto de forma leve e acolhedora.

Durante o momento de apreciação das colagens finalizadas, foi possível observar olhares de admiração, sorrisos espontâneos e comentários cheios de orgulho, como: “Eu não imaginava que conseguiria fazer isso” e “Não é que eu tenho jeito para a coisa?”. Uma das participantes, que apresentava sinais de isolamento nos dias anteriores, compartilhou que a atividade a fez se sentir “viva e útil”.

Essas reações reforçam o quanto é essencial oferecer experiências significativas, que valorizem a autonomia, estimulem a criatividade e promovam o reconhecimento das capacidades ainda preservadas. Quando o idoso é convidado a criar, expressar e compartilhar, ele não apenas exercita habilidades cognitivas e motoras, mas também reconstrói sua autoestima e fortalece sua identidade — sentindo-se, de fato, visto e respeitado.       



Considerações Finais

A experiência relatada neste artigo reforça o potencial transformador da arteterapia no contexto das instituições de longa permanência para idosos. A atividade inspirada na obra de Henri Matisse mostrou-se não apenas uma estratégia de estimulação cognitiva e motora, mas também um poderoso recurso de expressão emocional, resgate de memórias e fortalecimento da autoestima.

Ao oportunizar que os idosos criassem, interagissem e refletissem sobre suas produções, foi possível observar o despertar de afetos, a construção de significados e o sentimento de pertencimento ao grupo. Mais do que o resultado estético das colagens, o que se evidenciou foi a importância do processo: o olhar atento, o toque cuidadoso, o som que embala, a partilha silenciosa ou falada — pequenos gestos que reafirmam a presença, a dignidade e o valor de cada um.

Diante do avanço do envelhecimento populacional no Brasil, ações como esta revelam-se fundamentais para qualificar o cuidado em ambientes institucionais, promovendo saúde, bem-estar e humanização. A arteterapia, nesse sentido, não é simples pintar ou colar, mas uma necessidade vital: ela amplia horizontes, reconecta histórias, ressignificar e devolve ao idoso a possibilidade de continuar sendo autor de sua própria existência.

                  


Referências

AMARAL, A.; NASCIMENTO, A. L. Tratado do jogo: das regras às regras em jogo. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2025. 669 p.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil tem 160 mil pessoas vivendo em asilos e 14 mil em orfanatos. Agência Brasil, 28 set. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-09/brasil-tem-160-mil-pessoas-vivendo-em-asilos-e-14-mil-em-orfanatos. Acesso em: 15 jul. 2025.

GONÇALVES, A.; ALVES, L. C. Idade prospectiva e as novas medidas de envelhecimento populacional: indicadores para o Brasil e suas cinco regiões. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 41, p. 1–24, e0278, 2024. DOI: 10.20947/S0102-3098a0278. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/PFr6mrgfGjpdt8RzXdrGLmr/. Acesso em: 15 jul. 2025.

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Sobre os autores: 



Anderson Amaral – Arteterapeuta formado pelo Espaço Psi Rio de Janeiro. Mestre em Tecnologia no Espaço Hospitalar, Pós-graduação em Neurociência com ênfase em Envelhecimento. Pós-graduado em Geriatria e Gerontologia, Pós-graduação em Neuropsicologia ênfase em Reabilitação Cognitiva e Arteterapeuta do lar Amantino Câmara. Autora do Livro Jogos de Estimulação Cognitiva e Motora - WAK Editora e Co autora do livro Tratado do jogo: das regras às regras em jogo - WAK Editora



Adriana Limeira do Nascimento – Arteterapeuta, Terapeuta Ocupacional, Pós-graduação em Saúde Menta, Pós-graduação em Saúde Pública e Brinquedista pela ABBri – Autora do Livro Jogos de Estimulação Cognitiva e Motora - WAK Editora e Co autora do livro Tratado do jogo: das regras às regras em jogo - WAK Editora