Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Ao longo de 2022 o ciclo de
palestras promovido pelo Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo se
consolidou como um grupo de estudos que, apesar de um formato aberto, se tornou
um grupo consistente e coeso quanto aos participantes e um fluxo de estudos com
seu fio condutor. Um dos aspectos estudados nesse período foi o desenvolvimento
da escuta arteterapêutica frente aos acontecimentos históricos presentes e suas
especificidades. Percebemos que ainda estamos construindo literaturas próprias
ao contexto atual, sendo assim, um tempo para resgatarmos embasamentos teóricos
tradicionais e atualizarmos nossa leitura para o que temos de específico na
atualidade.
Gosto de tomar como inspiração a
fala de Edza Pound que defende que os artistas são “antenas da raça” ao
captarem os movimentos humanos e os constelarem em expressões artísticas
acessíveis ao seu tempo. Entendo que nós arteterapeutas somos participantes
desse dom, ao nos apropriarmos, cada vez,
mais de nossa sensibilidade artística, enquanto nos oferecemos em atenção e
cuidado, como terapeutas, aos seres
humanos inseridos nesse movimento coletivo.
Neste contexto, um dos estudos
desenvolvidos em nosso ciclo de palestras foi pensar os caminhos do fenômeno pandemia e a
escuta terapêutica a partir de algumas teorias psicológicas, dentre elas a
Psicologia Analítica. Os parceiros que acompanham o desenvolvimento do meu
trabalho sabem que tenho por estilo transitar entre as variadas teorias, por
entender que cada uma delas ilumina algum aspecto específico da complexidade
humana.
Considerando-me não uma expert, mas uma
estudiosa continuada da teoria junguiana, entendo que conceitos da psicologia
analítica se fizeram bastante instrumentalizadores da escuta e atuação
terapêutica em 2022 - compreendendo também que esse estudo se aplica em tantos
outros contextos. No texto de hoje trago uma síntese desse estudo compartilhado
em uma palestra de 2022, porém que nos servirá de base em outros cenários
clínicos e históricos.
Observações históricas e coletivas
Tomamos como ponto de partida o texto de James Hillman, de
2010, chamado “Intoxicação Hermética”, através do qual, o autor defende que:
Segundo a
perspectiva da psicologia arquetípica, o fascínio com a troca entre os povos em
toda parte, a hipercomunicação do globalismo, a ênfase no comércio e finanças,
a instantaneidade oferecida pelos aparelhos eletrônicos, a compulsão de viajar
– tudo isso indica o cosmos mítico de Hermes-Mercúrio, o deus veloz de asas nos
pés, capacete de invisibilidade e pensamentos alados.
O globalismo
parece uma overdose de Hermes, assim como a Era da Razão sofria de uma
overdose de luz solar apolínea e um excesso da racionalidade normalizadora de
Minerva...
Com a virada
do século, um monoteísmo de Hermes nos aprisiona a todos...
A
hipertrofia de Hermes preenche nossos dias com ansiedade apressada, temendo
ficar para trás. Parece que nunca somos capazes de estarmos atualizados – o
tempo é tão fugidio, a vida é tão rápida. Não podemos estar onde estamos e em
vez disso vivemos em um futuro, nossas cabeças inclinadas para frente, nossos
pés tentando calçar as sandálias aéreas do deus. Então vivemos nossas agendas,
não nossos dias – nossos compromissos, não nossos ritmos. (HILLMAN, 2010)
O cenário descrito por Hillman
como “hipertrofia de Hermes”, de agendas hiperativas que, de alguma forma, nos aprisionava a todos,
ajuda a compreender como era nosso cotidiano antes da pandemia. Até que a
partir deste fenômeno, fomos impelidos a um LIMITE em nossas atividades,
relações interpessoais e do repertório constituinte do nosso cotidiano.
Lembro de um pequeno texto que
escrevi para as redes sociais do Não Palavra que sintetizava minhas percepções
clínicas para aquele início de 2020:
A PSICOTERAPIA EM TEMPOS DE
CONFINAMENTO
A orientação
que recebemos e acatamos quanto ao isolamento social e confinamento tem
promovido um desdobramento na dinâmica psicoterapêutica ao qual venho pensando.
O empobrecimento do repertório e esvaziamento das dinâmicas exteriores faz com
que o paciente tenha menos demanda terapêutica quanto às experiências
extrovertidas. Consequentemente ocorre um maior investimento de energia
psíquica “para dentro”, um movimento de introversão.
