Por Eliana Moraes
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O Não Palavra Arteterapia estabeleceu-se como um espaço de formação continuada do arteterapeuta – aquela que se dá após o curso, permanente, de forma autônoma, enquanto o profissional estiver em atuação. Nosso objetivo geral é colaborar para o desenvolvimento da escuta arteterapêutica e um de nossos objetivos específicos é apresentar ao arteterapeuta a diversidade de teorias possíveis a serem articuladas com a Arteterapia.
Meu estilo arteterapêutico é constituído a partir do diálogo entre algumas teorias da psicologia, sendo a última delas inserida, a Logoterapia. Em 2023 concluo o curso de MBA em Logoterapia e desenvolvimento humano e tenho por desejo produzir conteúdos que articulem conceitos básicos da Logoterapia com as práticas arteterapêuticas, pois ao longo do curso percebi diversas associações entre esses dois saberes tão pertinentes à nossa contemporaneidade.
O caminho dessa pesquisa vem sendo compartilhado dentro das palestras mensais do Não Palavra, o que temos considerado como um grupo de estudos aberto. Essas palestras estão gravadas, disponíveis para aquisição e no texto de hoje trago um breve resumo da primeira delas.
A Logoterapia e conceitos iniciais
Esta é uma teoria criada e desenvolvida por Viktor Frankl. Viktor nasceu em Viena, em 1905, em uma família de origem judaica. Estudou medicina na Universidade de Viena e especializou-se em neurologia e psiquiatria. Organizou desde 1920 Centros de Aconselhamento para a juventude. Exerceu a psiquiatria de 1937 a 1942. Neste ano, foi deportado, junto com sua esposa e família para um campo de concentração, sendo liberado em 1945 pelo exército americano. Diferente de sua esposa e família, Frankl sobreviveu ao holocausto, e após sua libertação, retornou a Viena.
Em 1945 escreveu o best seller “Em busca de sentido”, onde descreve a vida no campo de concentração sob a perspectiva da psiquiatria e de conceitos da Logoterapia. Nesta obra expõe que, inclusive nas condições mais extremas de desumanização e sofrimento, o homem deve encontrar sentido para viver, baseada em sua dimensão espiritual (noética). Esta reflexão lhe serviu para confirmar e terminar de desenvolver a Logoterapia: a terapia baseada no sentido, no significado.
Desde então se dedicou a escrever (aproximadamente 40 livros, traduzidos em 40 idiomas), a dar conferências ao redor do mundo, fazer psicoterapia e formar logoterapeutas. Faleceu em 1997.
O ponto de partida da reflexão logoterapêutica se dá na diferenciação entre os animais e o homem:
...
enquanto cada animal possui seu meio ambiente adequado, o homem tem acesso a um
mundo do sentido. Em resumo, o homem penetra na dimensão espiritual.
(FRANKL in AQUINO, 2013, 43)
“Dessa
forma, a diferença entre os homens e os animais não seria apenas gradual, pois
emoções como medo, raiva e prazer são compartilhadas entre ambos, como também
alguns processos básicos, como percepções, recordações e aprendizagem. O que
os diferencia seria uma dimensão qualitativamente nova, aquela pela qual a
pessoa humana é capaz de valorizar, posicionar-se e decidir (LUKAS, 1992ª).”
(AQUINO, 2013, 45)
Ao contrário dos animais, homens e mulheres se preocupam com o sentido de suas vidas, pois possuem a consciência da finitude da existência. (AQUINO, 2013, 53)
Neste princípio, Frankl cunhou a visão antropológica (a visão de homem) e o conceito chave de sua teoria: a Ontologia Dimensional. A palavra Ontologia significa o estudo ou o conhecimento do Ser, e dimensional porque ela se dá em dimensões. Frankl compreende o ser humano em três dimensões conforme representação abaixo.
Assim, a Logoterapia compreende o ser humano numa unidade biopsíconoética:
O
ser humano não poderia mais ser concebido apenas como um ser autômato, reduzido
a processos psicológicos, sociológicos ou somáticos.
Para
tanto, Frankl introduz mais uma dimensão, na qual se localizam os fenômenos
especificamente humanos. Na concepção da Logoterapia, o indivíduo possui um
corpo(soma), uma psiquê, entretanto sua essência se encontra numa dimensão
além: a dimensão noética/espiritual, essa última dimensão compreendida
mais como uma dimensão antropológica do que religiosa. Dessa forma, Frankl
constitui uma maneira de abordar o ser humano e compreendê-lo de forma
integral. (AQUINO, 2013, 43-44)
Apesar
de suas diversas dimensões, a pessoa humana não pode ser fragmentada, posto que
além de ser in-divi-duum, ou seja, não pode ser dividido, é também in-sum-mabile
– além de unidade, o ser humano é uma totalidade. Assim o ser humano é uma
unidade na multiplicidade, unitas multiplex...
