segunda-feira, 3 de abril de 2023

LINHAS E ORIGAMI: PONTOS DE ENCONTROS



Por Isabel Pires - RJ

bel.antigin@gmail.com 

Na minha prática clínica e pesquisa pessoal sobre o uso do origami em Arteterapia, busco, na bibliografia e na minha observação, os fundamentos que podem levar à escolha da dobradura de papel no setting arteterapêutico.

Uma das peculiaridades da Arteterapia é justamente o uso de materiais diversos e o estudo da linguagem e dos possíveis efeitos desses materiais nos pacientes/clientes, ou seja, a linguagem subjetiva que cada um possui. Assim, o arteterapeuta questiona-se sobre o material mais adequado para o paciente/cliente naquele determinado momento da terapia, isto é, qual material vai facilitar a sua expressão, observação e/ou mudança naquela etapa terapêutica. Por isso, é preciso um amplo conhecimento da materialidade e experimentar uma gama variada de possíveis materiais e técnicas em seu trabalho pessoal e no setting arteterapêutico. Dentro desta perspectiva, tenho me permitido usar o origami na minha prática clínica e procuro daí extrair-lhe os usos, propriedades e indicações, embora quase sem apoio de uma literatura a esse respeito. Esse texto faz parte das minhas reflexões, ainda em processo, a partir do uso do origami na clínica arteterapêutica, na busca por construir um arcabouço teórico que aborde hipóteses sobre os benefícios terapêuticos do origami e que, também, valide a técnica da dobradura de papel – em si, uma arte - na Arteterapia.

Em meio a essa busca, percebo que a costura e o bordado apresentam semelhanças com o origami. Em primeiro lugar, o aspecto ancestral do origami, tão antigo quanto o papel. Nos seus primórdios, o papel era quase um tecido, feito de fibras vegetais, e os membros de uma mesma família se reuniam para a sua fabricação. Foi neste tipo de suporte que os primeiros trabalhos de origami surgiram, com um cunho simbólico e espiritual. Assim, as primeiras dobraduras aparecem permeadas de carga afetiva, dentro do seio familiar e religioso.

Em segundo lugar, no bordado, na costura e no origami, existem regras e etapas a serem seguidas, ou seja, todos são processos estruturados. E, assim como o bordar e o costurar, o origami também exige um percurso gradual, que vai de um trabalho inicial de dobraduras mais simples até às mais complexas, com resultados de incrível beleza e surpreendente realismo. 

Pensando em mais características em comum entre as técnicas de costura e bordado e a da dobradura de papel, relembro que, no meu texto anterior (“A arte da dobradura de papel: origami e Arteterapia”), cito a meditação, a meticulosidade, além do desenvolvimento da capacidade de concentração e de atenção. De fato, o origami exige atenção plena e cuidado, a cada etapa do processo, sob o risco de se ter que recomeçar a dobradura com outro papel, como, às vezes, também acontece com o bordado.

Analogamente, segundo Philippini (2009):

(...) ao costurarmos e bordarmos, nos colocamos na contramão das ‘correrias” urbanas (grifo da autora). Pois, costurar e bordar nos ajuda a desacelerar, e creio que são atividades que podem ser consideradas compatíveis com as práticas de meditação em movimento” (PHILIPPINI, 2009, p. 65, grifo meu).

Além disso, a autora continua: “As atividades de linha e agulha são extremamente úteis no processo arteterapêutico. Ensinam sobre a necessidade de cuidado, gradualidade, minúcia, atenção e concentração” (PHILIPPINI, 2009, P. 64, grifos meus). Dirá você, leitor: “Mas ela está falando de costura e bordado!” E respondo: “Sim, mas poderia, também, estar falando do origami”.

