segunda-feira, 18 de agosto de 2025

REGULAÇÃO EMOCIONAL NA ABORDAGEM DA TERAPIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL (TCC) E ARTETERAPIA: TAMBÉM EM MOMENTOS DE CRISE



Por Juliana Mello - RJ

@vivendotccearte 


Sr. Miyagi: Confie na sua intuição.

Daniel: E como vou saber se é o certo?

Sr. Miyagi: Se vier de dentro de você é sempre certo.

(Karate Kid: A Hora Da Verdade,1984)

 

No texto anterior falei um pouco sobre as emoções e a importância da regulação emocional. É importante flexibilizarmos a nossa forma de sentir emoções. Por exemplo, em uma situação de perigo ou catástrofe é importante regular a emoção e ativar o pensamento mais racional, para um comportamento mais adequado e seguro possível. Por outro lado, em uma situação agradável, como conquistar um objetivo (fazer exercícios, passar em uma prova), sentir a emoção de forma intensa fortalece nossas memórias afetivas e a forma como nos percebemos. Esse equilíbrio entre sentir e expressar as emoções com consciência é o que chamamos de Inteligência Emocional, e ela se desenvolve justamente por meio da Regulação Emocional.

De acordo com as emoções desagradáveis adotamos comportamentos disfuncionais, que em muitos casos, reforçam as sensações “ruins”: esquiva (evitar ou fugir da situação estressora), compensação (descontar as emoções em ingestão de comida e/ou bebidas), ruminação (ficar preso em pensamentos repetitivos e negativos) e a manutenção (ações automáticas que só reforçam o estado emocional difícil). De acordo com Leahy e seus colaboradores:

“Expressão e validação são úteis na medida em que normalizam, melhoram a compreensão, diferenciam várias emoções, reduzem a culpa e a vergonha e ajudam a aumentar a crença na tolerabilidade da experiência emocional” (2013).

Ou seja, o objetivo não é deixar de sentir, mas acolher, aceitar e expressar de forma funcional, aprendendo a lidar com o que sentimos e reconhecendo os sinais que o corpo nos dá.

Para relembrar nosso funcionamento na TCC:

  • Pensamento: automático, surge sem nosso controle — como se “caísse” na nossa mente.
  • Sentimento/emoção: também não controlamos o que vamos sentir, pois ela está conectada ao pensamento. Mas é possível aprender a regular a intensidade.
  • Comportamento: aqui está nosso ponto de escolha. Entendendo como pensamos e sentimos, podemos decidir agir conscientemente, em vez de apenas reagir.

A TCC nos ajuda a ressignificar pensamentos, emoções e comportamentos, ampliando a forma como percebemos e lidamos com as situações. Ressignificar é um processo, e exige dedicação ao autoconhecimento. Quanto tempo você pensa, sente e se comporta da maneira atual? Lembre-se: se você age de um certo jeito há muito tempo, não se cobre mudanças da noite para o dia. Mas mudança pode acontecer antes do que você imagina, desde que você se comprometa com você mesmo(a).

 

Mas, na prática, como podemos trabalhar isso?

A Terapia Cognitivo-Comportamental nos oferece várias técnicas eficazes, que podem nos auxiliar:

-Treinamento de habilidades emocionais na psicoterapia: O processo terapêutico é um espaço seguro para aprender como funcionamos emocionalmente. Ali, vamos identificando padrões e treinando, na relação terapêutica segura, novas formas de agir e reagir.

- Flexibilidade cognitiva: que é a habilidade de ver uma situação por vários pontos de vista, adaptar nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos diante de mudanças e imprevistos, deixando de lado uma ideia fixa quando ela já não serve mais e tentar novas estratégias. Favorece o uso da reestruturação cognitiva.

- Reestruturação Cognitiva: Técnica terapêutica de identificar, questionar e reformular pensamentos. É um método estruturado para mudar crenças disfuncionais.

- Reavaliação dos resultados: É um momento de pausa para refletir: qual era meu objetivo? O que fiz para alcançá-lo? Quais foram os resultados? Ao identificar o que funcionou (ou não) através de evidências (fatos inquestionáveis), podemos ajustar rotas, criar novas estratégias e fortalecer o autoconhecimento. Avaliar e criar estratégias mais adequadas, auxilia na regulação emocional, pois é possível acessar previamente momentos que podem ser desregularizadores.

- Escrever: Auxilia a não perder o controle da situação, dando tempo para pensar. Colocar no papel o que se passa na cabeça ajuda a organizar os pensamentos e as emoções. Não precisa se preocupar com ortografia ou estrutura — é uma escrita livre e criativa, que serve como canal de expressão e autorregulação.

- Respiração consciente: Uma sugestão simples: inspire contando até 4, segure por 2 segundos e expire contando até 4. Mãos sobre a barriga ajudam a perceber o movimento. Outra opção é usar os dedos (indicador e mínimo) para alternar as narinas ao inspirar e expirar. São técnicas que ajudam a regular a intensidade emocional.

- Mindfullness (Atenção Plena): Muito utilizado atualmente, o mindfulness ajuda a nos manter no presente, o que é essencial para lidar com ansiedade (futuro) e depressão (passado). Podemos meditar até nas pequenas atividades do dia: ao beber água, tomar banho, lavar louça ou caminhar. Recomendo sempre o vídeo no YouTube chamado “Meditação em um minuto”, que mostra como meditar de forma prática é possível, quebrando a ideia de que meditar é parar tudo e “esvaziar a mente”.

 

Como reconhecer que é hora de usar uma técnica de regulação emocional?

 

Tudo começa com reconhecer que estamos sentindo algo. O corpo sempre dá sinais — quanto mais intensa a emoção, mais evidente será a resposta fisiológica (como sudorese, taquicardia, tensão muscular, etc). Esses sinais são como um termômetro emocional. Ao percebê-los, conseguimos escolher qual técnica aplicar naquele momento.