A dimensão noética seria o núcleo integrador do ser humano. (AQUINO, 2013, 45)
Assim nasce o conceito da Dimensão Noética ou Espiritual, tão própria da teoria Logoterapêutica, sendo compreendida como uma dimensão mais humana do que religiosa. Esta está inserida no campo da dimensão noética – para aqueles que lhe fazem sentido – mas mão representa sua totalidade.
... a dimensão espiritual ou noética localiza as posturas do ser humano... como, por exemplo “as dimensões da vontade, intencionalidade, interesses práticos e artísticos, pensamento crítico, religiosidade, senso ético (consciência moral) e compreensão do valor. (LUKAS, 1898, 28-29)” (AQUINO, 2013, 44-45)
Atitudes humanas como consciência, senso crítico, liberdade e responsabilidade, ética, valores, religiosidade, experiências artísticas e criativos compõem a dimensão noética. Nesse sentido, qual seria o plano terapêutico para a Logoterapia?
...
o grande desafio da psicoterapia atual é compreender os problemas filosóficos
trazidos pelos pacientes, abrindo-se para a investigação da dimensão noética e
suas possibilidades para a cura psíquica...
A
Logoterapia é concebida como a psicoterapia a partir do noético...
assim, o logoterapeuta deve trabalhar no sentido de desbloquear a dimensão
noética. (AQUINO, 2013, 78)
Aqui reside uma questão bastante sensível, mas que diz respeito à ética terapêutica: a necessidade do terapeuta considerar, respeitar e trabalhar com o ser humano integral, incluindo sua dimensão noética individual, ou seja, a visão de mundo, valores, espiritualidade, religiosidade e sentido de vida DO PACIENTE. É imperativo que o terapeuta desprenda-se de sua cosmovisão pessoal, de seus conceitos e preconceitos para trabalhar com a cosmovisão de seu paciente, pois esta faz parte de seu ser integral e entendemos que não é possível uma psicoterapia profunda sem acolher o sujeito em sua integralidade. Faz parte do manejo logoterapêutico proporcionar que o paciente se sinta seguro para se expressar sobre sua dimensão noética sem juízo de valores ou não legitimação de suas questões existenciais.
Arteterapia
e espiritualidade
Em Arteterapia temos um livro que estuda as associações entre Espiritualidade e Arte: “Pensando a Arteterapia – com arte, ciência e espiritualidade” organizado por Sonia Tommasi, que tem me auxiliado na articulação entre a Logoterapia e a Arteterapia. No capítulo “Arteterapia potencializando o desenvolvimento espiritual”, Wasiack e Paraboni defendem que:
Espiritualidade
é inerente ao homem, e este sempre estará trabalhando com
ela.
Sendo assim, é importante definir o que entendemos por espiritualidade, e para isso nos questionamos: Mas o que vem a ser espiritual? Como, quando, para que e por que as pessoas despertam para o espiritual? (WASIACK & PARABONI in TOMMASI, 2012, 80)
E
respondem:
Rothem
(1996), um arteterapeuta israelense, afirma que o espiritual é aquilo que dá
sentido à vida. Sendo assim, o que a Arteterapia busca, ao
utilizar-se do processo criativo durante o desenvolvimento de atividades
expressivas, que o participante consiga dar sentido à sua vida.
(WASIACK & PARABONI in TOMMASI, 2012, 78)
Espiritualidade
não tem a ver com religião... É o profundo senso de pertencer e
participar. Sempre participamos do espiritual, quer saibamos ou não.
Após
definir o espiritual, podemos afirmar que, assim como a espiritualidade, a
criatividade é também um atributo da natureza humana, pois com materiais e
recursos artísticos a pessoa pode construir uma obra na qual projeta
sentimentos, vivências e percepções. E é justamente essa projeção a base da
criatividade artística...