Na escuta
clínica isso aparece quando o paciente começa a acessar memórias antigas,
sentimentos guardados há muito, questões existenciais e espirituais, aumento de
relato de sonhos, diálogos com a própria sombra... Conhecedores deste
fenômeno precisamos nós terapeutas nos instrumentalizar para esta escuta e
manejo...
A início do fenômeno pandemia nos
impeliu a um movimento de introversão, que naturalmente constelou-se na
dinâmica dos processos terapêuticos. Em
um cenário com tantos limites e interditos exteriores, abriu-se um momento de
grande potencial para caminho de autoconhecimento.
Conceitos Junguianos e a escuta clínica: Introversão e
Extroversão
Retomamos então os conceitos de Introversão e Extroversão:
Jung acreditava
que a introversão e a extroversão estão presentes em todos nós, mas que
um tipo atitudinal é invariavelmente dominante. (SHARP, 1991, 63)
Qualquer
atitude que existe na mente consciente, ou qualquer que seja a função
psicológica dominante, o oposto está no inconsciente... (SHARP, 1991,
116)
Ou seja, a extroversão e a
introversão são atitudes constitucionais. Em cada atitude há um
interesse, que significa uma presença consciente, para onde se encontra o
centro da atenção e investimento de energia psíquica. O interesse básico do
extrovertido está sobre o objeto (entendido como um objeto externo, de forma
ampla). Já o interesse básico do introvertido encontra-se no próprio sujeito.
Compreendido que existe a
tipologia própria do sujeito, sabemos que ao longo de cada jornada de
individuação, os eventos psíquicos (externos e internos) podem promover um
reinvestimento de libido, também contrário da tipologia original.
Eis então a questão estudada pelo
grupo: como os caminhos da pandemia afetaram o investimento de energia
psíquica “para dentro” e “para fora” de cada sujeito? Partimos do estudo das
tipologias e levantamos hipóteses sobre os caminhos possíveis.
Em seu Léxico Junguiano, Daryl Sharp define a Extroversão
como um:
Modo de
orientação psicológica no qual o movimento de energia é na direção do mundo
exterior.
A extroversão caracteriza-se
pelo interesse pelo objeto externo, pela responsabilidade e pela pronta aceitação dos
acontecimentos externos, pelo desejo de influenciar e ser influenciado
pelos acontecimentos, pela necessidade
de aderir e de ‘estar com’, pela
capacidade de suportar o alvoroço e todo tipo de barulho e considerá-los até agradáveis, pela constante atenção dada ao mundo circundante, pelo cultivo de amigos e de relações nem sempre escolhidos com cuidado, e finalmente, pela grande importância atribuída à
imagem com que nos mostramos. [JUNG]...
Embora todos
sejam afetados pelos dados objetivos, os pensamentos do extrovertido, suas
decisões e seu comportamento são por ele determinados. Os pontos de vista
pessoais e a vida interior vêm em segundo lugar em relação às condições
externas. (SHARP, 1991, 62-64)
Aqui reside o aspecto sombrio
característico da tipologia extrovertida:
Vive para
os outros e pelos outros; tudo que seja íntimo lhe dá calafrios. Aí
se ocultam os perigos, sendo mais convenientes que sejam abafados pelo barulho. Se
por acaso tiver um “complexo”, encontrará refúgio social e várias
vezes por dia tratará de assegurar-se
que tudo está em ordem. [JUNG]...
A tendência do
extrovertido de sacrificar a realidade interior às circunstâncias externas não
será problema enquanto a extroversão não for muito extrema; mas, na medida em
que se torna necessário compensar a inclinação à unilateralidade, surgirá uma
tendência marcadamente autocentrada no inconsciente. Todas aquelas
necessidades ou desejos que foram sufocados ou reprimidos pela atitude
consciente voltam pela porta do fundo, sob forma de pensamentos e emoções
infantis, que têm como centro a própria pessoa. (SHARP, 1991, 64-65)
Partindo do conceito teórico de Extroversão, podemos
levantar as questões:
- Como viviam os extrovertidos
antes da pandemia? Estariam em uma possível zona de conforto?
- Como se sentiram os
extrovertidos durante a pandemia? Além da angústia coletiva, quais conteúdos
singulares emergiram nas dinâmicas terapêuticas neste período? A prática
mostrou-nos um desafiador caminho de introversão, alguns deles apresentando
possíveis sintomas depressivos. Observamos o resgate de memórias antigas,
sentimentos negligenciados, aspectos sombrios vindo à luz, o contato com
questões existenciais e espirituais dentre outros.
