segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O CONTO NA ARTETERAPIA



 Por Sandra Palma -SP

@sandrarteterapeuta

     Os contos, de modo geral têm uma narrativa curta. Focam em poucos personagens e buscam transmitir impressão ou sentido. A estrutura se forma com a apresentação, seguida de um desenvolvimento, um clímax e termina com o desfecho. Eles podem ser realistas, fantásticos, de terror, de fadas, de ficção científica, populares e os infantis. As características são diversas, dentre elas têm os de humor, históricos e psicológicos.

      Os contos, como os mitos, as metáforas, as lendas, as parábolas, as histórias, são utilizadas por décadas como meio de acessar o inconsciente de quem lê ou ouve. Eles têm relação de vivência, pois representam o universo simbólico e os problemas da humanidade. Quando se lê ou ouve simples palavras, podem afetar e trazer à tona memórias, recalques, traumas ou lembranças, ou seja, sentimentos, conflitos e inquietações que permeiam o pensamento das pessoas.

       No setting arteterapêutico, a contação do conto e mais o processo criativo por meio dos materiais, se torna benéfico e transformador, pois há um mergulho no psiquismo, e se torna presente por meio da arteterapia, a qual é projetada na arte em forma de símbolos inconscientes. Estes serão identificados conscientemente, observados, elaborados, ressignificado. O paciente/cliente junto do arteterapeuta, dará voz ao não falado.

      Para enfatizar a importância dos contos há décadas, trago um recorte do artigo: “Redação Psicanalítica Clínica”:

 “Freud... Os contos funcionam como mediadores entre o mundo interno e a realidade externa, permitindo que se explore suas emoções de forma segura... Em sua interpretação dos sonhos, Freud, fala dos contos de fadas para explicar a interpretação dos sonhos.

     O livro de Bruno Bettelheim, psicanálise dos contos de fadas (1760), tornou-se um clássico da abordagem psicanalítica a esses relatos.

     Os analistas junguianos também estudaram os contos de fadas tanto teórico quanto clinicamente. Jung atribuiu grande importância aos contos e disse que nessas histórias pode-se estudar melhor a anatomia comparada da psique.

    A psicoterapeuta analítica e escritora da Alemanha, Marie Von Franz, enfatiza que esses contos são a expressão mais pura e simples dos processos coletivos inconscientes. 

       Segundo Boaventure (1992), sociólogo português, os contos nos mostram como os personagens processaram conflitos da infância e da adolescência e como os grandes problemas da existência e da sabedoria popular os resolvem. Há como que um encantamento, efeito observável e misterioso, vindo de uma linguagem mágica.

     Escrevi para esta Arteterapia o conto “Ibirá e o Ipê”.  A inspiração para escrever foi devido as árvores de Ipê estarem floridas nos meses de junho até começo de setembro, na região sudeste do interior de São Paulo, onde vivo, deixando os dias de inverno alegre com suas diversas cores, começa com a florada do roxo, rosa, amarelo e termina com o branco.  

   Este contoexpressão pode se considerar um conto realista infantil, mas pessoas de todas as idades podem dele participar. Possui narrativa simples, com personagens e cenários que refletem o cotidiano. Tema de resiliência tanto da personagem quanto da árvore. O final feliz pode ser visto como uma representação da busca da criança pela maturidade e, pela resolução e superação de seus conflitos.

 

 

      Conto: “Ibirá e o Ipê”.

      Ibirá era menina magra de cabelos longos, tinha 8 anos, morava com seus pais em uma casa modesta, com paredes bem coloridas, janelas de madeira e na frente da casa tinha um lindo jardim florido; no quintal tinha um pomar, horta, árvores frutíferas e uma grande árvore de Ipê roxo, que florescia nos meses de junho a julho.   

