segunda-feira, 7 de agosto de 2023

REFLEXÕES SOBRE A ESCUTA ARTETERAPÊUTICA: A ARTE PREPARANDO O TERRENO DA CONSCIÊNCIA



Por Eliana Moraes – MG

Retomando o percurso de minha escrita caminhante no pensar a Arteterapia, percebo que desde meus primeiros textos, algo que tanto me chamava a atenção na prática arteterapêutica se dava nos limites da palavra: quando os pacientes/clientes chegavam ao setting imbuídos de alguma angústia, mas a palavra como forma de expressá-la, parecia interditada. Meus primeiros textos abordando essas observações clínicas e os potenciais arteterapêuticos para a ampliação da linguagem foram compilados no primeiro volume da série “Pensando a Arteterapia”.

Passados, desde então, dez anos de atuação e atualmente também acompanhando como professora e supervisora a prática de outros arteterapeutas, essas observações se atualizam e se ampliam. Este texto faz parte de um dos objetivos específicos do Não Palavra Arteterapia: colaborar para o desenvolvimento da escuta do arteterapeuta em sua formação continuada.

No “chão da vida” do setting arteterapêutico, observamos que há momentos em que o paciente/cliente descreve grande angústia mas, por estar tão inconsciente de si, não consegue associá-la à alguma causa raiz. Ou então, em casos de expressões racionais, teóricas, um discurso viciado no campo já conhecido, sendo este um mecanismo de defesa e evitação da dor de se fazer contato com suas questões psíquicas mais profundas. Casos como esses são um grande desafio para a psicoterapia tradicional pois aqui a palavra está associada à resistência. Já a Arteterapia, com seu convite à ampliação da linguagem para além da verbal, se mostra como um caminho de desbloqueio expressivo. Nas palavras de Duchastel:

Certo conteúdos inconscientes estão profundamente enterrados no fundo da alma simplesmente porque nós não estamos prontos para recebê-los. Essas imagens são muito dolorosas ou muito vastas para serem apreendidas por um eu frágil ou imaturo. A clandestinidade dessas imagens nos protege como nós protegemos nossos filhos de certas realidades, pois eles não são ainda suficientemente maduros para apreender plenamente seu sentido. Os símbolos do imaginário servem de agentes de ligação entre a consciência e o que nos anima subterraneamente. (DUCHASTEL, 2010, 51-52)


Obra: Susano Correia

Em Arteterapia compreendemos que é possível, através do processo criativo e a formação de imagens, provocarmos um rebaixamento da consciência resistente e recebermos pela “não palavra” a anunciação de conteúdos psíquicos tão sensíveis ao paciente/cliente.

O imaginário sempre precede o consciente. Todo conteúdo inconsciente se expressa antes sobre a forma metafórica, em nossos sonhos, nossas imagens, nossos desenhos ou nosso corpo. Por meio do imaginário, a psique anuncia, previne, age. (DUCHASTEL, 2010, 39)

Entretanto, um dos cenários clínicos que mais tem me tocado nos últimos tempos – recebidos com mim e supervisionandos – está em pacientes/clientes que estão vivenciando uma dor exacerbada, como por exemplo, em casos depressivos graves, ou a dor do luto pela perda de um ente querido ou ainda a dor de lembrar-se de traumas como experiências de abusos. Para essas pessoas, muitas vezes não é possível falar dessas dores através da palavra. O paciente/cliente não suporta falar sobre sua dor por uma sensação de “colocar o dedo na ferida”. Considero que para esse cenário a Arteterapia proporciona, com maestria e beleza, a possibilidade do sujeito permanecer no processo terapêutico com o recurso da “não palavra” das diversas linguagens da arte. Através do contato com esta, o paciente vai se fortalecendo e acessando seu potencial de saúde e seus recursos internos que muito colaborarão para o enfrentamento de sua profunda dor. Nas palavras poéticas de Angela Philippini, que são para mim uma bússola como arteterapeuta:

A experiência criativa  nos “transpassa” e permite que “trans-bordemos” e atravessamos limites e interdições,  resgatando “notícias de nós mesmos”, nem sempre claras e acessíveis no meio dos inúmeros ruídos e dispersões da vida cotidiana... (PHILIPPINI, 137)

