Por Rosangela Nery - RJ
Há 04 anos participo de um
projeto que atende as comunidades ribeirinhas no Rio Negro, na região de
Manaus. Trata-se de um grupo de
voluntários que se reúne, mora por 10 dias em um barco, dorme em redes e se
disponibiliza à atender as demandas das comunidades, sejam elas de saúde,
construção civil, montagem de horta comunitária, dentre outras. Normalmente
passamos 10 dias acolhendo e sendo acolhidos por um povo afetuoso e cordial. As
maiores demandas sempre são por atendimento medico e odontológico para adultos
e crianças, porém, dessa vez, do dia primeiro à 11 de julho de 2022, levamos
atendimento psicológico também.
É importante ressaltar que nos
deparamos com uma comunidade de 68 famílias devastadas pela pandemia e muito
castigada pela exploração do trabalho manual na produção de espetinhos de
churrasco, feitos de madeira e vendidos para Manaus por um valor ínfimo. Não é
possível atribuir a situação de caos da comunidade somente a esse fato, porém,
é necessário cuidar de todo esse caos que, como consequência, tem o uso abusivo
de álcool e outras drogas, violência doméstica de praticamente todas as
mulheres (incluindo adolescentes), quadros depressivos graves com a presença de
automutilação, atrasos na linguagem de crianças com 7 anos ou mais e outros.
Enquanto profissional da
psicologia, fiquei pensando em como abordar e acolher todas essas demandas e
minimamente contribuir para produção de saúde
daquelas famílias, principalmente
no que tange à saúde mental.
É pela ARTE!
Tinha na bagagem uma
caixa com recortes de revistas, pincéis, lápis de cor, tintas diversas, folhas
coloridas e muito desejo de estar perto delas, entendi que era o que precisava
e assim lá fui eu.
Dentre muitas
experiências, hoje quero dividir a história de Dona R., 55 anos, mãe de 9
filhos, sendo que somente 5 estão vivos. Conheci Dona R. na feira de saúde que
nossa equipe prepara, para falar sobre alimentação e outros remédios da
natureza. Dona R. me vê e diz: “Minha
filha, eu tô muito agoniada, posso ir embora?” Na mesma hora disse a Dona
R. que ela podia ir sim, mas, se quisesse conversar sobre a sua “agonia”, eu
estava disponível. Ela foi embora e não falou mais nada. Terminamos a feira e
no caminho de volta para o barco encontrei M.I, filha de Dona R. e decido
perguntar o que ela achava se eu fizesse uma visita à sua mãe. M.I. me diz que
certamente a mãe me receberia, mas, ressaltou que ela poderia não me dar muita
atenção, pois, a mesma se dedica muito ao trabalho. Rapidamente fui até a casa
de Dona R. e perguntei se poderia voltar no outro dia para bater um papo, ela
disse que sim e que eu fosse às 14h.
Lá fui eu com minha caixa
de imagens diversas, cola, papéis coloridos e tesoura.
Afinal, a técnica da colagem de apresentação tem sido
minha parceira nos atendimentos do consultório e também na unidade de saúde que
trabalho.
Segundo Philippini (2009), a
colagem permite ao paciente um campo simbólico de inúmeras possibilidades de
estruturação, integração, organização espacial e descoberta de novas
configurações.
A colagem tem sido um recurso
de muita potência, onde as palavras não dão conta de expressar os sentimentos. Ouvir
os relatos dos pacientes após as produções criativas, tem colaborado na
interpretação e ressignificação dos fatos da vida, e era isso que Dona R.
precisava naquele momento, pois, a dor de perder seus quatro filhos de forma brutal, apesar de já ter passado
muito tempo do ocorrido, ainda estava muito latente. E como ela mesma disse
chorando: “Ainda dói muito!!!”