       Ela amava observar a natureza, explorava tudo, principalmente o quintal da casa, antes de ir para a escola, no período da tarde, passeava, observava, imitava e conversava com as plantas, com as borboletas que iam nas flores, com os pássaros que se banhavam em uma fonte de água e o que mais ela gostava era de abraçar e conversar com sua arvore preferida, o Ipê, que deixava os seus dias de inverno mais coloridos.

    Quando ela estava na escola, contava para as crianças que conversava e imitava tudo da natureza. Todos a olhavam e achavam isso muito esquisito. Começaram a se afastar dela e não brincavam mais com ela no intervalo das aulas. Também faziam brincadeiras por causa do seu nome, ela não gostava e ficava muito triste, se sentindo excluída.

    Um dia, no caminho da escola para a casa, Ibirá teve uma ideia e, chegando em casa perguntou para os pais se poderia convidar os amigos na época das férias escolares para um piquenique. Os pais concordaram, os convites foram feitos e eles foram no dia escolhido. Neste mesmo dia, ela perguntou sobre o seu nome, e disse que todos acham estranho, os seus pais explicaram que um dos significados era “árvore” na língua tupi-guarani. Ela deu um lindo sorriso quando soube e não deixou mais ninguém incomoda lá com isso.

      Ibirá ficou tão feliz quando viu as crianças chegando, já foi rapidinho chamando-as para ir ao quintal, pedindo-lhes para que a ajudassem a colher frutos das árvores e tomatinhos cereja da horta para colocar no centro da toalha, debaixo da árvore de Ipê, junto do bolo que fez com mãe. Antes de comer, ela falou:

  - Olhem essa árvore como ela é alta e linda, é uma arvore de Ipê. Existem ipês de várias cores como brancos, amarelos, rosa e o meu favorito é o roxo. Eu o chamo de chuva de flores.

     Vamos imitar que estamos abraçando-a? Em pé, vamos deixar os dois pés bem firmes no chão, corpo reto. Vamos contrair o abdome, olhar para um ponto fixo, colocar as mãos na cintura, dobrar um joelho bem devagar e apoiar um pé na outra perna, colocar as mãos juntas na altura do peito e ir subindo até o alto da cabeça, abrir os braços e ir descendo até chegar na cintura, imitando a copa.

 - Há muitas flores caindo na minha cabeça, vou sentir o seu perfume puxando o ar profundamente pelo nariz e soltando bem devagar pela boca.

- Olhem os beija flores, as abelhas e os pássaros nas suas flores. Vamos imitar os pássaros como se voássemos, abrindo os braços. Eu me sinto livre e vocês?

      O tempo passou rápido, fizeram mímica, brincaram de esconde-esconde, comeram e, de repente, uma chuva bem fininha começou a cair. Alguns adoraram sentir as gotas de chuva caindo no rosto, outros correram para se abrigarem, todos riram e se divertiram muito vendo a natureza em festa, com o dia de sol e de chuva.

      Os pais começaram a chegar para buscá-los e eles foram já contando tudo que fizeram, ficaram felizes com o dia e, a partir de então, não julgaram mais a Ibirá porque ela imitava e conversava com tudo que existe na natureza. Começaram a brincar novamente com ela e a respeitar o seu jeito de ser, pois não somos todos iguais, cada um tem seu modo de ser e estar no mundo e, por isso, está tudo bem.          

   

   Processo criativo em grupo e a ferramenta conto:

    Segundo Charles Fourier, é da nossa natureza psicológica o fato de que todos nós nascemos para viver em grupo. Esse processo de integração contínua é feito por meio de relações humanas, diálogos e comunicação harmoniosa.

    A maneira que desenvolvo a Arteterapia é com grupo diversificado.

    Antes da utilização dos materiais artísticos na arteterapia, os participantes, além da atenção plena na narrativa do conto, exploram também os sentidos e a expressão corporal. Primeiro todos ficam em torno de um tapete redondo de tecido colorido, sentados em cadeiras ou no chão. No centro ficam os diversos materiais artísticos a serem escolhidos pelos participantes. Eles ouvem música  suave da natureza,  It’s Your Day-Yiruma. Fazem respirações profundas e durante a contação do conto, conforme os elementos vão surgindo, fazem a expressão corporal. Quem quiser pode fechar os olhos. Neste, especificamente, foi feito o movimento corporal da árvore, abraçando-a e imitando aves, ou podem imaginar outro movimento de acordo com o conto, conforme o objetivo da arteterapia.

