segunda-feira, 21 de junho de 2021

DO CUBISMO À ARTETERAPIA: O CUBISMO ANALÍTICO

 

"Casas em L'Estaque" Georges Braque


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

Dando continuidade à pesquisa sobre as possíveis articulações entre a História da Arte e a Arteterapia em sua escuta e práticas terapêuticas, hoje inicio uma série de dois textos que trará um dos movimentos artísticos mais importantes do século XX: o Cubismo, considerado o disparador de "um novo idioma formal". (GOLDING, 200, 51). Considerando-me uma estudante continuada de História da Arte e considerando este um movimento tão vasto e complexo, não tenho como pretensão esgotá-lo nesses dois textos, mas fazer uma leitura geral de sua marca na história e seus simbolismos, e em especial abordar suas possíveis contribuições à Arteterapia, meu campo de atuação de fato.

O Cubismo                                                                     

O Cubismo foi um movimento artístico que iniciou-se na França, aproximadamente em 1907. O nome do artista que automaticamente nos vem à mente quando falamos de Cubismo é Pablo Picasso, entretanto este movimento teve como cofundador Georges Braque (1882-1963). Pintor e escultor francês, Braque:

... descreveria [sua relação com Picasso] como uma odisseia artística comparável a “dois alpinistas amarrados um ao outro” e que Picasso chamaria de “casamento”... Foi uma parceria cujo produto definiria as artes visuais do século XX. (GOMPERTZ, 2013, 140)

No outono de 1907, Braque conheceu Picasso com quem, se deu quase diariamente até que em 1914, separaram-se devido a Primeira Grande Guerra Mundial. Braque foi ferido na cabeça em 1915, e durante dois anos, esteve afastado da pintura. Retornou em 1917, focando-se em naturezas-mortas e pinturas figurativas, sempre dentro do estilo cubista.

O outro cofundador do movimento, Pablo Picasso (1881-1973), pintor espanhol, é considerado como um dos artistas mais importantes do século XX, por sua vasta contribuição em diversos seguimentos da arte, mas principalmente por sua personalidade tão subversiva e inovadora como artista. Sua obra geralmente é classificada em períodos. Os períodos mais aceitos são o período azul (1901-1904), o período rosa (1904-1906), o período africano (1907-1909), o cubismo analítico (1909-1912) e o cubismo sintético (1912-1919), estes dois últimos, objetos de estudo desta série de textos.

O nome Cubismo, mais uma vez, nasceu de forma jocosa e irônica por parte dos críticos de arte de seu tempo. Desta vez, Henri Matisse passou a diante a “gentileza” recebida com o nome fauvismo aos pintores que propunham uma nova forma de enxergar os objetos e pintá-los:

Quando Braque submeteu algumas de suas obras da série à consideração do Salon d’Autonome, o comitê de seleção primeiro as rejeitou e depois as ridicularizou. Matisse, um dos jurados, disse desdenhosamente: “Braque acaba de mandar uma pintura feita em cubinhos”. O comentário foi feito a Louis Vauxcelles, o homem que havia (sarcasticamente), cunhado o termo “fauve” para descrever o trabalho anterior de Matisse. E como tantas vezes acontece com essas coisas, isso foi o bastante – o nome colou: o cubismo nascera. (GOMPERTZ, 2013, 142)

E assim iniciou-se a primeira fase do Cubismo, denominada “Cubismo Analítico” (1909-1912), ao qual defendia que:

... diferentes aspectos e pontos de vista de um objeto podiam ser mutuamente sobrepostos de um modo mais livre, mais caligráfico, e depois fundidos numa única imagem simultânea. (GOLDING, 2000, 53)

... é como se Picasso tivesse andando 180 graus em redor do seu modelo e tivesse sintetizado suas sucessivas impressões numa única imagem. O rompimento com a perspectiva tradicional resultaria, nos anos seguintes, no que os críticos da época chamaram de visão "simultânea" - a fusão de várias vistas de uma figura ou objeto numa única imagem. (GOLDING, 2000, 47)

Para nós, o Cubismo pode muitas vezes parecer um movimento artístico bastante difícil a ponto parecer impenetrável. Mas, falando de seu amigo Picasso, Apollinaire tentou explica-lo:

"Picasso estuda um objeto da maneira que um cirurgião disseca um cadáver.” Essa é a própria essência do cubismo: tomar um objeto e desconstruí-lo mediante intensa observação analítica. (GOMPERTZ, 2013, 136)

Em síntese, o Cubismo Analítico propunha a desestruturação da imagem em todos os seus elementos, a fragmentação e decomposição do objeto em partes, para  assim examiná-las e analisá-las em todos os ângulos no mesmo instante. A ideia era mostrar todos os lados ao mesmo tempo, buscando a verdadeira natureza do tema. A ordem era expor o tridimensional em duas dimensões.

De uma maneira tão simples e cotidiana, Gompertz tenta nos explicar as imagens cubistas:

Todas as coisas eram trazidas para a frente, como passageiros jogados contra a janela de um carro quando o motorista dá uma freada brusca...