- Como se sentiram os
extrovertidos com o processo de retorno à extroversão? A teoria junguiana nos
alerta sobre o caminho de compensação entre os opostos (abordado mais a
frente), fazendo-nos sinalizar o ponto de atenção ao qual, na falta de autoconhecimento
e elaboração do movimento de energia psíquica, haja um potencial movimento compensatório
desenfreado de movimento “para fora”.
Quanto à tipologia Introvertida, Sharp define como:
Modo de
orientação psicológica, no qual o movimento de energia é em direção ao mundo
interior.
Todo aquele
cuja atitude é introvertida pensa, sente e age de modo a demonstrar claramente que o sujeito é o fator
primário da motivação, e que o objeto é de importância secundária. [JUNG]
Uma consciência
introvertida pode muito bem estar ciente das condições externas, mas não é
motivada por elas. O introvertido extremo responde primariamente às impressões
internas. (SHARP, 1991, 99-100)
Esta renúncia para dentro de si
mesmo não é uma renúncia definitiva ao mundo, mas uma procura de
quietude, pois somente nela lhe é
possível fazer sua contribuição à
vida da comunidade. [JUNG]”
(SHARP, 1991, 101)
Aqui me
lembro dos versos de Mario Quintana ao descrever-se: “Dizem que sou
tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os
introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?” Eis
um introvertido que se acolhe!
Entretanto, o aspecto sombrio da
tipologia introvertida se encontra em sua resistência ao relacionar-se com a
vida externa:
Em uma
grande assembleia, sente-se perdido e solitário. Quanto maior a multidão, maior se torna sua
resistência. Não está de modo algum “com ela” e não tem nenhum prazer no
ajuntamento entusiástico. Não se mistura bem. Tudo o que faz, o faz a seu
modo, pondo barricadas contra a influência de fora... Sob condições normais, é pessimista e preocupado,
porque o mundo e os seres humanos não são nem um pouco bondosos, e sim o
esmagam...
Seu mundo
particular é um porto seguro, um jardim cuidadosamente protegido e cercado, fechado ao público e aos
olhares curiosos. Nada melhor do que sua própria
companhia. [JUNG]
A atitude introvertida tende a
desvalorizar as coisas e as outras pessoas, negando sua importância. Daí, por
via de compensação, a introversão extrema leva a um reforço inconsciente da
influência do objeto. Esta se faz sentir como uma amarra, com as
concomitantes reações emocionais em relação às circunstâncias externas e às
outras pessoas… (SHARP, 1991, 99-101)
Partindo do conceito teórico de Introversão, podemos
levantar as questões:
- Como viviam os introvertidos antes da pandemia? Qual ou
quais era(m) seu(s) desconforto(s)?
- Como se sentiram os introvertidos durante a pandemia?
Observamos na clínica que
pacientes introvertidos sentiram-se autorizados e legitimados em seu desejo de
introversão, permanecendo em alguma zona de conforto quanto ao isolamento e
redução de repertório externo.
- Como se sentiram os introvertidos com o processo de
retorno à extroversão?
A escuta terapêutica mostrou-nos um processo bastante
desafiador aos intrvertidos, causando-lhes angústias, sintomas de ansiedade e
sintomas psicossomáticos bem como sinais de evitação social, por vezes
atingindo o estágio de fobia social. Este cenário é muito bem descrito por
Jung, quando traduz o esforço do introvertido para o exterior:
Estes
esforços veem-se constantemente frustrados pelas impressões avassaladoras
recebidas do objeto; este continuamente impõe-se a ele contra sua vontade,
fazendo surgir nele os mais desagradáveis e intratáveis afetos, perseguindo-o a
cada passo. Uma tremenda luta interior se faz necessária a cada passo para “continuar
em frente”. (JUNG in SHARP, 1991, 101)
Conceitos Junguiandos e a escuta clínica: os opostos e
outros conceitos
Um dos pilares que embasam a
Psicologia Analítica está na tensão dos opostos entre luz e sombra,
consciente e inconsciente. Na definição de Daryl Sharp:
Qualquer
atitude que existe na mente consciente, ou qualquer que seja a função
psicológica dominante, o oposto está no inconsciente...
O
conteúdo reprimido deve tornar-se consciente, de modo que produza uma tensão
de opostos, sem a qual nenhum movimento ulterior será possível. A mente consciente está no topo, a sombra, abaixo; é
assim como o alto sempre anseia pelo baixo, e o calor pelo
frio, do mesmo modo, toda consciência,
talvez sem estar disto ciente, busca seu oposto inconsciente, sem o qual está condenada à estagnação,
congestão e ossificação. A vida nasce
apenas da fricção dos opostos. [JUNG]
Isto, por sua
vez ativa o processo de compensação...