Nos livros que li sobre os materiais e suas propriedades, pude perceber o quanto é possível associar o origami com o trabalho com as linhas. Da mesma forma que a costura e o bordado representam linhas que ganham volume, no origami, as dobras/vincos atuam como linhas no suporte de papel. Aliás, um verbo que faz parte da arte de dobrar papel é alinhar. Dentre as muitas propriedades e indicações do uso do origami, escolhi, no meu texto de hoje, me debruçar sobre essa característica.

Partindo da metáfora da linha, a ideia de limites também permeia o trabalho com origami. Na arte da dobradura de papel, as linhas (vincos) são importantíssimas para as etapas que se seguirão, marcando o caminho de futuras dobras ou mostrando limites de uma dobra seguinte. Assim, nenhum vinco é em vão: serve para mostrar até onde se deverá dobrar ou como referência para a dobra que deverá ser (re)feita numa etapa seguinte. Por isso, podemos pensar que são como limites que apontam caminhos e definem movimentos. Pensando em limites e definições de contorno, Moraes (2021) nos diz:

As queixas terapêuticas recorrentes giram em torno de invasões, transbordamentos, excessos, dificuldade de dizer não e impor limites (a si e ao outro), dificuldade de delimitar o que pertence a um e ao outro. Neste contexto, como palavras chave para o elemento linha, podemos destacar: limites, contornos, bordas, fronteiras. Delinear, circunscrever, separar, discriminar (um e outro).  

Para compreensão da analogia, podemos trabalhar com nossos pacientes que a linha simboliza seus contornos, suas bordas, aquilo que faz o limite entre um elemento e outro, entre o que está dentro e o que está fora. (...) A linha muitas vezes é protetora de invasões, nos resguarda e preserva também de transbordamentos e exposições de nossos conteúdos. (...)

Em síntese, através de experimentos com a linha podemos trabalhar a compreensão de que o limite é estruturante e também um ato de amor, ao outro e a si mesmo (MORAES, 2021).

Em origami, quando não respeitados os limites, a dobradura fica torta ou malfeita e, na peça, indicam desleixo e falta de minúcia e delicadeza. Não serão esses, elementos importantes nos relacionamentos, nos quais a falta de limites atrapalha a relação? Como já foi dito, na dobradura de papel, as dobras/linhas marcam até onde se pode ir e indicam a direção das dobras seguintes. Portanto, servem de parâmetro para as etapas que se seguem. São linhas, portanto, que demarcam fronteiras, sinalizam caminhos e facilitam o processo. Por isso, são estruturantes, ordenadoras e organizadoras, como as linhas do bordado, da costura e da vida.


Além disso, segundo Moraes (2021), uma das propriedades do elemento linha é o seu potencial para a criação de formas. No caso do origami, as dobras/linhas formam a peça final, que não seria possível sem elas. Em Arteterapia, “dar forma corresponde a organizar para compreender e transformar” (PHILIPPINI, 2013, P. 49). Na concepção junguiana, através da criação artística, aparecem símbolos, que fazem a comunicação entre a consciência e o inconsciente. Conforme Philippini (2013), essa “comunicação simbólica cria condições de estruturar, informar e transcender”. Os símbolos aparecem na fala ou na expressão artística e serão amplificados, posteriormente, em diferentes materialidades, e é nesse momento que se pode usar o origami (pretendo abordar esse tema em texto posterior). A materialização de um símbolo, emoção ou sentimento, através de uma forma, permitirá “a compreensão, a codificação e a atribuição gradual de significado pela consciência” (PHILIPPINI, 2013, P. 49). A partir daí, num estágio seguinte, surgirá a possibilidade de transformação do conteúdo acessado.