É importante destacar: as técnicas precisam ser praticadas mesmo quando você estiver bem, para que o cérebro registre e torne essas estratégias mais acessíveis e naturais no momento de crise

E quando o emocional “explode”? Técnicas emergenciais:

- Mudança de foco: olhe ao redor e descreva o ambiente. Note as cores, os objetos, o número de móveis, pessoas ou sons. Isso ajuda a "aterrar" sua atenção e reduzir a intensidade emocional.

- Gelo nas mãos: segure um cubo de gelo enrolado num pano. A sensação térmica ajuda a mudar o foco e traz o corpo de volta para o presente.

- Atividade física: Uma caminhada rápida, pular corda ou dançar pode ajudar seu cérebro a sair do “modo alerta”. A atividade física libera substâncias que reduzem a tensão e trazem bem-estar. Além disso, o movimento desvia o foco da mente para o corpo, favorecendo o retorno ao presente e interrompendo ciclos de ruminação ou pensamentos catastróficos."

 

E como a Arteterapia auxilia na regulação emocional, inclusive como técnica emergencial?

a Arteterapia também pode ser uma estratégia eficaz em momentos de desregulação emocional.

Quando colocamos nossas emoções em forma de desenho, colagem, pintura ou escrita espontânea, ativamos áreas do cérebro relacionadas ao autocontrole e à autorregulação.


Além disso, o ato de criar nos ajuda a sair do piloto automático, focar no presente e processar sentimentos de maneira segura e simbólica. Não é preciso “saber desenhar” — o que importa é permitir que o corpo e a emoção se expressem, sem julgamento. O movimento do pincel, o rasgar do papel ou o toque do lápis já são formas de ‘esvaziar’ o que está sobrecarregado internamente. Também não é preciso saber escrever, a ideia não é fazer uma redação, mas expressar livremente os conteúdos internos.

Uma outra forma é escolher uma música, cantar e dançar de forma livre, além de criar movimentos livres em uma folha de papel. Posteriormente, pintar os espaços com as cores que as emoções representam naquele momento, de formar a mapear, organizar e regular a intensidade das emoções presentes.

 

“Você não pode impedir que as ondas cheguem, mas pode aprender a surfar” (Jon Kabat-zinn – criador do Mindfulness baseado na redução de estresse)

 

 

Bibliografia:

LEAHY, Robert L.; TIRCH, Dennis; NAPOLITANO, Lisa A. Regulação Emocional em Psicoterapia: um guia para o terapeuta cognitivo-comportamental. Porto Alegre: Artmed, 2013.

KOTSOU, Ilios. Caderno de exercícios de inteligência emocional. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 4ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

KOTSOU, Ilios. Caderno de exercícios de Atenção Plena. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 4ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

SMEDT, Marc de. Caderno de exercícios de meditação no cotidiano. Coleção cadernos: praticando o bem-estar. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2016.


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Sobre a autora: Juliana Mello



Psicóloga, Arteterapeuta e Coach

Atendimento clínico  individual e grupo om criança, adolescente, adulto e idoso.
Abordagem em Terapia Cognitivo- Comportamental e Arteterapia

Palestras e Workshop motivacionais.

GRUPO DE ESTUDOS: "TCC e técnicas expressivas"

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

RESPIRAÇÃO, PRANAYAMAS E A ARTETERAPIA: INTEGRAÇÕES POSSÍVEIS



por Karine Drumond - MG


“O que a arte oferece é um tipo de espaço de respiro para a alma” – em livre tradução de John Updike


Recentemente participei de uma vivência conduzida pela arteterapeuta Eliana Moraes onde exploramos o tema dos caminhos da vida, seus percalços e singularidades. A vivência foi muito rica e particularmente despertou em mim reflexões profundas sobre carreira e minhas escolhas. Durante o momento de exploração artística surgiu a produção que chamei de “O Caminho-Pulmão". Esta imagem e as conexões que ela evoca dialogam profundamente com meu momento atual. Após mais de 15 anos atuando como designer, experimento um processo de transição de carreira, me formando em Arteterapia e paralelamente me preparando para me tornar também instrutora de Yoga Integral. Nestes estudos, vislumbro muitos diálogos possíveis e sinergias nestas duas áreas de saber. 


A ideia deste artigo, nasce, portanto, destas reflexões sobre os diálogos possíveis entre os ensinamentos da Yoga Integral e Arteterapia. Quais são estes diálogos? De que maneira podem se complementar e potencializar as vivências arteterapêuticas? Neste artigo, em especial, proponho começarmos explorando os diálogos possíveis entre os pranayamas – as práticas respiratórias do yogae Arteterapia.

Pranayama e arteterapia: uma base em comum

A palavra pranayama é composta de dois termos: prana, que significa respiração, alento primordial, energia vital, e ayama, que significa pausa, retenção. Literalmente, pranayama, quer dizer, portanto, retenção da energia vital. Segundo Blay (1996), Pranayama é a parte do Yoga que trata do domínio das energias psíquicas mediante a regulação do movimento respiratório. 


Tanto o pranayama quanto a arteterapia partem da experiência presente.

Enquanto a arteterapia dá forma às sensações internas por meio da expressão visual, as técnicas de pranayama nos convidam a mergulhar em nosso ritmo respiratório como ponto de conexão entre corpo e psique. Ambos criam um espaço para que o que está latente — emoções, imagens, memórias, impulsos — possa emergir com mais clareza. Além do que, compartilham o mesmo objetivo: a integração do Eu superficial com o Eu mais profundo, levando ao desenvolvimento pessoal. 

