segunda-feira, 1 de abril de 2019

A SOMBRA E OS CAPRICHOS DE GOYA

"O sono da razão produz monstros" Capricho 43

Liane Esteves – RJ
lianeesteves@gmail.com


A arte tem importância fundamental na história da humanidade. Desde as expressões mais antigas do homem cunhadas nas paredes das cavernas até os dias atuais, as produções artísticas são testemunho de uma história pessoal e coletiva estritamente relacionada a seu ambiente e época. Revelam aspectos muitas vezes indecifráveis ou inadequados para os costumes e a cultura de determinado tempo e local. Fazer um recorte histórico para melhor compreender os motivos e as questões socioculturais subjacentes às manifestações artísticas propicia o entendimento da dimensão psicológica por trás da criação das obras de arte. Através da psicologia analítica podemos buscar uma forma de compreender, por exemplo, a criação de obras grotescas, sombrias e que de alguma forma subvertem as normas acadêmicas e os costumes de uma época.
Enquanto indivíduos, buscamos uma unidade diante das polaridades que teimam em nos cindir. Luz e trevas, bem e mal, deus e diabo dançam no desenrolar da história e de nossas vidas. Ideias trevosas de repressão diante das luzes de novos ideais teimam em travar uma batalha enquanto não aprendermos a dialogar com elas e lhes dar a devida importância. 
Neste sentido algumas tentativas de diálogo são feitas, entre elas podemos citar as criações artísticas. O universo da arte e da expressão artística envolve uma série de fatores determinantes que contribuem para aflorar no artista questões caras ao seu tempo. Além das particularidades pessoais e biográficas, o contexto histórico e social no qual o artista está inserido muito influencia sua vida psíquica e consequentemente sua produção artística.
Entender os pares dessa dança de opostos na criação artística e também nos trabalhos artísticos produzidos em processos terapêuticos como a arteterapia e psicoterapia, pode auxiliar na compreensão dos mecanismos psíquicos envolvidos. Acredito ser valoroso compreender a possibilidade de integração da sombra na configuração estética.  Jung nos deixou como exemplo o Livro Vermelho ilustrado com as imagens que produziu oriundas desse diálogo interno.
Para ilustrar essa hipótese escolhemos o pintor e gravador espanhol Francisco de Goya e Lucientes (1746-1828). O contexto da Espanha à época de Goya, sob o peso de um regime absolutista e da tradição da igreja católica, frente às luzes da revolução francesa e dos ideais iluministas são importantes na compreensão dos aspectos acima citados. 
"Aonde vai a mamãe?" Capricho 65


Goya era pintor da corte espanhola, dotado de prestígio e profundamente envolvido com os ideais iluministas. Em 1792 adquiriu uma grave doença que deixou como sequela uma surdez permanente, provocando uma grande crise em sua vida e uma transformação em sua obra.  Todo um cenário político e religioso afeta sua vida, seus amigos intelectuais são perseguidos e a inquisição espanhola ganha novo fôlego. Paralelamente aos retratos que fazia para a corte e a nobreza, passa a desenvolver uma série de obras em que irá revelar uma sátira da sociedade espanhola de seu tempo, sobretudo da nobreza e do clero, e também representar seres fantásticos e delírios absurdos. Destaco aqui sua série de 80 gravuras intitulada Los Caprichos. Nestas gravuras pôde explorar e inovar com auxílio dos efeitos da técnica da água-forte e água-tinta, criando gradações de manchas do branco ao preto além de deformações e exageros nas representações dos vícios e das atitudes questionáveis de sua sociedade. Criticava o fanatismo religioso, as superstições do povo, o clero e a Inquisição.  
Podemos aqui conjecturar que a doença e a surdez de Goya teriam facilitado sua interiorização, mudado sua atitude e consequentemente sua criação artística. Seriam suas pinturas e gravuras (repletas de visões oníricas, violência, sátiras e críticas aos costumes, ao clero e ao regime absolutista) a expressão de seu inconsciente e das sombras reprimidas? A irrupção de imagens grotescas em sua obra seria a expressão da sombra pessoal do artista e também da sombra cultural de seu país?  
"Não escaparás" Capricho 72