    A escolha dos materiais artísticos para a arteterapia após a contação do conto é de acordo com a necessidade do grupo. Ofereço a prática do desenho cego e, após a escolha dos símbolos, os participantes criam uma paisagem usando os símbolos que surgiram. Também, em outro encontro, apresento o artista impressionista Claude Monet e suas series nos diferentes horários do dia, como por exemplo a serie das “Três árvores”, dentre outras, e pede-se para que desenhem a sua árvore preferida, na estação e horário que desejam e falem sobre ela.

     As árvores são símbolos significativos para se oferecer na arteteterapia, pois os seus ciclos representam vida em movimento. Elas se modificam a cada estação e em horários diferentes do dia e os Ipê são arvores que florescem no inverno e, são simbólicas, pois está ligada à resistência, vitalidade, esperança, à força e à capacidade da natureza de se renovar a cada ciclo.

    Em outro encontro arteterapeutico começo com um diálogo sobre o nome da personagem do conto, Ibirá (Ybyrá), que significa árvore em tupi guarani e, peço que façam um acrostico do nome como forma de explorar os sentimentos e falar de si.

   No final os pacientes/clientes escrevem uma palavra ou uma frase que exteriorize e expresse seus sentimentos.

   O arteterapeuta observa todo o processo artístico, há o diálogo na associação livre e na escuta atenta dos conflitos internos projetados na arte em forma de símbolo. Estes são observados junto ao paciente/cliente para se obter o objetivo da Arteterapia: A transformação psíquica, o autoconhecimento e a  autoestima.

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Sobre a autora: Sandra Palma



Eu sou Sandra Renata de Palma Tegon, graduada em Educação Artística, com Especialização em Arteterapia e Psicanálise.

    A arte sempre fez parte da minha vida, estudei técnicas artísticas desde os meus 13 anos e aos 23 anos comecei a ministrar aulas particulares de porcelana, faiança, tela, vitral, dentre outras e, por um período curto atuei como arte-educadora em escola do Estado. Participei de exposições nacionais e internacionais como Artista plástica, com pintura em óleo sobre tela. Atualmente atuo como Arteterapeuta com grupos no presencial, na cidade de Itatiba  nointerior de São Paulo, onde moro.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O INSTANTE QUE FICA: SOBRE O EFÊMERO NA ARTE



 Por Mônica Ruibal - SP


Recentemente, participei de uma oficina que trazia o tema do efêmero na arte. Foi uma experiência que mexeu profundamente comigo — a ponto de me fazer buscar mais referências e mergulhar nesse universo. Ao vivenciar propostas em que a arte nascia e se desfazia em poucos instantes, percebi o quanto havia de aprendizado e de beleza nesse processo.

Efêmero vem do grego ephemeros, que significa “aquilo que dura apenas um dia”. É o que nasce e se desfaz rapidamente, como o orvalho da manhã ou uma flor que só se abre por instantes. O efêmero nos lembra de que nada é permanente — e talvez, exatamente por isso, seja tão intenso, raro e precioso.

Na arte, o efêmero se manifesta de muitas formas: desenhar na areia e ver o vento ou as ondas apagarem, criar imagens com gelo que se derrete diante dos olhos, riscar o chão com giz sabendo que a chuva logo o fará desaparecer. São obras que não podem ser guardadas ou replicadas, apenas vividas.

Esse caráter passageiro nos convida ao desapego. Não é possível se apegar ao objeto, à permanência ou ao resultado. O que importa é a experiência, o gesto, o encontro entre quem cria e quem testemunha. É a entrega de criar já sabendo que aquilo não permanecerá.

