Por Milena Medeiros - RJ
O conceito de Ileísmo, derivado do latim ille (aquele) e o
sufixo -ismo, ganhou destaque nas práticas
terapêuticas a partir dos anos 2000, especialmente nas abordagens narrativas em
que o foco é reescrever ou reinterpretar a própria história em terceira pessoa.
Desenvolvida na década de 1990, a
Terapia Narrativa visa distanciar o indivíduo de seus problemas, permitindo que
ele os perceba como algo separado de si. Esse distanciamento facilita a releitura
da própria história, proporcionando uma nova perspectiva sobre as experiências e
auxiliando na construção de uma identidade mais forte e integrada.
Conforme
White e Epston (1990, 2007), na perspectiva narrativa, não há uma única maneira
de descrever uma experiência. Ao narrá-la, certos aspectos ganham mais
destaque, o que resulta em uma narrativa dominante que pode limitar as ações e
a visão de identidade da pessoa, muitas vezes obscurecendo outros elementos que
poderiam ajudar a construir narrativas alternativas (Ribas, Lion & Souza,
2024).
Embora o Ileísmo não seja amplamente abordado como uma técnica
isolada, ele é altamente eficaz em processos de autoconhecimento e na gestão de
experiências dolorosas. Em abordagens como a TCC, o uso da terceira pessoa
ajuda o indivíduo a observar seus pensamentos e emoções de forma mais clara,
promovendo maior controle emocional e reduzindo a reatividade. Na psicologia Positiva,
estudos mostram que a técnica pode reduzir a ansiedade, aprimorar a tomada de
decisões e ampliar a estabilidade emocional. O uso dessa técnica não se limita
à terapia – em contextos educativos com crianças, o Ileísmo facilita o
entendimento e nomeação das emoções, criando um distanciamento saudável para
lidar com frustrações. Ela também aparece na literatura, onde o discurso
indireto cria um distanciamento emocional que também permite a reinterpretação
das vivências; e na autoterapia, facilitando o processamento das emoções e
promovendo uma nova compreensão sobre si mesmo.
Na Arteterapia, o Ileísmo
surge como um recurso simbólico e afetivo de distanciamento
emocional, favorecendo a autoaceitação, a reorganização dos sentimentos e o
fortalecimento da relação interna, com foco na redução da
autocrítica. Na vertente da “Arteterapia Expressiva”, a técnica do
Ileísmo se expande além da narração em terceira pessoa para incluir não apenas
materiais artísticos, mas também formas de expressão corporal como gestos,
movimentos e elementos do teatro. Segundo a americana Cathy
Malchiodi, arteterapeuta, terapeuta em artes expressivas e conselheira em
saúde mental, o uso combinado de recursos expressivos e do corpo como
ferramenta simbólica amplia a capacidade de externalização das emoções
e vivências. Em The Art Therapy Sourcebook (2006), a
autora destaca que a criação artística oferece ao indivíduo um espaço
simbólico seguro, permitindo o distanciamento necessário para reorganizar sua
narrativa pessoal de forma mais leve e construtiva.
“A
criação artística, através de formas como a narrativa ou o desenho, pode ser
usada para reescrever e reinterpretar as experiências de vida, criando uma
distância simbólica que possibilita a cura e a reconstrução da identidade.”
Cathy Malchiodi, "The Art Therapy Sourcebook" (2007).
O
distanciamento narrativo é uma ferramenta terapêutica valiosa, mas seu uso
inadequado, especialmente em contextos traumáticos ou transtornos
dissociativos, pode prejudicar a integração emocional e afastar a pessoa da
realidade, dificultando o enfrentamento das emoções. Quando mal orientado, pode
gerar alienação emocional e prejudicar o processo terapêutico. Embora o Ileísmo
seja eficaz em muitos contextos, seu uso excessivo ou dissociado pode estar
relacionado a distúrbios do pensamento, como na esquizofrenia, em que a
dissociação não é controlada, pois há uma perda de contato com a realidade. A
linha entre distanciamento saudável e dissociação patológica é muito tênue,
dependendo de como a técnica é aplicada e da intenção terapêutica. Por isso, é
fundamental usá-la com sensibilidade, respeitando os limites individuais ou de
grupo para que seja um recurso promotor da saúde e do fortalecimento da
identidade. Contexto e intenção são essenciais.
Com base
nessa premissa, o caso a seguir ilustra a aplicação do Ileísmo em um grupo de
mulheres no ambiente corporativo. O uso da técnica ocorreu em um momento
oportuno, ao final de um ciclo de encontros já consolidados, quando o vínculo
de confiança entre as participantes, dentro do processo, já se encontrava
fortalecido. Esse contexto proporcionou um espaço seguro para que elas
compartilhassem conquistas e desafios de forma reflexiva. O distanciamento
emocional oferecido pelo Ileísmo permitiu observar as experiências sob uma
perspectiva externa, favorecendo a reflexão sem a sobrecarga emocional do
momento presente.