Segundo Jung, a sombra abarca todos os aspectos de nossa personalidade que desconhecemos, negamos, achamos inaceitáveis e também aspectos da vida coletiva pelos quais nos deixamos influenciar. Representa as características que detestamos nos outros, sendo portanto, o oposto de nossa personalidade consciente. Ter consciência da própria sombra é doloroso e difícil, razão pela qual projetamos nos outros o que permanece rejeitado na região sombria do inconsciente, sendo uma forma de defesa para aquilo que não aceitamos em nós. A região da sombra, na estrutura tipológica de Jung, seria a que envolve a função inferior e a terceira função auxiliar, em contraposição à região "iluminada" da nossa consciência regida pela função principal e pela segunda função auxiliar.
A formação da sombra se inicia na infância, durante o desenvolvimento do ego, quando aspectos da personalidade vão sendo reprimidos ou negados em função de uma adaptação ao ambiente externo. A sombra faz parte do inconsciente pessoal do indivíduo e funciona como um tampão entre a consciência e o inconsciente coletivo. Dessa forma, a sombra tem a importante função de impedir que conteúdos arquetípicos invadam a consciência, evitando um colapso psíquico. 
A sombra, porém, apresenta também caraterísticas positivas, construtivas e criativas necessárias à nossa consciência e que, portanto devem ser postas em prática e não reprimidas ou negadas.  Contém potenciais de desenvolvimento desconhecidos pelo consciente, podendo nos conectar aos nossos instintos e formas espontâneas de agir. Marie Louise Von Franz sugere uma renúncia da vaidade e orgulho do ego para que seja possível vivenciarmos aspectos que foram, equivocadamente, por ele considerados negativos.
"Até seu avô"  Capricho 39



A sombra também se manifesta socialmente. Toda a sorte de desentendimentos entre pessoas, grupos e comunidades são projeções dos aspectos inconscientes da sombra. Eventos em massa estão sujeitos a contágios coletivos, como os eventos históricos da Inquisição, Nazismo, entre outros.  
Integrar à consciência áreas sombrias da psique, nos tornarmos “íntegros”, seria parte do processo de individuação. Para tanto, é fundamental nos confrontarmos com nossa sombra e promover um diálogo entre ela e a persona, de forma a compensar as polaridades entre ambas. Assim sendo, nossa integridade depende do bom relacionamento entre nossas “entidades” psíquicas, o que pressupõe o conhecimento das mesmas.
Para Jung, a saúde de nossa psique está condicionada às relações harmônicas entre consciente e inconsciente. Reconhecer as imagens arquetípicas do inconsciente manifestadas nos sonhos, visões, sintomas e doenças e poder integrá-las à consciência, superando uma percepção unilateral das experiências, é uma forma de lançar luz nas áreas sombrias do inconsciente e avançar no processo de individuação. Pressupõe-se que Goya teria feito uma espécie de diálogo com o sombrio de seu inconsciente através de sua criação artística. 
 Hal Stone e Sidra Winkelman afirmam que é “preciso uma grande coragem para permitir que a voz do demoníaco se expresse, pois muito daquilo que ela tem a dizer é inaceitável para os nossos valores tradicionais” (Zweig, pg. 311). É notória a coragem de Goya na fidelidade que teve aos seus valores e à sua arte perante as perseguições inquisitórias de seu tempo. Tal atitude corajosa fez dele um dos maiores artistas da história cuja obra influenciou gerações de artistas e movimentos artísticos como o Romantismo, o Expressionismo e o Surrealismo. 


"Linda mestra" Capricho 68

Referências Bibliográficas:
ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JUNG, C. G. O Homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.
_________. O eu e o inconsciente. O.C. Vol. 7/2. Petrópolis: Vozes, 2018.
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. O.C., Vol. 9/1. Petrópolis: Vozes, 2017.
_________. A Função Transcendente. In: _______. A natureza da psique. Obras Completas de C. G. Jung, Volume VIII/2. Petrópolis: Vozes, 2000.
_________. Adaptação, individuação e coletividade. In.: _______. A vida simbólica: escritos diversos. Obras Completas de C. G. Jung Volume XVIII/2. Tradução de Edgar Orth. Petrópolis: Vozes, 1998.
_________. Da formação da personalidade. In: ________. O Desenvolvimento da personalidade. Obras Completas de C. G. Jung. Volume XVII. Tradução de Frei Valdemar do Amaral. 2ª Edição. Petrópolis: Vozes, 1986.
TODOROV, T. Goya à sombra das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao encontro da sombra – O potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix.
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Sobre a autora: Liane Esteves

Arteterapeuta e Arte-educadora, especialista em História da Arte e pós graduanda em Psicologia Junguiana. Faz atendimentos individuais e facilita oficinas e vivências em Arteterapia.
Leciona Artes Visuais na rede pública de ensino do Rio de Janeiro. Tem interesse em Arte, Psicologia, Yoga, Vedanta, Espiritualidade, Sustentabilidade, Cinema, Dança e Paisagismo. Acredita na Harmonia, Amor e Respeito entre os Seres.

3 comentários:

  1. Vi o filme As sombras de Goya duas vezês e sempre me compadeço da angústia do personagem Francisco de Goya, que ao perceber que a sua omissão com relação a sua retratada (magnifico quadro) demonstra uma expressão de muita dor...

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  2. Adorei o artigo! Acho que Goya representa muito bem mesmo uma das mais belas meia-luzes sobre nossas humanas sombras íntimas e socioculturais...

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  3. Parabéns!!! Artigo muito interessante e gostoso de ler 😘... Não conhecia Goya... Maravilhoso

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