Ainda dentro da lógica da metáfora lexical, as dobras do papel também podem nos remeter às dobras da vida, aos vincos e rastros que se fazem ao longo do nosso percurso existencial, com seus momentos mais difíceis e marcantes. O vinco, por mais leve que seja, deixa marcas no papel que não poderão ser desfeitas. Analoga e metaforicamente falando, na vida, certas atitudes ou palavras não poderão ser revertidas e deixarão seus rastros e consequências, como marcas no corpo ou na alma. Mas as marcas também representam a persistência, o propósito, o objetivo, de quem seguiu em frente apesar das cicatrizes. Assim, no origami, o resultado das dobras é uma singela, delicada e bela escultura de papel. Como exemplo dessa persistência e perseverança, cito a fala de um paciente meu, após fazer um avião-caça de origami: “Pedem pra dobrar pra um lado e, quando eu vejo, minha cabeça tá mais dobrada do que a folha. (...) Mas eu amo me desafiar, e se eu não consigo ganhar de um origami, eu vou ganhar de quem nessa vida?” (paciente J.). Esse mesmo paciente me lembra de que dobrar, na vida, metaforicamente, pode significar aprender, aquiescer, ganhar humildade no processo: “O misto de sensações me leva pra um lugar de humildade. Como transformar a ira em resultados. Eu fico com tanta raiva de tentar fazer algo que eu não consigo, que eu vou fazer até conseguir. Daí começa a parte da Humildade. Humildade em reconhecer que não sou bom em tudo. Humildade de aprender coisas novas e humildade de entender que a arte não precisa de muita coisa. Uma folha de papel e uma pessoa curiosa são o suficiente pra transformar um papel em um jato caça m-16. O resultado é até legalzinho, mas o processo que realmente é incrível” (paciente J.).

            O processo. Em Arteterapia, o processo importa bastante. O ato de fazer, a maneira como é feita e as reações durante a feitura de uma criação artística falam muitas vezes mais do paciente/cliente do que o próprio objeto criado. Sinto que, no caso da dobradura de papel, isso conta muito a favor do uso do origami no setting arteterapêutico. Mas esse é tema para um próximo texto. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

MORAES, Eliana. “O uso da linha nas práticas da Arteterapia”. nao-palavra.blogspot.com. Minas Gerais, 15 de novembro de 2021. Disponível em: https://nao-palavra.blogspot.com/search?q=linha. Acesso em: 20/03/2023.

 

PHILIPPINI. A. Linguagens e materiais expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2009.

 

_____________. Para entender a Arteterapia: cartografias da coragem. 5ª ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.

 

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SOBRE A AUTORA:



·      Arteterapeuta

·      PSICÓLOGA CLÍNICA

·      ESPECIALISTA EM PSICOLOGIA JUNGUIANA

·      PROFESSORA DE INGLÊS E FRANCÊS

·      Formada em Antiginástica ®Thérèse Bertherat

·      Formada em Jornalismo

·      Atendimentos individuais e em grupo (online/presencial)

·      Contatos:      

Whatsapp: (21) 97657-5685

E-mail: bel.antigin@gmail.com

Instagram: @isabelpires.artepsi

2 comentários:

  1. Isabel, querida! Que satisfação te receber aqui no blog do Não Palavra, trazendo uma escrita e um tema que envolve os arteterapeutas. Falar sobre origami, sobre dobraduras, sobre a metáfora das linhas agrega, de maneira significativa, esse fazer com arte dentro de uma temática tão pouco desenvolvida de maneira tão autoral como sua escrita.
    Parabéns, adorei sua análise e reflexão "costurando e dobrando" faces e interfaces do lugar e papel do origami no processo arteterapêutico.
    Fazer um exercício metafórico com o potencial da Arteterapia é um tema que muito me envolve/nos envolve de maneira tão apaixonante. Bela pesquisa que, certamente, amplia o universo das múltiplas linguagens que nos constitui e insere no mundo, mundo dos humanos. Avanteeee... ricas paisagens serão encontradas em seu percurso. Beijosss floridos

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  2. Lídia querida, é maravilhoso poder receber esse lindo feedback seu! Você é uma inspiração para nós arteterapeutas!!! Muito obrigada pelo seu carinho e principalmente pela sua amizade!!!🥰😍😘😘

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