segunda-feira, 12 de agosto de 2024

A PRÁTICA DA ARTETERAPIA: ESTUDOS E APLICAÇÕES


 


Por Eliana Moraes – MG

@naopalavra

@atelienaopalavrabh

 

Dentre os estudos escolhidos para 2024, resgatei um livro que já havia lido por duas vezes. Meu primeiro encontro com “A prática da psicoterapia” de Carl G. Jung foi na faculdade de psicologia, por volta de 2006, e me identifiquei amplamente com as palavras do autor. Alguns anos mais tarde, já profissional atuante de psicologia, reli o livro, solidificando alguns recursos terapêuticos que eu intuitivamente, já fazia uso. 

Neste ano, decidi ler pela terceira vez esse livro, mas agora com as lentes de uma arteterapeuta propriamente dita, e também como supervisora e colaboradora para o desenvolvimento de arteterapeutas na formação continuada. Meu objetivo é buscar na Psicologia Analítica (como em outras abordagens teóricas) as possíveis aplicações na Arteterapia como prática, saber e profissão. O texto de hoje é o compartilhamento da primeira parte desse estudo e articulação. 

Para nós, arteterapeutas brasileiros, está claro que uma das principais referências teóricas advindas das teorias da psicologia é a Psicologia Analítica e sua imensa contribuição para a leitura simbólica das imagens produzidas nas sessões arteterapêuticas. Além disso, o próprio manejo terapêutico junguiano é bastante instrumentalizador do arteterapeuta. Entretanto, resgatei a memória de que um dos pontos que mais me encantaram em “A prática da psicoterapia” foram as palavras de Jung que compreendia a razão de ser das diversas teorias da psicologia e sugeria que os representantes de cada ponto de vista se resguardassem de classificar como errôneos pontos de vista diferentes:

 

Para os representantes de cada um dos pontos de vista, era bastante natural e mais simples considerar errônea a opinião do outro. Uma apreciação objetiva dos fatos reais mostra, no entanto, que cada um desses métodos e teorias tem sua razão de ser, não só pelo êxito obtido em certos casos, como também por mostrarem realidades psicológicas que comprovam amplamente os respectivos pressupostos... a existência de múltiplos enfoques psicológicos possíveis não deveria ser pretexto para se considerarem as contradições insuperáveis, e as interpretações, internamente subjetivas e não mensuráveis. As contradições em qualquer ramo da ciência comprovam apenas que o objeto da ciência tem propriedade, que por ora só podem ser apreendidas através de antinomias. (JUNG, 1971/2004, p 2) 

Tenho defendido em minhas aulas e escritos, a importância do arteterapeuta em formação continuada, ter a oportunidade de ampliar seu repertório teórico, conhecendo outros referenciais e desenvolvendo seu estilo próprio de ser e atuar como arteterapeuta. Não se trata de fazer uso de diversas frentes de orientações sem critérios, mas sim a ampliação progressiva de recursos para a contemplação da diversidade de aspectos humanos a serem acolhidos no setting. Da mesma forma, se compreendemos a complexidade humana atualizada nos diversos pacientes/clientes recebidos, podemos considerar que essa diversidade também irá comparecer nas diferentes interpretações dos fenômenos humanos. Nas palavras de Jung:

 

A psicoterapia é um campo da terapêutica, que se desenvolveu e atingiu uma certa autonomia somente nos últimos cinquenta anos. As opiniões nesta área foram mudando e diferenciando-se de várias maneiras. As experiências foram se acumulando e dando lugar a diversas interpretações. A causa disso está no fato de a psicoterapia não ser um método simples e evidente, como se queria a princípio. Pouco a pouco foi-se verificando que se trata de um tipo de procedimento dialético, isto é, de um diálogo ou discussão entre duas pessoas... O primeiro desses fatos deve ter sido a necessidade de reconhecer que era possível interpretar os dados da experiência de diferentes maneiras. Desenvolveram-se diversas escolas de concepções diametralmente opostas. (JUNG, 1971/2004, p 1) 

Em seu livro, ao apresentar a sua teoria prática da psicoterapia, Jung adverte:

 

