segunda-feira, 18 de março de 2024

A RELAÇÃO ARTETERAPEUTA-MATERIAL

 

Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

@naopalavra

 

Compreendemos que, dentre as modalidades terapêuticas, a Arteterapia possui uma especificidade: a entrada do terceiro elemento, o material e tudo o que ele envolve. Assim, na dinâmica do setting arteterapêutico forma-se uma tríade: paciente-arteterapeuta-material.




 

Parte essencial do nosso estudo se dá na observação do fenômeno que se constela entre paciente e material. Entretanto, a via da relação entre o material e o arteterapeuta também se dá como um eixo estruturante desse profissional. Considerando que o arteterapeuta pretende se colocar como facilitador do processo criativo de outros experienciadores, sabemos da importância de que ele conheça e seja capaz de manejar bem as múltiplas materialidades possíveis, para que possa oferecer cada uma delas com conhecimento técnico bem como de instrumentalizar os experienciadores com muita ou pouca experiência criativa. Entretanto, como a Arteterapia se constitui como uma formação que recebe pessoas com diversas formações anteriores, muitas vezes a vivência do próprio processo criativo e a construção de intimidade com os materiais são, muitas vezes, construídas a partir do curso. E assim, deve seguir em desenvolvimento enquanto o profissional se pretender atuar na área.

 

Essa é uma temática que venho ecoando e escrevendo, para que possa permanentemente lembrar ao arteterapeuta de sua importância. Esse é um tema que por vezes parece óbvio, mas justamente não raras vezes, o óbvio sai do nosso campo de visão e ele se perde. E quanto ao tema mencionado, observo no meu cotidiano como supervisora de estudantes e arteterapeutas formados o quanto a experiência pessoal com a materialidade, com a criatividade e com as imagens produzidas fazem falta no cotidiano do arteterapeuta.

 

Para corroborar com essa pesquisa, hoje contemplaremos as palavras de Angela Philippini em seu livro “Cartografias da coragem”, mais especificamente o capítulo “O arteterapeuta: acompanhante especial”.

 

Segundo a autora:

 

Favorecer a expressão e expansão das atividades criativas de cada cliente através do convívio terapêutico será facilitado também pela construção e ampliação das próprias vivências criativas do arteterapeuta. (PHILIPPINI, 2013, 25)

 

Contudo, esse se mostra um desafio desde o início da formação:

 

Esta é, certamente, um das primeiras dificuldades no trabalho de formação de novos arteterapeutas pois muitos chegam ao processo com pouca ou nenhuma intimidade com a arte e suas manifestações. E se uma das tarefas do arteterapeuta é resgatar as possibilidades criativas de seus clientes, mantendo um convívio terapêutico diário com o processo criativo, é fundamental que possa construir e ampliar suas próprias vivências criativas. (PHILIPPINI, 2013, 23-24)

 

Formar-se em Arteterapia é mais do que um aprendizado. A verdadeira formação se inicia com a experiência do “fenômeno” proporcionado pela vivência arteterapêutica. Todo arteterapeuta reconhece, por teoria e prática, que o fenômeno arteterapêutico deve acontecer primeiro em si. Somente através da experiência será possível associar o fenômeno com os embasamentos teóricos. Somente a partir da união desses recursos o arteterapeuta poderá fazer o bom convite para que outro experienciador se aventure ao desbravar de uma nova caminhada expressiva e terapêutica, oferecendo-lhe segurança para que encontre seus próprios recursos e caminho. Nas palavras de Philippini:

 

Para transformar-se em observador presente, ativo, empático companheiro nesta aventura do construir-se e transformar-se pela via das imagens, precisará o arteterapeuta do contínuo trabalho de auto desvelar-se expressivo do ateliê. Precisará do aprofundamento da pesquisa em sua linguagem plástica particular, a qual deve ser reciclada e renovada continuamente, para que assegure uma comunicação fluente através de estratégias expressivas diversas. Deste modo, estará efetivamente contribuindo para amenizar bloqueios no processo criativo de seus clientes e facilitando que estes possam encontrar e/ou construir suas próprias alternativas de reconhecimento e transformação através da sua produção imagética. A necessária contemplação advêm do contínuo estudo no modelo teórico escolhido para nortear sua prática terapêutica e do persistente trabalho de autoconhecimento em seu próprio processo terapêutico. (PHILIPPINI, 2013, 26)

 

É importante destacar que a autora descreve como imperativo à sustentação do arteterapeuta a terapia pessoal, e na mesma proporção da experiência pessoal com a arte:

 

[...] é inaceitável que um arteterapeuta, ou qualquer outro terapeuta, aventure-se ao trabalho terapêutico sem o essencial suporte de sua própria terapia, seja individual ou grupal.