O PROCESSO
Assim que cheguei, Dona R. me
fala: “Achei que não vinha.”. Ela estava com dois filhos, um vizinho e
todos trabalhando na produção de “espetinhos” de madeira. Perguntei se
poderíamos conversar a sós e naquele momento ela se levantou, deixou o trabalho
e me levou para dentro de sua casa. Sentamos no chão, apresentei o material
para Dona R., e pedi que ela me contasse um pouco sobre ela através das imagens.
Preciso dizer que os olhos de Dona R. brilharam de forma diferente ao ver os
papéis coloridos. Enquanto olhava as imagens, Dona R. foi me falando do quanto
gostava de trabalhos manuais, do quanto gostava de recorte e colagem, porém, há
tempos que não fazia isso. Lembram que cheguei na casa de Dona R. ás 14h? Pois
é! Já eram 15:30 e Dona R. havia produzido muito, mas não eram “espetinhos” e
sim uma “colagem” de parte da sua vida e uma parte que a mesma nunca conseguira
falar até aquele momento. Que potência! Finalizamos o trabalho às 15:50 e
perguntei a Dona R. se eu poderia voltar no outro dia no mesmo horário, ela me
disse que sim e pediu desculpas por não ter uma mesa para sentar.
Atendi Dona R. por mais 4 dias
consecutivos e o que pude recolher enquanto profissional é o poder de cura
da arte! Um dia antes do meu retorno para o Rio de Janeiro, ao me despedir
de Dona R. recebi um abraço, um remo de
madeira pintado por ela e toda energia dessa mulher gigante que resiste às mais
duras provas que a vida pode dar à uma mãe: perder um filho.
Foi preciso pensar em como dar
suporte para Dona R. após a minha saída do processo. Porém, àquela altura da
nossa relação, Dona R. já estava familiarizada com os materiais e ficou muito
feliz quando eu disse que ela poderia ficar com a cola, as folhas coloridas e
que quando se sentisse “agoniada” poderia escrever, colar e redescobrir uma
forma de continuar.
Ao final daquele último dia de
atendimento, como faço no consultório, perguntei à Dona R. se gostaria de ficar com sua produção e rapidamente ela me
disse: “Rosangela, você pode colar bem aqui na minha parede?” Eu disse
que sim e enquanto fazia a colagem, seu neto entrou e perguntou o que era
aquilo, ela respondeu: “Minha vida!”
Foi difícil segurar as lágrimas.
* As imagens publicadas foram altorizadas por Dona R.
Referência Bibliográfica:
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em
Arteterapia: uso, indicações e propriedades, Rio de Janeiro, WAK
Editora, 2018
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Sobre a autora: Rosangela Nery
Psicóloga, especialista em Ciência, Arte e Cultura na saúde pelo IOC - Instituto Oswaldo Cruz - FIOCRUZ e em Saúde Mental e atenção Psicossocial pela ENSP - Escola Nacional de saúde pública - FIOCRUZ.
Estudante de Arteterapia no Instituto Faces.
Atendimento individual à adolescentes e adultos no Espaço Recriar-se, RJ.
Diretora do Núcleo de desinstitucionalizacão Franco da Rocha no Instituto Municipal de Assistência a saúde Juliano Moreira/RJ.
Impactada com seu relato e através do seu testemunho continuar me afirmando como a arte e sua manifestação atraves da Arteterapia é potente, eficaz, balsâmica, eliminadora de "agonias" e cheia de significados. Parabéns pela experiencia, coragem e despreendimento. Obrigada por compartilhar e nos enriquecer com esse relato!
ResponderExcluirObrigada pelo retorno, seguimos na caminhada pulsando ARTE
ExcluirRosangela, achei sensacional o seu texto ! Me fez lembrar do tempo que eu participei do Projeto Rondon, na faculdade. Fui parar em Irecê, Bahia, no campus avançado...faz tempo...
ResponderExcluirSua experiência aqui me trouxe memórias e o seu relato foi emocionante.
Parabéns por este texto !!!
Abraços, Claudia Abe
Que bom Cláudia ☺️. Assim como o título, resgatou memórias. Grande abraço.
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