Para prevenir equívocos quero logo acrescentar que essa mudança de ponto de vista, de modo algum declara incorretos, supérfluos ou ultrapassados os métodos anteriormente existentes. Isto porque, quanto mais o conhecimento penetra na essência do psiquismo, maior se torna a convicção de que a multiplicidade de estratificações e as variedades do seu humano também requerem uma variedade de pontos de vista e métodos, para que a diversidade das disposições psíquicas seja satisfeita. (JUNG, 1971/2004, p 7) 

Mais além, ele nos faz um pedido (por vezes esquecido):

 

Logo, se venho a público para dizer algo a respeito das minhas ideias, peço, por favor, que isso não seja interpretado como uma propaganda de uma nova verdade, ou como anúncio de um evangelho definitivo. (JUNG, 1971/2004, p 36) 

As palavras de Jung nos convidam a uma postura profissional adulta, que busca os embasamentos teóricos sem uma postura arrogante frente a teorias diferentes, bem como sem eleger uma teoria como um “evangelho” a ser seguido. Pelo contrário, nos diz que o terapeuta deve buscar os métodos que lhe fazem sentido e que possa neles depositar confiança:

 

Só importa os métodos em que o terapeuta tem confiança. Sua fé no método é decisiva. Se acreditar, ele fará por seu paciente tudo quanto estiver ao seu alcance, com seriedade e perseverança, e esse esforço voluntário e essa dedicação têm efeito terapêutico... (JUNG, 1971/2004, p 4-5) 

Aqui registro minha primeira reflexão e sugestão ao arteterapeuta, conhecedor da Arteterapia como um procedimento terapêutico riquíssimo de modalidades práticas, referências teóricas e repertórios técnicos: que o arteterapeuta se permita e permaneça se atualizando e buscando conhecer as tantas possibilidades proporcionadas pela Arteterapia. E que passo a passo, dia após dia, vá costurando sua colcha de retalhos, que construirá sua identidade e estilo profissional, singular e irrepetível. 




Uma Arteterapia não diretiva/invasiva

 Jung adverte aos terapeutas sobre a necessidade de não se colocarem em uma posição de saber superior. Compreende que um terapeuta não tem condições de julgar a integralidade daquele sujeito e aponta que o caminho do processo terapêutico é dialético, abrindo espaço para que o outro se apresente, sem limitá-lo com pressupostos teóricos:

 

Se, na qualidade de psicoterapeuta, eu me sentir como autoridade diante do paciente e, como médico, tiver a pretensão de saber algo sobre a sua individualidade e fazer afirmações válidas a seu respeito, estarei demonstrando falta de espírito crítico, pois não estarei reconhecendo que não tenho condições de julgar a totalidade da personalidade que está lá à minha frente. Posso fazer declarações legítimas apenas a respeito do ser humano genérico... [mas] só posso afirmar sobre a individualidade de outrem, o que encontro em minha própria individualidade, corro o risco, ou de violentar o outro, ou de sucumbir por minha vez ao seu poder de persuasão. Por isso, quer eu queira, quer não, se eu estiver disposto a fazer o tratamento psíquico de um indivíduo, tenho que renunciar à minha superioridade no saber, a toda e qualquer autoridade e vontade de influenciar. Tenho que optar necessariamente por um método dialético, que consiste em confrontar as averiguações mútuas. Mas isto só se torna possível se eu deixar ao outro a oportunidade de apresentar seu material o mais completamente possível, sem limitá-lo pelos meus pressupostos. (JUNG, 1971/2004, p 3) 

O autor ainda complementa suas orientações dizendo que o terapeuta deve sempre manter seu olhar sobre a dimensão individual, que ultrapassa qualquer possibilidade de previsão e interpretação:

 

Como explicamos na introdução, a parte individual é única, imprevisível e não interpretável. O terapeuta deve renunciar neste caso a todos os seus pressupostos e técnicas e limitar-se a um processo puramente dialético... em fazer da atitude menos preconcebida possível. Em outras palavras: o terapeuta não é mais um sujeito ativo, mas ele vivencia junto um processo evolutivo individual. (JUNG, 1971/2004, p 5) 

Trazendo as orientações de Jung para a Arteterapia propriamente dita, precisamos reconhecer que como arteterapeutas possuímos um desafio o mais. Quando compreendemos o manejo arteterapêutico, que ouve a demanda do sujeito e lhe oferece aquele material (o estímulo projetivo, a materialidade, o processo criativo...) pertinente e facilitador, faz-se aqui um grande desafio para que essa condução não seja diretiva e invasiva. E mais, que a leitura das imagens resultantes não sejam fruto de interpretações projetivas, (advinda dos conteúdos psíquicos do próprio arteterapeuta), abusivas, previsíveis e gerais. 

