Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
No último dia nove estive no
II Congresso de Clínica Junguiana e Arteterapia: Tradições e História da Arte,
realizado pela Universidade Veiga de Almeida no período de sete a onze de
junho. Neste dia tive a oportunidade
de compartilhar pela primeira vez, de forma mais estruturada, um tema que tem
me atravessado e feito parte de minhas reflexões profissionais e pessoais.
Alguns fragmentos desta reflexão já venho compartilhando em aulas e supervisões
de Arteterapia oferecidas por mim, em alguns posts de conteúdo na fan page do
Não Palavra e em textos anteriores, que hoje vejo como embrionários da
articulação que vem tomando forma: “Política e Arteterapia: Plateia e Canção” (CLIQUE AQUI) e
“O mundo necessita de arte” (CLIQUE AQUI). O texto de hoje se dá como seguimento desta articulação.
Há cerca de um ano comecei a
experimentar uma sensação que tenho certeza, também é sentida por outras
pessoas. Atualmente, quando sentamos para assistir um jornal ou nos informarmos
sobre o que está acontecendo no mundo, no nosso pais, estado, município,
experimentamos uma sensação de estranheza. Se fôssemos enumerar cada um dos
fatos que nos estarrecem, nas mais variadas esferas e seguimentos, faltaria
tempo e espaço, tamanha avalanche de conteúdos e velocidade de acontecimentos.
Profundamente atravessada
neste contemplar do mundo em que vivo, encontrei na História da Arte algum eco
para minhas inquietações. Afinal, segundo Nise da Silveira:
“O
artista é ‘um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da
humanidade’. No mistério do ato criador, o artista mergulha
até as funduras imensas do inconsciente. Ele dá forma e traduz na linguagem de
seu tempo as intuições primordiais e assim, fazendo, torna acessíveis a todos
as fontes profundas da vida.” (SILVEIRA, 2007)
O Dadaísmo
"Dadá é um estado de espírito" Breton (ADES)
Não por acaso retomei meus
estudos sobre o movimento dadaísta, já há algum tempo adormecidos e lembrei-me
de uma de suas características fundamentais: a função política exercida por
este movimento ao expressar o grito contido diante do horror da I Guerra
Mundial e também, através de seus processos criativos, a busca de algum
possível.
O questionamento dos dadaístas
era: “Para onde o excesso de razão nos
levou?”, fazendo crítica à exaltação da razão, característica dos
pensamentos filosóficos dos séculos anteriores, com raízes no iluminismo.
Acreditavam que as últimas consequências desta cultura culminava na guerra produzida pelos seres humanos daqueles tempos. Alguns destes artistas inclusive foram convocados para os frontes
da batalha e voltavam absurdados com o que viam. Assim, nas palavras de Arp:
“Em Zurique, em 1915, tendo perdido o
interesse pelos matadouros da guerra mundial, voltamo-nos para as Belas Artes. Enquanto o troar da artilharia se escutava a
distância, colávamos, recitávamos, versejávamos, cantávamos com toda nossa
alma. Buscávamos uma arte elementar que pensávamos, salvasse a espécie
humana da loucura desses tempos.”
(ADES)
(ADES)
O dadaísmo ficou conhecido por suas performances barulhentas e provocativas exibidas na casa noturna Cabaret Voltaire. Promovendo a incoerência em detrimento do sentido, os dadaístas atacavam a crença de que a sociedade podia usar a lógica e a ciência para resolver qualquer problema. (FARTHINHG) Conta-se que ao serem indagados sobre a loucura daqueles espetáculos nonsense, em contrapartida questionavam se a loucura estava neles ou nos seres humanos que se matavam e destruíam.