Aspectos psíquicos da respiração e a arteterapia

Como sabemos, a respiração, enquanto ato ao mesmo tempo voluntário e involuntário, reflete e influi nos estados mentais dos indivíduos. Um dos objetivos primordiais do controle da respiração, no Yoga, consiste em promover um diálogo saudável e nutritivo entre a energia contida na personalidade profunda (inconsciente) com a personalidade superficial (consciente).  Esta integração, na ordem fisiológica, leva a integração de todos os seus sistemas nervosos (central, simpático e parassimpático).  No Hatha Yoga, a integração no nível psíquico leva a integração no nível fisiológico e vice e versa. A respiração é o primeiro ato do ser humano ao nascer, é o ato vital que o mantém em contato permanente com o mundo que o rodeia. Ao integrar práticas de respiração em Arteterapia, um primeiro diálogo importante que podemos fazer é explorar as fases ou tempos da respiração e suas relações simbólicas, como veremos a seguir.

Inspiração e expansão (puraka)

Fisiologicamente é o movimento do aparelho respiratório que permite a entrada do ar nos pulmões. Psicologicamente é o ato pelo qual o indivíduo recolhe ou deixa entrar o ar de que necessita; relaciona-se diretamente com a afirmação do indivíduo dentro de si mesmo. O desenvolvimento da inspiração profunda representa o ato de acolher o novo, nutrir-se, abrir-se às possibilidades.


Na arteterapia, associada a técnicas de pranayamas, podemos explorar as relações simbólicas que surgem desse ato. O que pode traduzir-se, por exemplo, na pergunta-reflexão: “O que preciso inspirar agora na minha vida? Como posso dar forma a esse desejo criativamente?” “Do que preciso me nutrir para crescer?” 

Expiração e entrega  (rechaka)

Fisiologicamente é o movimento do aparelho respiratório que expulsa o ar dos pulmões. Psicologicamente, é o ato com o que o indivíduo expulsa ou se desprende do ar viciado de seus pulmões. Relaciona-se com a expansão da personalidade e com as formas que adota.


No ateliê terapêutico, esse momento pode ser explorado com convites à experimentações com práticas que permitem evocar desapego. Pergunta-reflexão: “Do que preciso abrir mão para que algo novo possa surgir em mim e na minha vida?”

Pausa entre as respirações (kumbhaka)

As retenções são como uma suspensão criadora, um momento de espera e integração entre o que foi e o que virá. A retenção com pulmão cheio, corresponde psicologicamente a um ato assimilador, retentor e conservador, em seu duplo aspecto fisiológico e psíquico. É uma fase ou movimento de equilíbrio relativamente estável. A retenção com os pulmões vazios é um ato pelo qual se mantém em estado de vazio, de ausência de ar, do mundo e dos conteúdos do eu. Momento de equilíbrio instável, abstração ou morte. Feito de forma natural, evoca o distanciar-se do vaivém das coisas. Em Arteterapia podemos indagar:

“Como posso habitar o intervalo entre o conhecido e o desconhecido? O que há neste intervalo? Como dar forma a esse momento de pausa?”


Ritmo e ciclos

A cadência da respiração nos lembra que tudo na vida é cíclico, um vai-e-vem entre dar e receber. A própria observação consciente dos ciclos respiratórios pode inspirar mandalas, padrões gráficos, imagens circulares que tragam senso de continuidade e equilíbrio.

Em ateliê terapêutico podemos explorar visualmente “Como meu ritmo interno se manifesta visualmente? O que ele me ensina sobre o fluxo da minha própria vida?”


Respiração alternada (nadi shodhana)

No Yoga, ao trabalhar técnicas de respiração alternada, busca-se equilibrar os dois canais da respiração (narina direita = positiva, narina esquerda=negativa), criamos uma disponibilidade para a harmonização das polaridades (razão e emoção, ação e entrega, luz e sombra, atividade e descanso). Pergunta-reflexão: “Que opostos dentro de mim buscam diálogo? Como eu os simbolizaria criativamente?”

Possibilidades para integrar pranayama e arteterapia na prática

Explorando alguns possíveis diálogos, vimos como as práticas de respiração do Yoga podem propiciar e potencializar o autoconhecimento, funcionando como um meio de ampliar a percepção sobre si mesmo e seus estados mentais, promovendo um diálogo interno mais harmônico. Um exemplo comum, na condução de uma sessão, o terapeuta pode começar guiando um pranayama simples e curto — o suficiente para que o participante entre em contato com a própria respiração. Depois, com os olhos ainda fechados, pode-se propor que a pessoa observe as imagens que emergem durante a prática e que as transponha para o papel, a argila, a colagem ou o material que preferir. Ao final, a reflexão sobre o que foi criado ganha ainda mais profundidade quando relacionada às qualidades da própria respiração, criando uma ponte entre o que foi vivido corporalmente e o que foi expresso visualmente.


Pesquisando, descobri algumas outras possibilidades interessantes. Como por exemplo, o relato de uma arteterapeuta que colaborou em parceria com uma instrutora de yoga, em sessões para grupos de veteranos em habilitação assistida, com foco em cessação ao tabagismo e manejo do estresse. A intenção foi oferecer estratégias alternativas de enfrentamento — como arte, movimento e atenção plena — em sessão integrativa, unindo psicoeducação, práticas respiratórias e experiências arteterapêuticas. Após o momento de respiração, os participantes foram convidados para criar mandalas com aquarela sobre círculo desenhado à base de giz branco. A técnica com giz resistiu à tinta, fazendo a forma circular emergir sob camadas de cor. Essa mandala simbólica representou o “espaço de respiração interno”, funcionando como metáfora de proteção emocional e lembrança visual a ser mantida mesmo em camadas de vida e tensão. O grupo refletiu sobre o valor de criar fronteiras que protejam momentos de desaceleração e introspecção. A mandala funcionou como lembrança visual desse espaço interno sempre acessível.