Durante o
estágio realizado em 2019, um dos encontros mais significativos foi justamente
o encerramento desse ciclo arteterapêutico. A proposta da sessão foi simbolizar
a Jornada de Heroínas, utilizando o ritual de coroação como forma de resgatar
os aprendizados e mudanças vivenciadas ao longo do processo. A técnica do
Ileísmo foi cuidadosamente integrada ao processo grupal, respeitando o momento
evolutivo do grupo e garantindo que a atividade ocorresse de forma segura.
O grupo era composto por cinco participantes: Atena, Hebe, Héstia, Íris e Afrodite. A sessão teve início em um ambiente externo, acolhedor e descontraído, acompanhado por um lanche artesanal que contribuiu para a criação de um clima afetivo. Em seguida, foi proposta uma atividade de contação de histórias, na qual cada integrante narrou sua trajetória pessoal em terceira pessoa. Esse distanciamento narrativo possibilitou que experiências difíceis fossem acessadas de maneira mais leve e reflexiva, favorecendo a elaboração emocional sem que as participantes fossem consumidas pela dor.
As histórias compartilhadas foram intensas e marcantes. Atena, que estava prestes a deixar o grupo, celebrou sua aprovação em um concurso público e sua mudança para uma nova cidade com a filha, observando com particularidade o que a participação no processo implicou em sua nova visão de vida “liberdade de escolha, de ação, leveza na alma e certeza de que posso me sentir mais feliz”. Héstia trouxe à tona a dor pela perda recente da mãe “tudo mudou após a morte de SUA mãe” sendo acolhida com sensibilidade pelo grupo. Íris, inicialmente reticente e emocionada, conseguiu expor e compartilhar sua história, sendo aquela a primeira vez que expressou algo sobre sua vida particular. Afrodite, que não havia finalizado a confecção de sua coroa na sessão anterior, trouxe-a pronta, encerrando simbolicamente seu processo junto às demais e HEBE, corajosamente se expressou com emoção e firmeza. As histórias de vida revelaram trajetórias marcadas por grandes perdas familiares, financeiras, ausência de moradia e dificuldades na relação com a figura materna. Essa sessão foi especialmente catártica e comovente, conforme relataram as próprias participantes. Houve profunda comoção por parte das ouvintes a cada narrativa.
Em seguida, cada participante foi convidada a se dirigir até um
trono simbolicamente decorado, representando o reconhecimento de sua jornada de
autoconhecimento e conquistas. Nesse momento, elas declararam seus desejos e
intenções para o futuro, em um gesto de autoafirmação e fortalecimento pessoal. Os símbolos utilizados – a coroa , o
manto branco de renda e seda, e o cetro improvisado a partir de uma baguete da
mesa do café, reforçaram a autonomia e a potência de cada mulher. Apesar da
simplicidade dos elementos, o impacto foi profundo, contribuindo para que as
participantes se reconhecessem como protagonistas de suas próprias histórias.
Esse relato ilustra como a técnica do Ileísmo, aliada a
rituais simbólicos, pode ser valiosa dentro da Arteterapia. Mais do que
narrar experiências, trata-se de oferecer meios expressivos e simbólicos que
favoreçam o distanciamento saudável, o reinventar de vivências e o
fortalecimento emocional — especialmente em contextos grupais, com foco na
reconstrução do sujeito a partir de sua própria história.
Referências
Ribas, J. C., Lion, C. M.,
Souza, L. V. (2024). Práticas Narrativas no Brasil: Panorama e Difusão. Psicologia:
Ciência e Profissão, 44, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003269019
MALCHIODI,
Cathy A. The art therapy sourcebook. New York:
McGraw-Hill, 2006.
Sobre a autora: Milena Medeiros
Arteterapeuta AARJ1122
Com mais de 15 anos de experiência em Gestão de Gente e Negócios no mercado Corporativo, hoje atua com a Arteterapia Clínica e Empresarial
Coautora e Coordenadora do Projeto de Atendimento Social Não Palavra Arteterapia
Pós Graduada em Arteterapia pela Clínica Pomar RJ
Certificada pela Escola Humana de Negócios em Arteterapia nas Empresas
Certificada em Visão Sistêmica Organizacional – Systems Team Awarebess – Mundo VUCA – Metaforum Internacional SP
Certificada em Visão Sistêmica com base psicoterapêutica de Bert Hellinger Instituto Luz do Ser/SC e MG
Practioner em PNL pelo Instituto Espaço SER/SC
Certificada pela UNAT- Brasil – 101 Introdutório Oficial de Análise Transacional. Abordagem psicológica de Erick Berne.
Gestão em PMES – Universidade Metodista de SP
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