[Desta forma] O termo é uma denominação imprópria: não há cubos no cubismo – ao contrário.

O cubismo diz respeito ao reconhecimento da natureza bidimensional da tela, NÃO envolvendo, de maneira categórica, a tentativa de recriar a ilusão de três dimensões (um cubo por exemplo). (GOMPERTZ, 2013, 142)

Podemos compreender então que “Braque e Picasso estavam metaforicamente... mostrando todos os lados ao mesmo tempo.” (GOMPERTZ, 2013, 143) Os artistas decompunham a imagem, analisavam as partes e a recriavam. O resultado foi uma série de pinturas que retratava o mundo como ele jamais havia sido visto.

Para tanto, estes artistas ressignificaram sua relação com a cor em favorecimento à forma: 

Nessas obras, a cor e a urgência fauves de sua maneira anterior, foram sacrificadas, a fim de produzir uma espécie de pintura mais conceitual, disciplinada e geométrica... As formas foram drasticamente simplificadas...  e os objetos que deveriam estar mais afastados da vista recebem exatamente o mesmo tratamento daqueles que se encontram em um primeiro plano; não existe uma única fonte luminosa, e as luzes e sombras são arbitrariamente justapostas... Braque insistia repetidas vezes que o espaço era sua principal obsessão pictórica...

Os cubistas abandonavam agora a cor em favor de uma paleta quase monocromática: no caso de Picasso, porque a cor lhe parecia secundária em relação às propriedades esculturais de seus objetos; no caso de Braque, por considerar que a cor “perturbaria” as sensações espaciais com que estava obcecado. (GOLDIND, 2000, 49-50)

Os cubistas como “antenas da raça”   

Diante de tudo o que foi exposto, Picasso e Braque estavam exercendo seu ofício de serem “antenas da raça”, como bons artistas que eram. A história nos mostra que o início do século XX foi marcado pela construção de uma nova visão de mundo a partir dos desenvolvimentos revolucionários da ciência, da tecnologia e a partir delas, tantas verdades sendo questionadas ou refutadas, como por exemplo, Einstein com a Teoria da Relatividade e Freud ao postular o conceito do inconsciente e a teoria da psicanálise.

Na arte, este fenômeno é registrado pela migração da arte tradicional para a Arte Moderna, antes tendo um código visual universal e posteriormente a abertura para as  inúmeras frentes e estilos (chamada a era dos “ismos”). 

De fato, este era um tempo de desconstruções de verdades pré-estabelecidas, tornando-se necessário mostrar "todos" os lados da complexidade humana ao mesmo tempo. 

Do Cubismo à Arteterapia:

O estudo da História da Arte e em específico da Arte Moderna (e Contemporânea) já é de grande valia aos arteterapeutas, pelo fato de que ela instrumentaliza nossa escuta do social, para o indivíduo nela inserido que nos procura em um setting arteterapêutico na atualidade.

O Cubismo Analítico nos espelha um momento coletivo ao qual reverberava tantas desconstruções e fragmentações na visão de mundo ocidental no início do século XX. Ao decompor a imagem, trazer todos os fragmentos para o primeiro plano e analisa-los de forma igualitária, Braque e Picasso constelavam através da arte, um movimento que pairava no coletivo de sua época.

Neste contexto, podemos fazer uma relação e buscar inspirações neste movimento ao nos perguntarmos: quantos paralelos podemos apontar entre o início do século XX e o início do século XXI? Quantas desconstruções e fragmentações estamos vivenciando nos dias atuais? Como podemos beber da fonte de Braque e Picasso em possíveis processos criativos, na arte e na vida?

Prática arteterapêutica


Existem algumas práticas criativas inspiradas no Cubismo Analítico, mas como arteterapeuta, frequentemente uso uma inspiração indireta no movimento para um processo criativo que envolve um momento de desconstrução e fragmentação, um segundo momento de análise das partes e por fim uma recomposição que as coloque em um mesmo plano de reflexão.

Partimos de um rolinho de papel higiênico por ser uma forma tridimensional. Nele o experienciador poderá desenhar diferentes aspectos que lhe compõem ou que lhe ocupem naquele momento. Em seguida ele cortará o rolinho, fragmentando-o e separando-o as partes. Ao voltar o olhar para os fragmentos surgidos, ele tem a oportunidade de analisar estas partes com cuidado e atenção e desta maneira tem a oportunidade de recompô-las de forma que lhe faça sentido. Por fim, para a ampliação simbólica, o exeprienciador poderá usar o material de desenho para fazer a integração das partes e possíveis desdobramentos. Uma sugestão opcional seria utilizar para esta atividade a paleta de cores característica do cubismo analítico. 

Este é um processo de colagem, sendo esta linguagem também de extrema relação com o Cubismo. No próximo texto trataremos do Cubismo Sintético e a inscrição da colagem como linguagem da arte.




Referências Bibliográficas: 

GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do Impressionismo até hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

GOLDING, John in STANGOS, Nikos (org). Conceitos da arte moderna, Jorge Zahar Ed, RJ, 2000.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

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