Concluindo, o pranayama aquieta a mente e equilibra o sistema nervoso, ampliando a presença e a consciência de si. Esse estado pode potencializar a expressão simbólica, permitindo que as imagens que surgem no processo criativo sejam mais autênticas e conectadas àquilo que precisa ser visto, sentido e elaborado. Pensando nisso, essa integração entre respiração consciente e expressão artística enriquece o próprio caminho de autoconhecimento. Em ateliê arteterapêutico o ritmo da respiração pode virar traço, a inspiração pode virar cor, a pausa pode virar forma, e a entrega pode virar imagem. Respiração em arteterapia pode ser tanto usada como técnica auxiliar, potencializadora das práticas, quanto também como objeto-foco da sessão terapêutica, com ricas possibilidades.

Dessa maneira, o pranayama e a arteterapia se encontram como práticas e saberes que se entrelaçam e abrem novas vias para o florescimento pessoal e criativo.

Este entrelaçar dos dois saberes não acaba aqui, é apenas o começo, continuo seguindo minha curiosidade, ávida por descobrir novas tramas dessa costura.


Referências


BLAY, Antonio. Fundamento e prática do hatha yoga: Loyola, 1996


ROIZEN, Sara. BREATHING SPACE COLLABORATION ~ WITH VETERANS. Art Therapy Spot, 17 nov. 2013. Disponível em: https://arttherapyspot.com/2013/11/17/breathing-space-collaboration-wi/?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 22 jun. 2025.



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Sobre a autora: Karine Drumond




Karine Drumond tem uma formação em Design, Arte Educação. Pós graduanda em Arteterapia pelo INTEGRATE - MG. Com sólida experiência facilitando processos criativos para mulheres e crianças entre 7 e 14 anos. Atuou como pesquisadora e professora em Design na PUC Minas por mais de 10 anos. Recentemente atuou na ONG Projeto Reconstruir, utilizando a arte como ferramenta de expressão e transformação social. Atualmente, está à frente do EquilibrArte, projeto em construção que pretende promover vivências que integram yoga, arteterapia e autoconhecimento para resgatar o bem-estar e a criatividade pessoal e coletiva.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

OLHAR DA ARTETERAPIA NA RELEITURA DE HENRI MATISSE COM IDOSOS

 


Por Anderson Amaral  e Adriana Limeira do Nascimento - CE

O envelhecimento é um processo natural e inevitável na trajetória humana. Ao longo da vida, todos percorremos diferentes fases — infância, adolescência, vida adulta e, por fim, a velhice. Cada etapa é marcada por descobertas, desafios e transformações, e envelhecer, embora muitas vezes visto com receio, também pode ser um tempo de ressignificações, novas conexões e expressão de sabedorias acumuladas.

O Brasil, embora ainda seja considerado um país relativamente jovem, vem passando por um acelerado processo de envelhecimento populacional. Segundo os dados dos Censos Demográficos, a proporção de pessoas com 65 anos ou mais tem crescido de forma contínua: era de 4,8% em 1991, passou para 5,9% em 2000, 7,4% em 2010 e alcançou 10,9% em 2022. Em números absolutos, essa população aumentou de 10 milhões em 2000 para 14,1 milhões em 2010, atingindo 22,2 milhões em 2022 (GONÇALVES et al., 2024).

Esse cenário traz implicações importantes para a organização social e os cuidados com a população idosa. Um dos impactos mais relevantes é o crescimento do número de idosos institucionalizados. De acordo com dados do Censo de 2022, cerca de 160.784 pessoas com 60 anos ou mais viviam em instituições de longa permanência, o que representa aproximadamente 0,5% dessa população — estimada em 32,1 milhões de indivíduos (BRASIL, 2024).

Diante disso, torna-se essencial repensar os espaços terapêuticos dentro das instituições de longa permanência, para que não sejam apenas locais de cuidado físico, mas também de estímulo, afeto e dignidade. Segundo Amaral e Nascimento (2025), é fundamental que esses ambientes ofereçam propostas de estimulação cognitiva, motora e afetiva por meio de jogos, arte, musicalização, dança e outras práticas que favoreçam a ludicidade e o vínculo entre idosos, profissionais e familiares. O objetivo vai além da funcionalidade: busca-se a promoção do bem-estar, da humanização do cuidado e da valorização da pessoa idosa em sua totalidade.

Nesse contexto, a arteterapia tem se mostrado uma abordagem poderosa e sensível, especialmente no ambiente institucional. Ela contribui para a manutenção da cognição, regula o humor, favorece a expressão afetiva e possibilita a ressignificação de vivências pessoais. Por meio da arte, muitos idosos encontram novas formas de expressar emoções e histórias — especialmente quando as palavras já não são suficientes.

Este artigo apresenta um relato de experiência da utilização da arteterapia com idosos institucionalizados no Lar Amantino Câmara, em Mossoró (RN). A proposta foi inspirada na obra do artista francês Henri Matisse, conhecido por sua sensibilidade ao trabalhar com cores e formas recortadas. Matisse, mesmo diante das limitações físicas impostas pela velhice, reinventou sua arte utilizando tesouras em vez de pincéis, criando colagens vibrantes e expressivas. Sua trajetória inspira a ideia de que a criatividade pode florescer mesmo nos momentos de maior fragilidade.



A sessão contou com a participação de oito idosos, sendo dois cadeirantes e quatro com sinais de declínio cognitivo leve. Os participantes foram distribuídos ao redor de mesas, e o início da atividade foi marcado por um convite à presença e ao foco no “aqui e agora”, embalado pela trilha sonora “Acoustic Flower Vol. 35 – Henri Matisse”. O ambiente sensorial criado visava acolher, acalmar e despertar as potências criativas de cada um.

