domingo, 13 de junho de 2021

O CHAMADO PARA SER ARTETERAPEUTA: Liberdade individual, sentido e responsabilidade


Por Eliana Mores - MG

naopalavra@gmai.com

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No dia 31 de maio de 2021 foi realizado o primeiro Simpósio do Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo – SP, contando com a participação tão especial das professoras Lara Scalise do Mato Grosso do Sul e Lidia Lacava de São Paulo. Não tenho dúvidas que este foi um dia marcante para todos os que estiveram presentes nesta profunda reflexão com o tema “O chamado para ser arteterapeuta”. 

Minha contribuição se deu a partir de um novo estudo ao qual tenho me dedicado: a Logoterapia. Ainda iniciando a formação desta teoria não tão difundida em campos brasileiros, a teoria de Viktor Frankl, mais conhecida pelo seu livro “Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração” foi uma das leituras que me sustentaram de pé ao atravessar o ano de 2020. Meu desejo é me dedicar a um processo de  pesquisa para articulação entre a Logoterapia e a Arteterapia, sendo esta explanação a primeira delas, com enfoque na responsabilidade e no sentido de ser arteterapeuta.

Viktor Frankl

Viktor Frankl foi um neuropsiquiatra e filósofo que nasceu em 1905 em Viena - Áustria, e lá morreu em 1997. Frankl criou a Logoterapia, a terapia centrada no sentido da vida, afirmando que este é o motor da existência humana. Afirmava que é possível encontrar um sentido mesmo em momentos de sofrimento, este podendo ser visto como oportunidade de aprendizagem e surgimento de novas atitudes por parte do indivíduo. Para tanto, se inspirava na frase de Nietzsche: “Quem tem um porque viver pode suportar quase qualquer como”. 

Com esta bagagem de construção teórica, em 1942, Frankl foi capturado e levado como prisioneiro para os campos de concentração nazista, onde pôde vivenciar de forma profunda sua teoria. No ano de 1945, Frankl foi libertado e voltou a Viena para reconstruir sua vida. A partir de então, escreveu mais de 30 livros, sendo o mais famoso “Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de Concentração”, um best-seller mundial. Nele relata sua experiência pessoal nos campos de concentração e faz um breve ensaio sobre conceitos da Logoterapia aplicados em sua experiência.

A Logoterapia tornou-se uma teoria de referência quando os temas são sofrimento, resiliência e sentido de vida.

“Em busca de sentido”: uma inspiração 

Desde o início do fenômeno pandemia pude perceber um resgate da teoria de Frankl em alguns espaços de debates em psicologia. De fato, a Logoterapia se faz uma teoria bastante pertinente, aplicável e de grande contribuição aos nossos dias. Ler o livro “Em busca de sentido” fez grande diferença em minhas travessias pessoais em 2020. E hoje trago alguns trechos que me contribuíram para a construção de um caminho pessoal possível.

Sobre o sofrimento, Frankl nos diz:


Não há sentido apenas no gozo da vida, que permite à pessoa a realização na experiência do belo, na experiência da arte ou da natureza. Também há sentido naquela vida que... dificilmente oferece uma chance de se realizar... em termos de experiência, mas que lhe reserva apenas uma possibilidade de configurar sentido da existência, precisamente na atitude com que a  pessoa se coloca face à restrição forçada de fora sobre seu ser... Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. (FRANKL)

Neste trecho, o autor nos indica um dos pilares de sua teoria: o sofrimento é algo inerente à vida e ele também tem seu sentido. Entretanto, a grande questão reside na atitude tomada pelo sujeito em sofrimento:

Essa exigência, e com ela o sentido da existência, altera-se de pessoa para pessoa e de um momento para o outro... Nenhum ser humano e nenhum destino pode ser comparado com outro; nenhuma situação se repete. E em cada situação a pessoa é chamada a assumir outra atitude. Para a sua situação concreta exige dela que ela aja, ou seja, que ela procure configurar ativamente o seu destino. (FRANKL)

Atitude é uma das palavras-chaves da teoria de Frankl, através da qual o sujeito, apesar de todo e qualquer sofrimento aparentemente absoluto, nunca perderá sua liberdade interior:

 

Onde fica a liberdade humana? Não haveria um mínimo de liberdade interior no comportamento, na atitude frente às condições ambientais ali encontradas?... A experiência da vida no campo de concentração mostrou-me que a pessoa pode muito bem agir “fora do esquema”. Haveria suficientes exemplos... que demonstram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação; e continua existindo, portanto um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre  do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta, tanto exterior como interior. Quem dos que passaram pelo campo de concentração não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros, ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entregando ali a última lasca de pão? E mesmo que tenham sido poucos, não deixam de constituir a prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas... (FRANKL)

 

Elas provaram que inerente ao sofrimento há uma conquista, que é uma conquista interior. A liberdade interior do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe até o último suspiro configurar sua vida de modo que tenha sentido.(FRANKL)

Contudo, Frankl afirma que uma vez que o sujeito conquiste e se aproprie de sua liberdade interior, automaticamente e na mesma proporção surge a demanda de sua responsabilidade. Liberdade e responsabilidade devem ser vistas como um eixo em equilíbrio, sendo a responsabilidade outro grande pilar da teoria:

Logoterapia procura criar no paciente uma consciência plena de sua própria responsabilidade; por isso precisa deixar que ele opte pelo que, perante “que” ou perante “quem” ele se julga responsável... Por isso é o paciente quem decide se deve interpretar a tarefa de sua vida como pessoa responsável perante a sociedade ou perante a sua própria consciência...