Além disso, a oportunidade da ampliação da linguagem coopera para que o sujeito amplie também os conteúdos expressados, advindos do inconsciente, de forma que amplie também seu olhar sobre outras perspectivas além da dor:

Contrariamente às abordagens  psicoterapêuticas tradicionais, onde se relata principalmente eventos dolorosos ou traumatizantes decorridos no passado, a arte-terapia implica uma experiência imediata, que é vivida aqui e agora. Voltando ao instante presente, evita-se uma armadilha frequentemente vista em terapia: o aprisionamento do cliente em seu mito pessoal. A pessoa conhece e conta sua história pessoal como se tratasse de um cenário imutável, e com frequência, estéril. (DUCHASTEL, 2010, p 32)

Essa ampliação da linguagem e da percepção do sujeito coopera para a construção de um “novo vocabulário” e a abertura para uma “nova experiência”:

A utilização de diferentes meios de expressão... permite um contato direto com a sabedoria inconsciente e estimula a emergência de emoções bloqueadas. O terapeuta ajuda o cliente a observar seus modos de funcionamento e ultrapassá-losintroduzindo uma nova experiência. Essa experiência imediata no plano da relação terapêutica, oferece a possibilidade de ser surpreendido pelo poder das imagens e descobrir novas facetas de sua personalidade. Assim, aumentamos seu “vocabulário” de reações a diferentes situações da vida. (DUCHASTEL, 2010, 32)

Em síntese, em Arteterapia é possível acolher pacientes mergulhados em tão profunda dor que não é possível falar sobre ela através da palavra. É possível sustentar um processo terapêutico através da experiência com a arte em si. Através dela o inconsciente já é mobilizado ao processo de “cura” de suas dores. Basta, como arteterapeutas, termos a humildade de sustentar o setting no “silêncio elaborativo” do paciente/cliente, preparando o terreno para sua consciência: 

Estar à escuta do imaginário e honrá-lo é criar um espaço seguro e protegido para alimentar suavemente suas realidades inconscientes, às vezes, ameaçadoras, às vezes difíceis de aceitar. Desenhar, pintar, modelar, jogar, cantar ou dançar permite preparar o terreno da consciência. (DUCHASTEL, 2010, 51-52)

Concluímos que o papel de arteterapeuta é sustentar um têmenos – “espaço sagrado” para que o paciente/cliente mergulhe em no seu inconsciente através da arte. Mas especialmente, em cenários em que o caminho da palavra está impedido – o que pode gerar desconforto e vulnerabilidade para o sujeito e para o terapeuta – cabe ao arteterapeuta sustentar esse campo, terreno de potentes fenômenos do inconsciente, até que seja possível a expressão pela palavra. Nosso papel é abrir mão do controle e compreensão racional e sustentar esse campo com nossa própria energia psíquica porque:

Através dos meios artísticos, a pessoa exprime o que ela não saberia revelar de outra forma...

Para se revelar, a alma precisa desse contato contemplativo com a imagem, o gesto, o ritual. As palavras, a compreensão lógica, a disposição racional vêm em seguida, mais claras, mais precisas. (DUCHASTEL, 2010, 32-33)

 

 Referências Bibliográficas:

DUCHASTEL, Alexandra. O caminho do imaginário.

PHILIPPINI, Angela. “Linguagens e materiais expressivos”

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"


4 comentários:

  1. Que riqueza de conteúdo para pensar o diferencial da arteteraia frente a outras terapias que acontecem especialmente pela palavra. Me fez pensar que a não palavra também pode ser um caminho interessante para o excesso de palavras que servem para desviar do sentir... Aquele mecanismo de defesa que usa o falar compulsivo para evitar o vazio perturbador, o silêncio incômodo, evitando o contato mais profundo consigo mesmo.

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  2. Texto apropriado, rico em conteúdo, poético em seu desvelar a beleza do processo terapêutico e o quando a Arteterapia pode contribuir para os diferentes tipos de dores e sofrimentos de maneira singela, porém potente. É um texto para ler e reler muitas vezes. Obrigada, Eliana pela nutrição e incentivo ao nosso aperfeiçoamento constante.

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  3. Gratidão por tanta riqueza, nesse conteúdo tão profundo!

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