O desenvolvimento do arteterapeuta em sua formação continuada colabora que ele crie recursos para a sustentação de uma escuta sensível, num lugar de mediador (não de protagonista), decodificando o pedido do paciente/cliente em sua demanda terapêutica  quanto ao material que lhe será pertinente naquele contexto clínico. 



O fazer arteterapêutico e a individuação

 Um dos principais pilares da Psicologia Analítica está no caminho individual de “cura” de cada sujeito: sua individuação, seu autoconhecimento e seu processo de se tornar aquilo que ele é. E que dessa forma tenha condição de assumir a coragem e a responsabilidade de ser quem é:

 

Em todos esses casos, o médico deve deixar aberto o caminho individual da cura, e neste caso o processo terapêutico não acarretará nenhuma transformação da personalidade, mas será um processo, chamado de individuação. Isso significa que o paciente se torna aquilo que de fato ele é. (JUNG, 1971/2004, p 8)

 

Com isso, não se visa o “individualismo”, mas unicamente uma forma de estabelecer a condição prévia indispensável a todo ato responsável, que é que cada qual se conheça a si mesmo e a sua própria maneira de ser, e que tenha a coragem de assumi-la. O homem só passa a ser responsável e capaz de agir, quando existe a seu modo. (JUNG, 1971/2004, p 24) 

O método vivencial de processos criativos e a formações das imagens advindas do universo simbólico do sujeito, são especificidades da Arteterapia dentre os procedimentos terapêuticos, colaborando  e potencializando cada indivíduo rumo ao seu autoconhecimento, responsabilização de seus atos e conteúdos psíquicos bem como a apropriação e coragem de assumir-se em sua integralidade. 

Encerrando essa primeira etapa de estudo e aplicação do livro “A prática da psicoterapia” em territórios arteterapêuticos, fica claro que ser arteterapeuta não é fácil. É um caminho trabalhoso de desenvolvimento continuado, com seus altos e baixos, luzes e sombras, dores e delícias... Mas se ao longo dessa caminhada surgir a sensação de fracasso ou incapacidade, lembremos das palavras de Jung:

 

Na minha prática psicoterapêutica de quase trinta anos acumulei uma série considerável de fracassos, que me influenciaram mais do que meus sucessos... O psicoterapeuta pouco ou nada aprende com os sucessos, principalmente porque o fortalecem nos seus enganos. Os fracassos, ao invés, são experiências preciosíssimas, não só porque através deles se faz a abertura para uma verdade maior, mas também porque nos obrigam a repensar nossas concepções e métodos. (JUNG, 1971/2004, p 36) 

Em um próximo texto continuaremos nosso bate papo entre “A prática da psicoterapia” e a prática da Arteterapia.



Referência Bibliográfica:

JUNG, Carl G. A prática da Psicoterapia. 

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Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1, 2 e 3

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

2 comentários:

  1. Preciosas colocações sobre este livro. Ampliação da consciência de cada um, abertura de portais para liberdade de ser quem se é, tanto terapeuta quanto paciente. Uma leitura que nos remete à um lugar de humildade, como tanto nos estimula os livros de Beatriz Cardella. O (arte)terapeuta é peregrino e hóspede, companheiro de jornada na vida do paciente. É um aprendiz de novas realidades e de maneira respeitosa deve caminhar ao lado deste para crescer todo dia um pouco mais e para tanto a formação contínua e persistente é um objetivo a ser perseguido sempre. Parabéns, Eliana e obrigada por mais uma vez nos conduzir nesta boa reflexão, desta vez na companhia de Jung!.

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  2. Tânia e Eliana "preciosas" também, são vocês em disponibilizarem essa leitura e nos despertarem à refletir sobre o valor da humildade que a autora do livro nos possibilita. Obrigada

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