Ao declarar que o ser humano é uma criatura responsável e precisa realizar o sentido potencial de sua vida, quero salientar que o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto no mundo, e não dentro da pessoa humana ou de sua psique, como se fosse um sistema fechado... (FRANKL)

E é neste contexto que Frankl descreve que cada um possui uma unicidade e uma exclusividade em exercer aquilo que lhe é próprio e que deve ser disponibilizado ao mundo. E traz pelo menos dois aspectos que espelham essa unicidade e exclusividade, tudo aquilo que “espera” pelo sujeito: as pessoas que o amam e ele ama ou alguma obra ao qual ele intenta desenvolver.


 As tentativas embrionárias de uma psicoterapia... no campo de concentração [destinavam-se] à prevenção de suicídio... [Por exemplo] dois homens que em conversas haviam manifestado intenções de suicídio. Ambos alegaram da maneira típica que “nada mais tinham a esperar da vida”. Importava mostrar a ambos que a vida esperava algo deles, e algo na vida, no futuro, estaria esperando por eles. E de fato revelou-se que por um deles havia um ser humano esperando: seu filho, ao qual idolatrava, “esperava” pelo pai no exterior. Pelo outro “esperava” não uma pessoa, mas um objeto: sua obra. O homem era cientista e publicara uma série de livros sobre determinado tema, a qual não estava concluída e aguardava a sua conclusão. E para esta obra este homem era insubstituível, não podia ser trocado por outro... Aquela unicidade e exclusividade que caracteriza cada pessoa humana e dá sentido à existência do indivíduo, faz-se valer tanto em relação a uma obra ou uma conquista criativa, como também em relação a outra pessoa e o amor da mesma. Esse fato... ilumina em toda a sua grandeza a responsabilidade do ser humano por sua vida e pela continuidade da vida. (FRANKL)

Por fim, Viktor Frankl defende que aqueles que conseguiram atravessar o campo de concentração (ou os que nele perderam a vida, mas com dignidade) foram os que tinham algum sentido de vida para lutarem por sua sobrevivência. Este sentido que é endereçado ao mundo, é em primeira mão organizador e estruturante para o próprio sujeito, pois Quem tem um porque viver pode suportar quase qualquer como”.

A Logoterapia e o chamado para ser arteterapeuta

Assim como todos, o ano de 2020 foi extremamente desafiador em minha jornada pessoal, e 2021 segue seu curso. Porém, compartilho com os amigos do Não Palavra que ser arteterapeuta me foi um sentido de vida de sustentação nos momentos em que fraquejei. Pensar na unicidade e exclusividade do meu campo de atuação, em atendimento aos meus pacientes ou dos conteúdos que só eu poderia produzir a partir da minha subjetividade individual, tinha o efeito organizador e mobilizador em mim.

Viktor Frankl afirma que não se pode dizer a um outro sujeito qual é o sentido de sua vida. Mas apenas convidá-lo à reflexão para que esta resposta nasça de dentro para fora. Neste pensamento, apenas convido aos arteterapeutas para que pensem sobre seu sentido de vida e se há lugar para o chamado para ser arteterapeuta nesse campo. É essencial que os arteterapeutas tenham em mente que há uma unicidade e uma exclusividade naquilo que podem produzir e nas pessoas que podem alcançar. Esta é a responsabilização de cada arteterapeuta pelo seu chamado.

Por fim, Frankl nos convida à inversão de uma pergunta:

O que se faz necessário aqui é uma viravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós... A vida dirige perguntas diariamente a cada hora – perguntas que precisamos responder... não através de elocubrações ou discursos, mas apenas através da ação... (FRANKL)

Ou seja, quando surge a pergunta “O que espero da vida?” é necessário invertê-la “O que a vida espera de mim?”. No fechamento do Simpósio tomei emprestada as palavras de Frankl, aplicando-a em meu diálogo com os arteterapeutas: quando lhe surge a pergunta “O que espero da Arteterapia?”, a pergunta se inverte “O que a Arteterapia espera de você?”

Sigamos, cada um de nós, respondendo a esta pergunta não apenas em elocubrações, mas através da ação.

Referência teórica:

FRANKL, Viktor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração

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Sobre a autora: Eliana Moraes 


Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

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