Um certo grau
de tensão entre a consciência e o inconsciente é inevitável e necessário. Por
isso, a finalidade da análise não é eliminar a tensão, mas compreender o
papel que ela desempenha na autorregulação da psique. Além disso, a
assimilação de conteúdos inconscientes faz com que o ego se torne responsável
por aquilo que estava previamente inconsciente. (SHARP, 1991, 116)
Nestas citações surgem outros
dois conceitos estruturais da teoria junguiana: a compensação e a autorregulação,
aos quais também nos cabe compreender a definição:
Compensação:
um processo natural para estabelecer ou manter o equilíbrio dentro da
psique.
... Os conteúdos que são excluídos
e inibidos pela direção escolhida
mergulham no inconsciente, onde formam
um contrapeso à orientação consciente...
[JUNG]
Na neurose, em
que a consciência é unilateral ao extremo, a meta da terapia analítica é a realização e a
assimilação de conteúdos inconscientes, de modo que a compensação possa ser
restabelecida. (SHARP, 1991, 36-37)
Autorregulação
da psique: conceito baseado no relacionamento compensatório que existe
entre o consciente e o inconsciente... O processo de autorregulação está
continuamente atuando dentro da psique. E só se torna perceptível quando a
consciência do ego tem uma dificuldade específica em adaptar-se à realidade
interior ou exterior. (SHARP, 1991, 33)
Estudamos aqui a dinâmica dos
opostos de forma ampla, aplicada nos variados aspectos contidos no psiquismo.
Neste texto, aplicamos o estudo desta dinâmica no eixo extroversão-introversão.
E assim chegamos a mais um conceito junguiano norteador do processo
terapêutico, a adaptação:
Processo
através do qual, por um lado, chegamos a um acordo com o mundo exterior, e
por outro, com nossas próprias características psicológicas...
Em seu modelo
de tipologia, Jung descreveu dois modos de adaptação substancialmente
diferentes: introversão e extroversão. Jung também ligou os fracassos na
adaptação ao surgimento da neurose.
A
perturbação psicológica da neurose e a própria
neurose podem ser definidas como um ato de adaptação que fracassou. [JUNG]
(SHARP, 1991, 13-14)
Através desse estudo, podemos articular sobre
os caminhos de formações de neuroses individuais de sujeitos que vivenciaram os
anos pandêmicos e possíveis atuações terapêuticas sobre eles. Porém esta não é
uma dinâmica apenas individual, mas age também no coletivo.
Para além dos opostos introversão-extroversão,
sabidamente hoje vivemos em uma época em que está intaurado do fenômeno da
polarização em diversos aspectos. E aqui a Psicologia Analítica também embasa e
dá sentido ao nosso ofício, quando defende que trabalhar com os opostos na
esfera individual se faz uma grande contribuição à esfera coletiva:
Jung acreditava, além disso, que
todo aquele que tenta resolver o problema dos opostos no nível pessoal, está
fazendo uma significativa contribuição para a paz no mundo.
A regra psicológica diz que quando uma situação interior não se torna consciente, ela acontece fora,
como destino. Isso equivale a dizer
que quando o indivíduo permanece
indiviso e não se torna consciente
de seus opostos íntimos, o mundo
deve à força atuar o conflito, e dilacerar-se em metades opostas. [JUNG] (SHARP, 1991, 116)
Da
Psicologia Analítica à Arteterapia
A partir do estudo dessa teoria que tanto nos
embasa como arteterapeutas, é necessário pensarmos na contribuição
arteterapêutica em suas especificidades. Neste sentido compartilho com o leitor
um esquema de minha autoria, criado grupo de estudos, ao qual venho trabalhando
nos últimos anos.
Neste esquema é ilustrado os os movimentos de
introversão e extroversão de forma adaptada e também em seus aspectos sombrios.
Mas ilustra o potencial da arte em proporcionar um movimento de autorregulação:
quando extrovertido, ao criar, o sujeito é convidado a olhar para si, seu
processo criativo e formações de imagens pessoais; quando introvertido, ao
criar, o sujeito é convidado à dar forma, dar visitibilidade e externar seus
conteúdos internos.
Meu desejo é que cada vez mais
nós arteterapeutas possamos buscar os diversos embasamentos teóricos que podem
nos orientar, mas nos apropriando daquilo que nos é específico. E assim,
possamos acolher os sujeitos que procuram a Arteterapia propriamente dita, para
seus movimentos de autorregulação.
Referências Bibliográficas:
HILMAN, James. Intoxicação Hermética. 2010
SHARP, Daryl. Léxico Junguiano.
Sobre a autora: Eliana Moraes
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