E é justamente aí que a arte efêmera nos ensina sobre presença. Ela nos ancora no instante, convida-nos a viver o agora, sem distrações de passado ou futuro. Porque tudo o que temos, de fato, é o momento presente — e a arte efêmera nos ajuda a percebê-lo com mais clareza e intensidade.

Talvez, por isso, essa forma de expressão nos toque tão profundamente: porque espelha a própria vida. Nós também somos feitos de momentos que se transformam, que passam, que deixam rastros. A arte efêmera não fala apenas da brevidade, mas da potência da presença — e de como podemos encontrar beleza no que não se pode guardar.

Quando penso no efêmero dentro do setting terapêutico, vejo o quanto ele pode ser potente. A arte efêmera abre espaço para que a experiência seja mais importante do que o produto — e isso faz toda a diferença no processo terapêutico.

Um exemplo recente aconteceu no atendimento de uma criança. Ela não queria pintar no papel, mas se deitou no colchonete. Peguei um giz e começamos a desenhar ali, diretamente na superfície. No final da sessão, precisei limpar tudo e percebi: aquele momento foi uma expressão efêmera. A criação se deu no instante e se desfez, mas deixou marcas simbólicas profundas no processo.

Esse caráter passageiro é extremamente fértil em Arteterapia. Desenhar numa bandeja de areia, sabendo que basta um movimento para apagar. Construir uma escultura com objetos soltos, sem colar, permitindo que ela se desmonte. Rabiscar o chão com giz, com a consciência de que a chuva virá. Brincar com água em seringas, deixando-a escorrer ou se misturar em cores que logo desaparecem. Pintar com gelo colorido que derrete. Todas essas propostas trazem o efêmero como experiência criativa e terapêutica.

Na clínica, essas vivências ajudam a trabalhar temas como:

Desapego: aprender a deixar ir e lidar com o não permanente.

Presença: valorizar o aqui e agora, vivendo o momento sem expectativas.

Processo criativo: permitir-se experimentar sem a pressão de um resultado.

Simbólico: reconhecer que mesmo o que desaparece pode ter sentido e transformar.

Na Arteterapia, o efêmero nos lembra de que não é preciso fixar tudo para que algo faça sentido. Muitas vezes, o que desaparece no papel, na areia ou na água permanece dentro de quem viveu a experiência. O traço que se apaga, a cor que escorre, a forma que se desmancha — tudo isso encontra outro lugar para existir: na memória, na emoção, no corpo.

Assim também é a vida. Nada dura para sempre, mas cada instante pode ser pleno de sentido.

A arte efêmera nos convida a acolher a passagem, a transformar o desapego em força e a presença em caminho.

Porque, no fundo, a beleza não está em guardar para sempre — mas em viver verdadeiramente enquanto acontece.

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Sobre a autora: Mônica Ruibal


De São Paulo, graduada em Pedagogia com pós graduação em Arteterapia e Arte Reabilitação

Especialista em autismo, atuando em equipe multidisciplinar.

Em 2024 foi convidada a compor um painel sobre Arteterapia no Tearteiro, maior Festival de Autismo e Arte da América Latina.

 ARTBRAZIL, em Fort Lauderdale, expondo a sua arte e promovendo workshops sociais sobre o tema Autismo. 

Criadora do grupo Arte Autismo onde promove encontros e workshops sobre o tema.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

MUSEUS, GALERIAS E ARTETERAPIA: A PROMOÇÃO DO BEM ESTAR ATRAVÉS DA APRECIAÇÃO ESTÉTICA


Museu de Arte de Chicago, 2024. Acervo da autora.

Por Karine Drumond - MG

A Arteterapia é um campo vasto e dinâmico que utiliza o processo criativo e os materiais artísticos como via de expressão, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. A visita a exposições e museus de arte se apresenta como uma rica, embora por vezes subutilizada, ferramenta complementar no setting terapêutico.