Cada idoso recebeu uma folha com desenhos inspirados na estética de Matisse, além de giz de cera colorido. A proposta era que pintassem livremente, utilizando cores vibrantes e formas fluidas, resgatando o espírito criativo e subjetivo do artista. Após essa etapa, foram convidados a observar suas produções com carinho e atenção.

Em seguida, as imagens foram cuidadosamente recortadas e coladas sobre folhas A4 previamente escurecidas com giz de cera preto. Essa preparação do fundo tinha como objetivo criar contraste visual, facilitando a percepção das formas e valorizando o resultado final da colagem. Alguns participantes necessitaram de auxílio no manuseio da tesoura, devido a limitações motoras nas mãos ou dificuldades visuoespaciais, e esse suporte foi oferecido com respeito, buscando preservar ao máximo a autonomia de cada idoso. 

Ao final, os participantes foram convidados a observar os trabalhos prontos e compartilhar as sensações e lembranças evocadas durante o processo. Muitos relataram emoções ligadas à infância, à liberdade de criação e ao prazer de realizar algo bonito com as próprias mãos. O clima geral foi de leveza, pertencimento e conquista.

 

Objetivos da atividade:

  • Estimulação cognitiva e sensorial: O uso de diferentes materiais, cores e texturas promoveu o engajamento de múltiplos canais sensoriais, contribuindo para a manutenção das funções cognitivas e perceptivas.
  • Promoção da expressão simbólica: A releitura da obra de Matisse permitiu que cada idoso imprimisse seu olhar singular sobre as formas e cores, favorecendo a livre expressão e a construção de sentido por meio da arte.
  • Valorização da história de vida e da resiliência: O paralelo com Matisse reforçou a ideia de superação e reinvenção, mostrando que a arte e a criatividade continuam sendo possíveis — e significativas — em qualquer fase da vida.
  • Fortalecimento da autoestima e do sentimento de pertencimento: Ao produzirem algo belo, coletivo e respeitosamente acolhido, os idosos sentiram-se valorizados, o que contribui para o bem-estar emocional e social.
  • Desenvolvimento da coordenação motora fina: As etapas de pintura, recorte e colagem exigiram planejamento motor e atenção, trabalhando aspectos fundamentais para a preservação da funcionalidade e da autonomia.

Os idosos demonstraram grande entusiasmo ao longo de toda a vivência, e, ao final da atividade, muitos expressaram surpresa e encantamento com os próprios resultados. Relataram que, no início, não acreditavam ser capazes de produzir algo tão bonito, criativo e colorido. Alguns verbalizaram que não tinham o hábito de desenhar ou pintar desde a juventude, e que a proposta os tirou da zona de conforto de forma leve e acolhedora.

Durante o momento de apreciação das colagens finalizadas, foi possível observar olhares de admiração, sorrisos espontâneos e comentários cheios de orgulho, como: “Eu não imaginava que conseguiria fazer isso” e “Não é que eu tenho jeito para a coisa?”. Uma das participantes, que apresentava sinais de isolamento nos dias anteriores, compartilhou que a atividade a fez se sentir “viva e útil”.

Essas reações reforçam o quanto é essencial oferecer experiências significativas, que valorizem a autonomia, estimulem a criatividade e promovam o reconhecimento das capacidades ainda preservadas. Quando o idoso é convidado a criar, expressar e compartilhar, ele não apenas exercita habilidades cognitivas e motoras, mas também reconstrói sua autoestima e fortalece sua identidade — sentindo-se, de fato, visto e respeitado.       



Considerações Finais

A experiência relatada neste artigo reforça o potencial transformador da arteterapia no contexto das instituições de longa permanência para idosos. A atividade inspirada na obra de Henri Matisse mostrou-se não apenas uma estratégia de estimulação cognitiva e motora, mas também um poderoso recurso de expressão emocional, resgate de memórias e fortalecimento da autoestima.

Ao oportunizar que os idosos criassem, interagissem e refletissem sobre suas produções, foi possível observar o despertar de afetos, a construção de significados e o sentimento de pertencimento ao grupo. Mais do que o resultado estético das colagens, o que se evidenciou foi a importância do processo: o olhar atento, o toque cuidadoso, o som que embala, a partilha silenciosa ou falada — pequenos gestos que reafirmam a presença, a dignidade e o valor de cada um.

Diante do avanço do envelhecimento populacional no Brasil, ações como esta revelam-se fundamentais para qualificar o cuidado em ambientes institucionais, promovendo saúde, bem-estar e humanização. A arteterapia, nesse sentido, não é simples pintar ou colar, mas uma necessidade vital: ela amplia horizontes, reconecta histórias, ressignificar e devolve ao idoso a possibilidade de continuar sendo autor de sua própria existência.

                  


Referências

AMARAL, A.; NASCIMENTO, A. L. Tratado do jogo: das regras às regras em jogo. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2025. 669 p.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil tem 160 mil pessoas vivendo em asilos e 14 mil em orfanatos. Agência Brasil, 28 set. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-09/brasil-tem-160-mil-pessoas-vivendo-em-asilos-e-14-mil-em-orfanatos. Acesso em: 15 jul. 2025.

GONÇALVES, A.; ALVES, L. C. Idade prospectiva e as novas medidas de envelhecimento populacional: indicadores para o Brasil e suas cinco regiões. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 41, p. 1–24, e0278, 2024. DOI: 10.20947/S0102-3098a0278. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbepop/a/PFr6mrgfGjpdt8RzXdrGLmr/. Acesso em: 15 jul. 2025.