As expressões e obras destes artistas traziam como premissa a desconstrução do tradicionalismo, a quebra do estabelecido. Grandes exemplos são os “ready mades” de Duchamp, aos quais partia de objetos funcionais fabricados industrialmente exibidos com pouca ou nenhuma alteração, mas assinados como obras de arte. Duas das obras mais representativas do dadaísmo: “A fonte” e “A roda de bicicleta”:
As expressões e obras destes artistas traziam como premissa a desconstrução do tradicionalismo, a quebra do estabelecido. Grandes exemplos são os “ready mades” de Duchamp, aos quais partia de objetos funcionais fabricados industrialmente exibidos com pouca ou nenhuma alteração, mas assinados como obras de arte. Duas das obras mais representativas do dadaísmo: “A fonte” e “A roda de bicicleta”:
Um observador desatento
poderia questionar “isso é arte?” De
fato, desafiar as ideias pré-concebidas sobre a definição de
arte era uma das motivações de Duchamp. Além disto, quando compreendemos
seu contexto, podemos visualizar o conceito da obra e a mensagem dada pelo
artista sobre a necessidade de uma desconstrução do que o ser humano havia
estabelecido até ali, e assim concluímos: é arte. Ao lançar mão de um mictório, virá-lo de cabeça para baixo e chama-lo de fonte ou ao pousar uma roda de bicicleta em cima de um banco, Duchamp, sutil mas provocativamente, descontruía as invenções humanas e as concepções instituídas.
Através de seus processos criativos, os dadaístas também exploravam e manifestavam seus movimentos em busca de outros caminhos possíveis para além da razão. Trabalhos movidos pelo acaso, o caos, o não controle, não racionalização e não escolha. Bom exemplo são as colagens de Arp, que em seu processo criativo rasgava desenhos em pedaços e deixava que os fragmentos caíssem, formando um novo padrão, convidando assim o acaso para suas composições.
Em Berlim, o Dadá assumiu uma forma mais ostensiva e política. A invenção da fotomontagem a partir de recortes de jornais e fotografias, usando materiais visuais do mundo à volta e do ambiente familiar, tornou-se uma arma política incisiva e mordaz. (ADES). Podemos citar as fotomontagens de Raoul Hausmann que criava fotomontagens abordando eventos políticos contemporâneos e ao mesmo tempo desafiavam o estilo mais representativo dos expressionistas. (FARTHING)
Vejo aqui um simbolismo muito interessante a ser pensado, pois a partir do processo criativo da colagem, que tanto ganhou força neste período (no dadaísmo mas também a partir do cubismo), os artistas intuitivamente começavam através da arte gerar movimentos que reverberariam no coletivo. Buscando algum possível, através da colagem os artistas fracionavam, selecionavam elementos fragmentados, rejuntavam, recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo que instiga a resiliência, individual e coletiva, movimentos que seres humanos atravessados pelas destruições das guerras, mais do que nunca necessitariam acessar.
Vejo aqui um simbolismo muito interessante a ser pensado, pois a partir do processo criativo da colagem, que tanto ganhou força neste período (no dadaísmo mas também a partir do cubismo), os artistas intuitivamente começavam através da arte gerar movimentos que reverberariam no coletivo. Buscando algum possível, através da colagem os artistas fracionavam, selecionavam elementos fragmentados, rejuntavam, recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo que instiga a resiliência, individual e coletiva, movimentos que seres humanos atravessados pelas destruições das guerras, mais do que nunca necessitariam acessar.
A
loucura e os artistas de nossos tempos
Tomando como inspiração o
movimento dadaísta, acredito que devemos pensar sobre a loucura
e os artistas de nossos tempos. E esta reflexão me tocou de forma especial
quando soube da manifestação feita pelos funcionários do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro no dia nove de maio deste ano. Estes artistas de nossos tempos
estão impossibilitados de gerir suas vidas e inclusive irem ao trabalho pois não
recebem seus salários há meses, consequência de um estado falido, como todos
sabemos, pelo enlouquecimento de nossos governantes (e naturalmente, a arte é
apenas um dos seguimentos afetados). Não pude estar presente neste dia, mas me
dediquei por alguns instantes a pesquisar os registros deste evento na internet
(sugiro que o leitor também o faça) e conversar com pessoas que estiveram presentes. Os relatos são unânimes sobre
o quão impactante foi este protesto em forma de espetáculo. E particularmente fiquei muito emocionada
quando assisti o vídeo de um dos discursos proferidos na manifestação:
"...
viemos mostrar nossa indignação da maneira que nós sabemos: fazendo arte. Porque
o povo que não cuida da sua cultura é um povo sem identidade... Então nós
viemos aqui da maneira mais lúdica possível, gritar a nossa indignação, o nosso
horror, fazendo arte. Trazendo para vocês música, canto e dança. Que é o
que nós sabemos fazer e queremos voltar a fazer dentro desta casa que é tão
amada e tão respeitada pela população do Rio de Janeiro e do nosso país.“
Outro
grande artista brasileiro que tem me orientado
nestes tempos de estranheza é Oswaldo Montenegro que em seu poema “Metade” reconhece
o poder da arte quando nos sentimos fragmentados:
“Que
a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é plateia
e a outra metade é canção.”