Ir a uma exposição não é apenas um passeio cultural, mas uma imersão em um universo de símbolos e emoções que pode catalisar insights profundos. Meu propósito é explorar como a apreciação estética de obras de arte, a princípio vista como fora do escopo da produção do cliente, pode se integrar e enriquecer o processo terapêutico.

O Diálogo com o campo de atuação

A ideia de que a arte, para além da criação, atua na saúde mental e no bem-estar não é nova e tem ganhado destaque em diversas áreas.

Prescrição Cultural 

A literatura contemporânea em saúde, especialmente em países como a Suíça e no relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019, aponta para a eficácia da "prescrição cultural", onde médicos e profissionais de saúde incluem visitas a museus e galerias como parte do tratamento para problemas de saúde mental e doenças crônicas. Esta abordagem reconhece os benefícios neurobiológicos da exposição à arte, como a liberação de dopamina (hormônio do prazer) e a redução dos níveis de estresse e ansiedade.

Psicologia e "Flow"

O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, com seu conceito de "Flow" (estado de imersão total em uma atividade), sugere que a contemplação de uma obra de arte pode induzir a um estado de plenitude, desconectando o indivíduo de preocupações diárias e promovendo a satisfação profunda, um processo valioso para a saúde mental.

A Perspectiva Junguiana

Na psicologia analítica, que fundamenta muitas abordagens arteterapêuticas, Carl Jung defendia que a arte é uma expressão do Inconsciente Coletivo. A visita a museus permite ao cliente dialogar com uma vasta gama de símbolos arquetípicos, presentes nas obras de arte de diferentes culturas e épocas. Essa conexão simbólica pode despertar emoções, memórias e reflexões sobre aspectos profundos de si mesmo, facilitando a elaboração e a integração de conteúdos psíquicos.

Possibilidades na Arteterapia

Em Arteterapia a visita a exposições pode ser utilizada de forma intencional para a ampliação do Repertório Simbólico. A exposição a diferentes estilos, temas e linguagens artísticas pode oferecer ao cliente novas "palavras" visuais, expandindo seu leque de possibilidades para a expressão no ateliê. Uma obra pode servir como um catalisador, um ponto de partida para a sua própria criação.

Ao apreciar uma obra, o cliente pode projetar sentimentos e conflitos internos na imagem. O Arteterapeuta pode guiar a observação com perguntas como: "Qual obra te toca mais e por quê?", "Que emoção essa cor ou forma te evoca?", "Que história essa imagem te conta?". A obra de arte de um artista consagrado, ao ser apreciada, atua como um "espelho" neutro, permitindo ao cliente falar sobre si indiretamente.

Ver que outros seres humanos, através da história e de diferentes culturas, expressaram temas como dor, alegria, transformação ou solidão, pode gerar um sentimento de universalidade da experiência humana. Isso pode ser particularmente terapêutico para quem se sente isolado em sua experiência.

Além disso, a apreciação estética estimula a imaginação, a intuição e a capacidade de fazer associações. Ao sair do seu ambiente habitual e se deparar com o inesperado da arte, o cliente é convidado a exercitar a sua flexibilidade psíquica e a sua capacidade de ressignificação.

Em suma, a visita a museus e exposições em Arteterapia não é sobre ensinar história da arte ou julgar a estética. É sobre criar um encontro mediado e sensível entre o mundo interno do cliente e o vasto acervo de expressões da alma humana. É um convite para que o cliente se aproprie da arte — e dos seus símbolos — como um recurso de promoção da saúde mental e um portal para o autoconhecimento.


Referências


Ir a museus melhora a saúde mental. Somos Newa, [S.d.]. Disponível em: https://somosnewa.com.br/ir-a-museus-melhora-a-saude-mental/. Acesso em: 13 out. 2025.

MANTOVANI, Cecile; BALIBOUSE, Denis. Arte como terapia: médicos suíços estão prescrevendo visitas a museus. Medscape, 20 mar. 2025. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6512477. Acesso em: 13 out. 2025.