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Sobre os autores: 



Anderson Amaral – Arteterapeuta formado pelo Espaço Psi Rio de Janeiro. Mestre em Tecnologia no Espaço Hospitalar, Pós-graduação em Neurociência com ênfase em Envelhecimento. Pós-graduado em Geriatria e Gerontologia, Pós-graduação em Neuropsicologia ênfase em Reabilitação Cognitiva e Arteterapeuta do lar Amantino Câmara. Autora do Livro Jogos de Estimulação Cognitiva e Motora - WAK Editora e Co autora do livro Tratado do jogo: das regras às regras em jogo - WAK Editora



Adriana Limeira do Nascimento – Arteterapeuta, Terapeuta Ocupacional, Pós-graduação em Saúde Menta, Pós-graduação em Saúde Pública e Brinquedista pela ABBri – Autora do Livro Jogos de Estimulação Cognitiva e Motora - WAK Editora e Co autora do livro Tratado do jogo: das regras às regras em jogo - WAK Editora


segunda-feira, 28 de julho de 2025

REFLEXÕES DE UMA ARTETERAPEUTA IMPERFEITA

 

 


Patrícia Paladino – SP

@patriciap.arteterapia

Talvez você ache que eu já tenha todas as respostas.
Eu mesma já quis acreditar nisso.
Mas a verdade é que, todos os dias, também estou aprendendo a me escutar.

Existe um mito silencioso que paira sobre os terapeutas: o de que estamos sempre bem, emocionalmente equilibrados, quase imunes às turbulências da vida. Como se o fato de trabalharmos com o sofrimento alheio nos blindasse do nosso próprio. Mas não é assim.
Eu sou arteterapeuta. E sou humana.
Tenho dias bons e dias ruins. Tenho dúvidas, dores, sombras. E sigo, como todos, em constante construção.

Acredito que a terapia é uma via de mão dupla. Enquanto alguém se permite ser visto, algo em mim também se transforma. Não estou no controle. Não sou um oráculo. E definitivamente não estou num pedestal.
O que faço, com presença e cuidado, é caminhar ao lado. Segurar a lanterna por um momento. Oferecer um espelho simbólico, uma imagem, uma cor. E, se for possível, construir um espaço seguro onde a alma possa respirar e se despir.

Jung dizia:

“Conhecer a própria escuridão é o melhor método para lidar com as trevas dos outros”

E eu não poderia concordar mais.

Como escreveu Beatriz Helena Paranhos Cardella:

“O psicólogo oferece o colo que aninha, o ombro que consola, a mão que encoraja, o discernimento que guia. Mesmo que em seu interior ele careça de tudo isso. [...] Para tanto, precisa de coragem. Uma coragem imensa. Um desprendimento admirável. Uma humildade encarnada – não virtuosa, mas condição necessária para exercer seu ofício com alguma dignidade” (CARDELLA, 2023, p. 241).

Se há algo que aprendi nesses caminhos é que ninguém cura ninguém, mas todos podemos ser testemunhas do crescimento do outro. E, ao sermos tocados por esse processo, também crescemos por dentro.

Ser arteterapeuta, para mim, é um compromisso com o outro, mas também comigo mesma. Com a honestidade de continuar me olhando. Com a humildade de saber que ainda estou em processo.
E com a confiança de que, mesmo imperfeita, posso ser instrumento de cuidado, afeto e transformação.

Como ela também diz:

“Sua precariedade pode estar a serviço do semelhante. Sua fragilidade carrega uma sabedoria sobre a condição humana – e esta mesma sabedoria pode ajudar um outro humano a recordar-se da potência presente em sua fragilidade” (CARDELLA, 2023, p. 44).

Se hoje eu caminho ao lado de outras pessoas, não é porque cheguei a algum lugar.
É porque aprendi que podemos seguir juntas.
E que o verdadeiro encontro se dá não quando um sabe mais que o outro, mas quando ambos se permitem ser humanos.

Trabalhar a partir da própria humanidade muda tudo. Muda a escuta, que se torna mais sensível. Muda o olhar, que deixa de buscar respostas prontas. E muda o espaço terapêutico, que deixa de ser um lugar de correção para se tornar um lugar de criação, escuta e acolhimento.

E isso só acontece quando há confiança. Quando o outro sente que não está sendo analisado, mas acolhido. Não estou ali para interpretar tudo o que é feito, mas para testemunhar o que se revela. E, às vezes, o mais importante é simplesmente sustentar o silêncio.

 

Referências

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. O Curador Ferido e a Clínica Contemporânea. Amparo: Gráfica Foca, 2023.

 

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Sobre a autora: Patrícia Paladino

 


 
AATESP 984/0823
 
Arteterapeuta com formação pela USCS (Universidade de São Caetano do Sul) com especialização em psicologia analítica pela mesma universidade.
Ofereço Atendimentos individuais para adultos (on-line e presenciais em São Caetano do Sul), grupos  arteterapêuticos e vivências  criativas.

Contato:
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segunda-feira, 21 de julho de 2025

COLAR OS CACOS: REFLEXÕES SOBRE O FILME "VITÓRIA" E OS PROCESSOS DA ARTETERAPIA

 


Por Mônica Ruibal

 

*Contém spoiler


Assistir ao filme Vitória, protagonizado por Fernanda Montenegro, é também entrar num território simbólico profundamente potente, onde a vida e a arte se encontram no movimento de reparar, remendar, ressignificar.

Só que essa história não é só ficção. Vitória existiu. Seu nome verdadeiro era Joana Zeferino da Paz. Mulher nordestina, nascida em Alagoas, que viveu décadas no Rio de Janeiro, até que a violência da cidade invadiu sua porta. Sem ser ouvida, sem apoio, sem acolhimento das autoridades, Joana decidiu pegar uma câmera e, com as próprias mãos, filmar aquilo que parecia inominável: o tráfico, a violência, a corrupção, o abandono.

Gravou, sozinha, por meses, enquanto também seguia sua vida, colando os cacos da casa, das xícaras, da própria existência. Porque enquanto a cidade se estilhaçava em tiros, medo e silêncio, ela se recusava a ser só mais uma invisível.