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é plateia
e a outra metade é canção.”
O
papel político da Arteterapia na atualidade
A
partir de todas estas referências, vejo como essencial que seja pensado o
ofício do arteterapeuta no cenário atual: alguém que oferece ao social e
aos indivíduos um continente suportado pela transferência em que a arte servirá
como linguagem diante da estranheza e como busca de possíveis caminhos.
O exercício da arte mobiliza emoções, expressões, tomadas de consciência, senso crítico, pensamentos, ações, movimentos internos e externos, individuais e coletivos. Assim considero que a Arteterapia coopera para saúde de sujeitos atravessados por seus horrores e para que voltem para o social em si, aptos a contribuírem para que "a roda gire para o outro lado".
É imperativo que nós arteterapeutas tomemos
consciência sobre a "loucura dos nossos tempos" e munidos da
sensibilidade do artista aos quais guardamos no peito, sejamos movidos a
protestar e contribuir para o social, a partir das mais variadas modalidades em
Arteterapia, através daquilo que sabemos fazer: arte.
Hoje enxergo com mais clareza
as palavras que escrevi no texto que iniciou esta reflexão há pouco mais de um
ano:
“Neste contexto, descobri a resposta para as
minhas perguntas pessoais sobre qual é o meu papel como cidadã brasileira neste
cenário cheio de nuances e perspectivas, pouco exploradas. Para além do
imperativo de um posicionamento partidário e ideológico, perante a pergunta: “Qual
é seu posicionamento político?” eu
respondo: ‘Sou arteterapeuta’
Em meu
ofício como arteterapeuta promovo um espaço de afeto e acolhimento em meio ao
clima de ódio. Quando as relações humanas estão em crise, promovo um grupo
arteterapêutico em que os participantes se pensam em suas relações
interpessoais no grupo e no coletivo. Enquanto o ser humano produz para si o
caos e o sofrimento, promovo um espaço em que produzem arte!”
(MORAES)
Reconhecer
e me apoderar do papel poilítico da Arteterapia nos dias atuais é o meu
possível, a orientação que encontrei para meu estar e agir no mundo em que
habito. Sigo acreditando que minha micropolítica é "simples", e Oswaldo
Montenegro me lembra que é preciso simplicidade para que a arte possa
florescer. Assim me considero lutando diante da guerra em que vivemos atualmente, não uma guerra nomeada, mas justamente tão perigosa por não ser declarada.
Aos arteterapeutas que possam se identificar com esta reflexão, lembro que se o movimento “...
dada era um modo de ser, e o melhor palco para o dadaísta era a vida...” (BRADLEY), da mesma forma ser arteterapeuta é um modo de
ser, e o melhor palco para o arteterapeuta é a vida.
Quanto a mim, a articulação sobre este tema ainda não se esgotou. Sigo pensando sobre ele e compartilhando nos espaços virtuais e presenciais do Não Palavra. Sua companhia é bem vinda! Hoje estarei em Niterói, no Espaço Seyva Atelier com a palestra vivencial "Uma arte que nos salve da loucura destes tempos".
E para continuar acompanhando este percurso, se inscreva na nossa mala direta: naopalavra@gmail.com
E para continuar acompanhando este percurso, se inscreva na nossa mala direta: naopalavra@gmail.com
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências
Bibliográficas:
ADES in STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte
Moderna.
BRADLEY, Fiona.
"Surrealismo - Movimentos da Arte Moderna".
FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: Os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos.
FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: Os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos.
MORAES, Eliana. Política e
Arteterapia: Plateia e Canção.
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. 2007.
Maravilhoso!! Profundo, emocionante, engrandecedor!
ResponderExcluirMagnifico querida! Obrigada
ResponderExcluirObrigada pelo compartilhamento, se houver uma oportunidade de palestra em São Paulo, coloco meu espaço à sua disposição. Abs.
ResponderExcluirEsta página pousou novamente na minha timeline (sincronicidade). Li com um novo olhar e me surpreendi ao ver que foi onde começou o nosso contato e transformou o Espaço Crisântemo num local paulistano para as suas articulações políticas da Arteterapia. Estaremos juntas dia 17 de junho/2018 novamente, já celebrando 1 ano de movimento. Somos arteterapeutas!
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