Museu como terapia? Básico365, 24 mar. 2025. Disponível em: https://www.basico365.com.br/post/museu-como-terapia. Acesso em: 13 out. 2025

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Sobre a autora: Karine Drumond




Karine Drumond tem uma formação em Design, Arte Educação. Pós graduanda em Arteterapia pelo INTEGRATE - MG. Com sólida experiência facilitando processos criativos para mulheres e crianças entre 7 e 14 anos. Atuou como pesquisadora e professora em Design na PUC Minas por mais de 10 anos. Recentemente atuou na ONG Projeto Reconstruir, utilizando a arte como ferramenta de expressão e transformação social. Atualmente, está à frente do EquilibrArte, projeto em construção que pretende promover vivências que integram yoga, arteterapia e autoconhecimento para resgatar o bem-estar e a criatividade pessoal e coletiva.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA E A ARTETERAPIA

 


Casa Estrelinha - Ilha do Ferro- Alagoas

Regina Célia Rasmussen – SP

@espacocrisantemo1

Em maio de 2025, participei de uma residência artística em Ilha do Ferro, um pequeno povoado de Pão de Açúcar, Alagoas. A experiência despertou em mim sensações e emoções adormecidas, como se minha alma fosse novamente convidada a respirar. Foram dias intensos, em que o olhar, o paladar, o corpo e a mente foram provocados e atravessados por novas descobertas.

A residência artística tem como propósito deslocar o artista para um contexto cultural distinto, oferecendo vivências capazes de nutrir e desafiar a criatividade. É um espaço-tempo em que o cotidiano se rompe e dá lugar à abertura: para o encontro com o outro, com a cultura local, com a natureza, com  o fazer artístico e, sobretudo, consigo mesmo.

Ilha do Ferro revelou-se para mim como uma viagem por um túnel do tempo. Foi como retornar à infância, a um período em que não existiam celulares, em que os perigos não eram tão iminentes e a vida parecia seguir em um compasso mais lento, com dias que se alongam no tempo Kairós.

O povoado, com cerca de 500 moradores, abriga em quase um quarto de sua população artistas populares. São homens e mulheres dedicados às mais diversas linguagens expressivas — e até ao mobiliário criativo — que carregam a marca singular da comunidade.

Éramos cinco residentes: três artistas visuais, uma escritora e eu - arteterapeuta criativa.

O coordenador da residência artística, Roger Basseto, é artista contemporâneo e educador, que valoriza o processo criativo. Ele explora cadernos (sketchbooks) e variadas técnicas em seu ateliê - Estúdio Pop - onde também oferece workshops.                                    

                                                  

 Roger Basseto

A casa que nos acolheu às margens do Rio São Francisco já se apresentava como um templo sagrado da arte local. Suas paredes e cômodos apresentavam símbolos do povo ribeirinho — esculturas, pinturas, bordados e objetos que transbordavam histórias. Esse ambiente, repleto de criação, era em si um convite à percepção e à imaginação. 




As manhãs se tornaram um convite para o fazer criativo. Cada gesto parecia dialogar com a paisagem e com a energia do lugar. Os almoços eram nas casas de moradores, momentos em que pude conhecer famílias, construir vínculos e ouvir narrativas que misturavam memórias ancestrais com crenças no futuro.

À tarde, seguíamos em visita aos ateliês, onde os artistas nos recebiam generosamente, apresentando seus processos criativos e as obras que expunham à venda — hoje, o grande motor da economia do povoado.

Entre tantas descobertas, chamou-me especial atenção o bordado típico da Ilha do Ferro, conhecido como Boa-Noite, caracterizado pela técnica de desfiar o tecido para formar delicados desenhos geométricos e florais com fios. Seu nome deriva de uma planta típica da região, e ele é repleto de significado, como se cada ponto guardasse a memória das mãos que o tecem e a identidade de um território.