Quando denunciou, precisou se esconder. Foi viver em Salvador, protegida, com um nome novo — Dona Vitória. Viveu discretamente, longe da terra onde tudo aconteceu, carregando suas lembranças, suas cicatrizes, seus quadros, sua fé.

E partiu recentemente, aos 97 anos, em paz, deixando esse legado de resistência e de coragem.

Vitória, essa mulher que carrega sua própria história de dor, solidão, invisibilidade e resistência, passa boa parte do filme tentando colar uma xícara quebrada.

As xícaras que se partiram não só pelos impactos dos tiroteios que atravessam a sua vida, mas também como reflexo da desintegração de seu mundo, de suas relações, de sua própria identidade naquele espaço.

E talvez aqui esteja uma das cenas mais simbólicas do filme — e que dialoga diretamente com o fazer arteterapêutico: quando ela coloca café nessa xícara remendada… e o café escorre, vaza pelas ranhuras.

A xícara já não sustenta mais. Ela não tem mais a mesma função. Aquilo que se quebrou até pode ser colado, mas jamais volta a ser como antes.



E o que isso tem a ver com Arteterapia?

Tudo.

A Arteterapia é, muitas vezes, esse espaço onde o cliente chega com seus cacos — da vida, das relações, das histórias, dos afetos — e se senta diante de nós com a pergunta silenciosa: “O que eu faço com isso?”

Nos processos arteterapêuticos, aprendemos que nem sempre se trata de consertar para que volte a ser como antes. Às vezes, trata-se de acolher o que quebrou, reconhecer as rachaduras, dar nome às dores, olhar para os vazamentos, e então… criar algo novo.

A xícara não volta a ser xícara. Mas ela pode se tornar escultura, mosaico, objeto poético, memória viva. E, muitas vezes, é isso que fazemos: ajudamos nossos clientes a transformar os estilhaços da vida em novas formas de existir.

 

Práticas que podemos propor a partir desse filme:

 

Trabalhar com colagem, com mosaicos, com cerâmica quebrada — convidando o cliente a criar algo novo a partir do que se quebrou.

Utilizar a metáfora da xícara: o que em você hoje já não comporta mais o que antes comportava? O que está vazando? O que você tenta sustentar, mas percebe que já não cabe?

Convidar o cliente a escrever uma carta para o espaço que precisou deixar, para aquilo que não serve mais, se despedindo, elaborando o luto.

Fazer uma instalação simbólica: uma mesa posta com xícaras quebradas, como representação dos lugares vazios, das ausências, e também dos espaços de reconstrução.

Trabalhar com o conceito do Kintsugi, técnica japonesa que valoriza as cicatrizes da cerâmica, preenchendo as rachaduras com ouro, como uma metáfora de que as feridas também fazem parte da beleza e da história de cada um.


O filme Vitória nos lembra que colar os cacos é um ato de resistência. De amor próprio. De reinvenção. Mas também nos lembra que nem sempre o colado volta a ser recipiente — às vezes, vira obra. Vira memória. Vira história.

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Sobre a autora: Mônica Ruibal



De São Paulo, graduada em Pedagogia com pós graduação em Arteterapia e Arte Reabilitação

Especialista em autismo, atuando em equipe multidisciplinar.

Em 2024 foi convidada a compor um painel sobre Arteterapia no Tearteiro, maior Festival de Autismo e Arte da América Latina.

 ARTBRAZIL, em Fort Lauderdale, expondo a sua arte e promovendo workshops sociais sobre o tema Autismo. 

Criadora do grupo Arte Autismo onde promove encontros e workshops sobre o tema.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Tecendo laços afetivos: um diálogo entre metodologias

 


Por Annamaria Bruno Riscarolli - RJ

@tessituradoser 

Construir um diálogo entre metodologias me recorda como percebo a escrita. Para mim, o ato de escrever guarda em si o gesto de tecer entre palavras e imagens. As ideias, os fios, podem surgir de uma imagem, uma frase lida aqui ou acolá. Pouco a pouco vão se unindo organicamente em versos formando estrofes, um tapete com ideias... Convidando o leitor a dançar pelas cores e texturas, por entre ritmos e entrelaçamentos de histórias, memórias, conectando e despertando novos caminhos, uma trama de possibilidades compondo uma grande tapeçaria que é o viver.

Os fios se encontram : o plantio do “Projeto EntreSaberes: Semeando Gentilezas”

Com muita alegria e gratidão partilho com vocês o trabalho realizado no XV Congresso Brasileiro de Arteterapia, em Vitória, Espírito Santo, em novembro 2024. Uma experiência tão enriquecedora que contou com grande aceitação da comunidade científica e dos participantes.

Este “plantio” surge da importância do trabalho conjunto das metodologias integrativas da Arteterapia, Biodança e Dança Circular. Desde 2017 estas metodologias foram incluídas como práticas integrativas e complementares (PICs) pelo SUS, fortalecendo e confirmando esse diálogo. Esse é fio condutor do Projeto EntreSaberes, desenvolvido no Espaço Tessitura do Ser na promoção de processos de autoconhecimento.

Confiante que este diálogo entre Arteterapia, Biodança e Dança Circular poderia impulsionar mais reflexões naquele Congresso, resolvi inscrever meu trabalho, dentro do eixo temático da Criatividade, na modalidade de apresentação de vivência arteterapêutica.