A obra, então, é um verdadeiro registro da alma de seu autor. (WASIACK & PARABONI in TOMMASI, 2012, 82)
Assim, considerando que a arte, a criatividade, a espiritualidade e o sentido de vida compõem a dimensão noética, percebemos que na experiência arteterapêutica sempre trabalharemos a dimensão noética, de forma nomeada ou não. Mais além:
De acordo com Corrêa (2000), para que a espiritualidade seja manifesta no cotidiano de cada um é preciso o desenvolvimento da criatividade e também da sabedoria adquirida... por meio da experiência de vida. (WASIACK & PARABONI in TOMMASI, 2012, 82)
Conforme mencionado anteriormente, um dos princípios da Logoterapia se dá em ouvir o paciente como um indivíduo em sua integralidade, acolhendo-o em suas dimensões constitutivas. Percebemos então que esta é uma proposta bastante associada ao convite arteterapêutico:
Lukas
(1988, p 44) também inclui o espiritual nas vivências arteterapêuticas. Para
ela, a Arteterapia acessa três dimensões do ser: o nível biológico,
que compartilhamos com o mundo dos animais e vegetais; o nível mental, que
compartilhamos com o mundo animal; e o nível espiritual, exclusivo para a
humanidade...
Além
de adicionar processos nesses três níveis, o arteterapeuta, ao realizar
atividades expressivas, pode encontrar as dores e anseios da alma do
participante e, também, de sua própria alma. Esse fato oportuniza que nesse
encontro (terapeuta x participante) seja possível viver o amor espiritual.
(WASIACK & PARABONI in TOMMASI, 2012, 83-84)
O potencial arteterapêutico de receber o paciente de forma integral já foi escrito por mim em um texto anterior desse blog, compilado no livro Pensando a Arteterapia Volume 2. Embora muito antes de conhecer o conceito de Ontologia Dimensional, no texto “Primeiras observações sobre a depressão” defendo que:
Considero
que uma das belezas da Arteterapia dá-se pelo fato de ser um procedimento
terapêutico que por definição acessa o ser humano de forma integral...
Psíquico:
por meio do criar... aquele sujeito terá a oportunidade de se revisitar e se
rever, fazer movimentos de reinvestimento, enfrentamento e tomadas de decisão,
acessando seu desejo. Esse processo coopera para que ele se responsabilize por
si como autor e protagonista da sua obra/biografia.
Cognitivo:
... o paciente naturalmente é estimulado a manter-se atento e concentrado,
analisando, planejando, buscando estratégias e soluções criativas para a
materialização daquilo que tem em mente...
Físico:
O processo criativo... inclui o corpo como expressão. Estimula o corpo
catatônico ao movimento e à ação. Convoca um corpo enfraquecido ao esforço... [além
de se comunicar através de expressões, gestos, sintomas, memórias corporais,
agir criativo...]
Espiritual:
... aqui me lembro de Kandinsky que, através
da arte propõe uma “mudança de rumo espiritual”:
“Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual que chegará ao céu. (KANDINSKY, 1990, p 57)” (MORAES 2019, 103-105)
Considero que aqui também reside uma questão bastante sensível: a prática de uma Arteterapia que acolha o ser humano integral em suas dimensões biopsíconoética, acolhendo o que faz sentido ao paciente, para além do repertório holístico que nos é tão recorrente. Acredito que o cuidado do arteterapeuta em trabalhar com a cosmovisão do paciente, seus valores, suas referências, seu vocabulário, diz respeito à ética arteterapêutica.
Por fim, se compreendemos que o logoterapeuta deve trabalhar no sentido de desbloquear a dimensão noética, encontramos embasamento nas palavras da arteterapeuta Alexandra Duchastel, para a articulação entre a Logoterapia e a Arteterapia. Em seu livro “O caminho do imaginário”, a autora descreve em outras palavras, o potencial da Arteterapia em acessar e potencializar a dimensão noética:
...
a arte-terapia como uma medicina da alma, uma via natural de cura
psicoespiritual que favorece a autonomia e o gerenciamento das pessoas por
elas mesmas... a alma nos revela suas feridas mais profundas e, ao mesmo tempo,
nos entrega seus segredos de autocura pela linguagem do imaginário. (DUCHASTEL,
2010,10)
Os
diversos meios de expressão artística nos colocam em contato com nossa essência
divina, nossa sabedoria interior ou simplesmente nosso processo natural
de cura. (DUCHASTEL, 2010, 39)
.. a terapia pelas artes constitue uma verdadeira medicina da alma: elas permitem exprimir simbolicamente os segredos mais profundos da alma.” (DUCHASTEL, 2010, 44)
O caminho de articulação entre a Logoterapia e a Arteterapia continua em construção. Acredito que a amizade entre essas duas disciplinas tem um imenso potencial curativo para os indivíduos de nossa contemporaneidade.
Referências Bibliográficas:
AQUINO,
Thiago. “Logoterapia e Análise Existencial: uma introdução ao pensamento de
Viktor Frankl”
DUCHASTEL, Alexandra. "O caminho do imaginário"
MORAES, ELIANA. “Pensando a Arteterapia Volume 2”
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