Durante os dez dias em Ilha do Ferro, realizamos dois passeios que ampliaram ainda mais nossa experiência. Visitamos a cidade de Pão de Açúcar, com sua feira típica do Nordeste, e navegamos pelo majestoso Rio São Francisco até Entremontes — onde grande parte das mulheres se dedica ao bordado, perpetuando uma tradição delicada e ancestral — e até Piranhas, cidade marcada pela memória do cangaço, outrora conhecida por exibir as cabeças dos cangaceiros.

Ao cair da noite, quando o sol se despedia nas águas do Velho Chico e os pássaros faziam suas algazarras: íamos nos reunir com moradores e alguns poucos turistas no bar O Macumba. Sob o comando de André Dantas, o espaço transformou-se em uma verdadeira exposição permanente das artes e das histórias da Ilha do Ferro e de suas redondezas. Ali, entre conversas, risos e olhares curiosos, seguíamos desenhando e criando, embalados pelos estímulos visuais e pelo encantamento das histórias dos “Encantados”.

Senti fortemente o prazer da simplicidade: o sabor de um peixe fresco, o encontro das crianças em jogos e brincadeiras às margens do rio, o bordado realizado vagarosamente pelas mãos das mulheres da comunidade. Tudo me lembrava que a vida pode ser plena no essencial, sem a pressa e o excesso que tantas vezes nos afastam de nós mesmos.

Essa simplicidade, tão presente na Ilha do Ferro, ecoou dentro de mim como um convite à leveza. Percebi que, assim como na arteterapia, não é a complexidade do recurso que importa, mas a autenticidade do gesto - seja em um risco traçado no papel ou em um ponto bordado no tecido. Cada experiência carregava potência de sentido e me devolveu a alegria de estar no aqui e agora. Como afirma Zinker (2007 p.20 e 21):

                                                 “O processo criativo é terapêutico porque nos permite expressar e examinar o conteúdo e as dimensões de nossa vida interior. A vida tem a medida da plenitude que nos é possibilitada pela variedade de veículos que encontramos para concretizar, simbolizar e expressar de inúmeras maneiras todas as nossas experiências.”

Na convivência com os moradores, fui tocada pela maneira como vivem com dignidade e beleza, mesmo diante das limitações materiais. Esse olhar me fez refletir sobre o quanto podemos nos nutrir do simples — e como a arteterapia, em sua essência, também é um exercício de reencontro com aquilo que é essencial em nós: o processo criativo, o vínculo humano, a expressão do que pede voz.

Na Ilha do Ferro, percebi, mais do que nunca, que a arte não é apenas produção, mas modo de viver. Manifesta-se no ato singelo de bordar, na escultura que nasce da madeira, nas sentadas preguiçosas na porta de casa ao entardecer e na expressão de quem compartilha sua história. Essa experiência me mostrou que a arteterapia também se constrói assim: na confluência entre a vida e a criação.

Voltei trazendo comigo não apenas boas lembranças, mas a certeza de que o essencial é o que sustenta nossa humanidade.

Acredito que seja justamente isso que uma residência artística, assim como o setting de arteterapia, nos oferece de mais valioso: a oportunidade de experienciar um espaço em que arte e vida se encontram. É nesse encontro - na contemplação, no fazer artístico, no contato com o outro, no coletivo e na simplicidade -  que reside a verdadeira potência da transformação.

Referências

BASSETO, Roger - https://www.instagram.com/rogerbassetto/

ILHA DO FERRO - https://www.instagram.com/_ilhadoferro/

STUDIO POP - https://www.instagram.com/pop_studiopop/

ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. .ed. - São Paulo: Summus Editorial



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Sobre a autora: Regina Célia Rasmussen



Bordadeira

Bacharel em Pedagogia (Faculdade de Educação USP)

Pós graduada: Orientação Educacional, Supervisão Escolar, Gestão Escolar, Psicopedagogia e Arteterapia.

Gestora do Espaço Crisântemo - @espacocrisantemo1