O tecer dialógico: Arteterapia, Biodança e Dança Circular

Saber dialogar é uma habilidade para criar consciência. É um espaço de compartilhamento de significações onde aprende-se a pensar junto, ainda que diferentemente. Da mesma forma, Arteterapia, Biodança e Dança Circular podem dialogar. Cada metodologia possui características específicas enquanto manejo de estratégias e métodos, mas todas têm um princípio em comum: estão a serviço de um melhor viver, por meio da linguagem não verbal. Não são processos de ordem puramente estética, mas sim de expressão do mundo interior. É justamente neste ponto que se observa o efeito terapêutico e educacional do entrelaçamento das três metodologias. Progressivamente e com regularidade, os participantes vão ampliando as descobertas de si mesmos, ampliando suas habilidades no campo relacional com o outro e com o ambiente, participando de forma mais integrada da dança do viver. Como aprendi com Rubem Alves: “A fala só é bonita quando nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção.”

O sabor do entrelaçar para multiplicar: Autoconhecimento precisa ser um bem acessível ao maior número de pessoas

Os gestos de trançar, de entrelaçar, abarcam conexões, histórias e proteção, sendo, assim, um símbolo de identidade e pertencimento. Atuando profissionalmente há bastante tempo em trabalhos sociais e comunidades, ou seja, em ambientes menos favorecidos, constatei que promover entrelaces é fundamental para desenvolver alternativas para construir vínculos de confiança mútua.

Nestes trabalhos, especialmente com pessoas em situação de vulnerabilidade social, aprendi a acolher saberes, a olhar subjetividades, a enxergar invisibilidades. Por isso sempre foi um movimento muito natural tecer a comunicação entre as metodologias que conduzo, guardando e respeitando suas singularidades, e colocando-as a serviço, de modo conjunto, de um viver mais pleno e significativo.

     

 


 



 

Trabalhos realizados com pessoas em
situação de vulnerabilidade social

Círculo de Acolhimento promovido pela AARJ - 2023

 

Estudos no campo da neurociência trazem importantes descobertas para uma transformação através da interação entre a arte e o movimento. Muitas vezes, compreender algo somente sob o aspecto intelectual não será suficiente para uma mudança de estilo de vida. Processos neurocientíficos mostram como a criatividade e a interação afetam o cérebro, estimulando a plasticidade neural e fortalecendo conexões. Quando nos movemos de forma livre e conectada, superamos barreiras psicológicas e sociais. Criamos espaço para a expressão autêntica e reencontramos o equilíbrio, onde o sistema límbico desempenha um papel central na integração de emoção e memória.

A arte, a dança e a conexão humana podem ativar as áreas responsáveis pela empatia, pela autorregulação e pela criatividade, ampliando nossa capacidade de nos transformarmos. Este é um ponto de comunhão, dialógico, entre a Arteterapia, Biodança e Dança Circular. A partir da utilização da linguagem não verbal, em vivências integradoras, as três metodologias promovem uma efetiva mudança interna, uma vez que convidam os indivíduos a ampliarem sua percepção de como experienciam o mundo.

O “Projeto EntreSaberes: Semeando Gentilezas” nasce do tecer e vivenciar junto, de saberes que originalmente são atividades milenares: arte e dança. Atravessam o tempo e a história. A pré-história narra esses diálogos. Já de muito tempo o homem deixa registros de seu cotidiano, das suas interações, oferecendo notícias do nosso desenvolvimento humano e social enquanto processo evolutivo.

Trazer a arte e a dança para resgatar o valor simbólico que nasce do sentir do corpo, como uma fonte confiável de conhecimento, é promover o pertencimento, num processo de transformação e ressignificação. Sabemos que a linguagem verbal é rica de significados, e que vivemos em um mundo verbal. Mas muitas vezes essa linguagem verbal carece de autenticidade e afetividade. Daí a proposta de trabalhar de maneira conjunta as três metodologias: primeiramente, “preparar” o corpo por meio das vivências de Biodança e Dança Circular, e depois apresentar as possibilidades arteterapêuticas expressivas dos materiais plásticos que vão registrar o mundo interior dançado. Esta abordagem proporciona um ampliar de fala mais coerente e conectada com eixo do sentir-pensar-agir, promovendo progressivamente um encontro mais harmonioso com Ser essencial do participante.

Assim, posso afirmar com convicção que, no Projeto EntreSaberes, Arteterapia, Biodança e Dança Circular estão unidas, tecidas e vivenciadas sob um único propósito: tornar mais humana a experiência da transformação, seja pela arte, pelo movimento ou pela ciência, como uma grande ciranda.

 “Minha ciranda não é minha só, ela e de todos nós...” Música “Minha ciranda” de Capiba

 


  


  

Trabalhos realizado no Espaço Tessitura do Ser – RJ

 

Bibliografia

ALVES, Rubem. Educação dos Sentidos e Mais... . Campinas: Verus Editora, 2012.

ARCURI , Irene Gaeta. Arteterapia e o Corpo Secreto – Técnicas expressivas coligadas ao trabalho corporal. São Paulo, SP: Vetor 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29ª Ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2004.

FREITAG, Vera Lucia; BADKE, Marcio Rossato. Práticas Integrativas e Complementares no SUS – o (re)conhecimento de técnicas milenares no cuidado à saúde contemporânea. Curitiba: Nova Práxis, 2019

RISCAROLLI, Annamaria Bruno. Vida: uma grande teia afetiva e social: Biodanza promovendo a comunicação afetiva nas relações sociais. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Formação de Facilitadora de Biodanza) – Escola de Biodanza Rio-Barra, Rio de Janeiro, 2013.

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Sobre a autora: Annamaria Bruno Riscarolli



Bacharel em Publicidade e Propaganda

Arte-educadora social

Arteterapeuta UBAAT 01/159/1004

Pós-graduada em Arteterapia em Educação e Saúde

Facilitadora de Biodanza RIOB 1302

Focalizadora de Dança Circular

Facilitadora Biocêntrica

Professora de Oficina de Artes em curso de pós-graduação de Arteterapia

Professora de Expressão Corporal/Dança em cursos de formação em Arteterapia

Coordenadora do Espaço Tessitura do Ser (@tessituradoser)