 

Do mesmo modo, se não criar continuamente, não estará apto a desbloquear o processo criativo de ninguém e tão pouco poderá ser produtivo como terapeuta, se não estiver em contínuo processo de ver-se, rever-se, ouvir-se, e desvelar-se [...]  (PHILIPPINI, 2013, 26)

 

Compreendendo a Arteterapia como um procedimento terapêutico baseado na psicologia profunda e nos caminhos do inconsciente, constatamos ser estrutural que o arteterapeuta também se dedique a sua própria produção de imagens e diálogo com seu próprio universo simbólico para investir em sua estrutura pessoal  e diferenciar-se da produção simbólica de seu paciente, o que por vezes mostra-se desafiador:

Em contrapartida, o papel de acompanhante do processo arteterapêutico assegura o privilégio de ser estimulado por singulares processos de criação, ser instigado e sacudido por imagens fascinantes e surpreendentes, e também, eventualmente, ser confrontado por formas as quais poderão ser vividas como difíceis e ameaçadoras.

 

Acredito que estas são boas razões para que o arteterapeuta cuide de estar em bons termos com suas próprias imagens internas, o que poderá ser favorecido pela frequência regular a um ateliê ou oficina de criação onde possa pesquisar e desenvolver sua própria linguagem expressiva. (PHILIPPINI, 2013, 24)

 

Tenho defendido que é nesse ponto que se encontra o potencial de constratransferência específica do arteterapeuta. No texto “O arquétipo do curador ferido e o arteterapeuta” (2023) descrevo:

E aqui reside uma das especificidades mais caras do arteterapeuta: sua contratransferência aparece quando este projeta seu próprio universo simbólico no processo criativo e nas formas produzidas por seu paciente [...] Enfim, é essencial que o arteterapeuta esteja de posse da sua relação pessoal com seus símbolos recorrentes, seus gestos, traços e cores, os materiais e linguagens que lhe acessam ou provocam resistência, para assim evitar que seu universo simbólico arteterapêutico seja projetado nas imagens, processos, materialidades, temáticas, e consignas trabalhadas com seus pacientes. 

É importante destacar que o arteterapeuta lidando com conteúdos “não palavra”, o potencial projetivo se dá de forma mais sensível e ampliada. O antídoto para evitar a contratransferência imagética está na manutenção de um espaço e tempo separado para que o arteterapeuta permaneça em contato pessoal com as materialidades, seu processo criativo e produção de imagens pessoais. (MORAES, 2023)

 

Retomando o início de nossa reflexão, a Arteterapia como um procedimento terapêutico que se diferencia por basear-se na tríade paciente-terapeuta-material para fins clínicos, possui suas especificidades e singularidade. Faz-se importante que o arteterapeuta reconheça a unicidade dessa prática tão potente e não se deixe cair em sutis convites para a desconexão com sua essência. Philippini recorda que:

Allen (1992) aponta os riscos de síndrome da clinificação que pode acontecer aos arteterapeutas, comprometendo sua produção artística [...] arteterapeutas são terapeutas muito singulares, por utilizarem a arte como mediadora e suas atividades clínicas e seu bom desempenho depende fundamentalmente da manutenção e exercício constante de sua própria prática expressiva...

 

Assim, que os arteterapeutas apostem na diferença e não na tentativa improdutiva de semelhança a outras abordagens clínicas. A produtividade da Arteterapia reside basicamente na possibilidade de facilitar caminhos expressivos singulares para cada cliente e o fluir neste processo vem da prática, experimentação e estudo de modalidades expressivas diversas. Evitando cair na armadilha de ter que unificar a linguagem ou utilizar práticas homogeinizadoras, cabe zelar pelos territórios de criação, sejam internos ou externos. (PHILIPPINI, 2013, 24)

 

A Psicanálise, e por decorrência a Psicologia, orientam que a sustentação de um bom analista/psicoterapeuta deve ter como base um tripé: a terapia pessoal, a supervisão e o estudo teórico individual e grupal. Tendo em vista a especificidade da Arteterapia desenvolvida nesse texto, tenho escrito sobre a “quarta perna” que sustenta o arteterapeuta: a experiência pessoal com os materiais, o processo criativo e produção de imagens. Assim, construímos “o quadripé” que sustenta o arteterapeuta representado pelo esquema abaixo:

 


Esquema desenvolvido pela autora

Com a produção de textos sobre esse tema e outras especificidades da Arteterapia pretendemos cooperar para que o arteterapeuta se reconheça naquilo que nos diferencia de outras modalidades terapêuticas, que se sinta seguro em atuar com a técnica arteterapêutica, reconhecendo a grande potência contida na Arteterapia em si. Nosso desejo é que:

Assim, em Arteterapia, que se possa apostar naquilo que nos distingue como terapeutas, a promoção de saúde por meio da Arte e do exercício constante na prática expressiva. Para tanto, cabe evitar algumas armadilhas, cuidando de manter bem protegido e bem cuidado o próprio território de criação. E, sobretudo, aprendendo a criar mecanismos de livre expressão, fortalecendo a própria autonomia criativa.(PHILIPPINI, 2013, 25)

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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