Por Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com
@mercedesdu.arteterapia
@baoba.arteterapia
Esse
é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do
tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses
arquétipos. Nesse artigo, trago o Arcano IX, o Eremita, em diálogo com parte da
biografia e arte de Frans Krajcberg, assim como com a técnica artística de
Steve Spazuk. Aqui não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o
que seria inalcançável, tampouco explanar a diversidade da biografia, obras ou
técnicas dos artistas. O escopo é trazer um recorte que privilegie as
afinidades entre arquétipo e artista.
O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para a ampliação do repertório arteterapêutico.
O Eremita – Arcano IX
Tarô de Marselha
Tarô de Smith e Waite
O
Eremita, ou Ermitão, nos convida a um movimento de pausa e introspecção. Ele se
retira da sociedade, do mundo, para olhar para si, ou mesmo para o mundo, sem
influências externas. Ele precisa encontrar a sua verdade. Recolher do mundo
as projeções e olhar para suas sombras.
Com o seu lampião, o Eremita ilumina esse caminho de busca, e também de quem
mais, por ventura, seguir seus passos. Como andarilho, lança mão de um cajado
que o ajuda não apenas a se apoiar, mas também, como sua extensão, a tatear o
solo e a se certificar da firmeza do terreno por onde passa.
Arquétipo
do velho sábio, o Eremita nos fala do tempo como viabilizador da experiência e
do conhecimento. Como buscador que é, o velho olha para sua esquerda, no tarô
de Marselha, em direção ao passado, e observa todo o caminho que percorreu até
então. Pondera e compreende que o verdadeiro sentido de sua existência sempre
foi o de iluminar.
No
tarô de Smith e Waite, o Eremita está em cima da neve, num lugar gélido, sem
vida, mas sua túnica o protege do mau tempo, e seus tons cinzas e ausência de
adornos dizem de seu aspecto frugal. Ele está longe do aconchego que o mundo
ilusório e passageiro pode lhe oferecer, e lida de forma crua com toda a sua
realidade interior. Nessa imagem, o Eremita olha para baixo e para dentro.
No
tarô de Marselha, sobre a base amarela ou dourada, que pode ser considerada uma
plantação de trigo, o velho sábio aponta para os ciclos da natureza, da
vida-morte-vida. Especialmente quando nos deparamos com as cartas dos tarôs de
Smith & Waite e de Marselha, lado a lado, nos damos conta desses processos
naturais, encaminhados pelo tempo, que o Eremita nos fala. Enquanto na primeira
carta temos o frio e a ausência de vida, na última temos o calor e a vida da
vegetação amarelo-dourada. Não por acaso, os inícios e fins de ciclos podem ser
representados pelo próprio número nove que encarna o Eremita. O número nove é o
último número, do sistema decimal, que contém um único algarismo, o que fala de
um processo de finalização que culmina com o número dez, prenunciando a
abertura de um (re)começo.
Assim,
apesar de seu conhecimento acumulado ao longo da jornada, o Eremita traz o
cansaço do tempo e a necessidade de renovação. Por isso nos fala de uma crise
vivenciada e da importância do recolhimento para iluminar e aprender, no tempo
presente, com os passos dados, ao mesmo tempo que lança luz sobre os passos
vindouros.
Frans Krajcberg: o Eremita da arte
contestação
Para
nos aproximarmos um pouco mais do arquétipo do Eremita, proponho um diálogo com
o artista plástico polonês Frans Krajcberg (1921-2017), que, como veremos,
possui uma trajetória afinada com o arcano em questão. Em diferentes períodos Krajcberg se isolou na
natureza para se inspirar, e fez da sua arte farol de iluminação de sombras sociais.
Frans
Krajcberg foi um artista judeu, naturalizado brasileiro, pintor, gravador,
escultor e fotógrafo, mas antes de ser conhecido como tal, vivenciou a barbárie
humana na Segunda Guerra Mundial, quando serviu ao exército soviético e perdeu
toda a sua família para o Holocausto. Krajcberg, sozinho, em 1948, vem para o
Brasil em busca da beleza natural que poderia amenizar suas dores de guerra.
Vivendo no Brasil até o final de sua vida, o artista se deparou não só com a exuberância da biodiversidade brasileira, como a da Amazônia, mas também com a violência contra a natureza e as populações indígenas. Impactado com as queimadas e desmatamentos, Kracjberg passa a transformar as evidências do descaso humano, como os cipós e troncos de árvores destruídos pelo fogo, nas florestas brasileiras, em matéria-prima para sua arte. Assim, conhecido como realizador de uma arte-contestação, e também parte da proposta artística que originou o Manifesto do Rio Negro (1978)[3], o artista denuncia, através da lanterna que é a sua arte, feridas sociais que pouco enfrentamos.
Frans
Krajcberg se isola, ou melhor, busca uma reintegração à vida, à natureza, seja
numa gruta em Ibiza (Espanha), na década de cinquenta; numa caverna na região
de Itabirito, em Minas Gerais, nos anos sessenta, ou num sítio em Viçosa,
também no estado de Minas, onde foi morar em finais da década de sessenta até o
fim de sua vida. Em sua última morada plantou mais de dez mil mudas numa região
com resquício da mata atlântica, construiu casas em árvores, e buscou, com sua
obra artística, ensejar reflexões sobre os processos de vida e morte, e,
especialmente, sobre nossa responsabilidade com o mundo e, consequentemente,
com nós mesmos:
Eu estou fazendo tudo com meu trabalho para mostrar a minha revolta, se possível para sensibilizar um pouco mais gente para compreender que a vida é um conjunto. Tudo que tem neste planeta tem direito de sobreviver e existir. Porque a gente não pode destruir a terra quando a gente precisa dessa terra para sobreviver. A gente não pode, digamos, se fechar cada vez na cidade e viver em um bunker fechado. A única consciência a ter sobre a natureza e a vida é pela televisão e os jornais. Mas é lá, quando você sai desse bunker, [que] você descobre a vida. A gente está perdendo até a sensibilidade de nós mesmos. Isso é muito grave para nossa existência. Precisamos parar com isso. Precisamos fazer uma análise de nós mesmos. Como continuar vivendo em harmonia com esse planeta. (Kracjberg em depoimento no documentário de Regina Jehá, Frans Kracjberg: Manifesto. Grifo meu.)
Prática arteterapêutica
Para inspiração da nossa prática, na oficina sobre o Eremita da Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, lançamos mão de uma técnica incomum utilizada pelo artista plástico contemporâneo, canadense, Steven Spazuk. Conhecido como o artista do fogo, Spazuk faz uso desse elemento para compor suas obras. Ao aproximar o fogo do papel, vai imprimindo marcas com a queima superficial do papel e com a fuligem produzida pelo fogo.
Se
depois de conhecermos Frans Krajcberg, ao praticarmos a técnica de Spazuk, num
primeiro momento, podemos ficar desconfortáveis por lembrarmos das queimadas e
de que para os papéis existirem, e serem queimados, precisamos derrubar algumas
árvores, ainda que reflorestáveis; num segundo momento, podemos perceber que todo
desconforto, ou crise, é oportunidade para iluminarmos nossas sombras, como é o
caso dessa relacionada às questões ambientais que pouco enfrentamos, e que dizem
respeito à nossa própria nutrição e sobrevivência no mundo enquanto espécie. E
não apenas à nossa.
O
fogo, portanto, é esse elemento que pode iluminar, aquecer, auxiliar a
construção de uma obra de arte ou simplesmente destruir. Nesse experimento que
realizamos, nos deparamos com a necessidade do controle do fogo para criarmos e
não destruirmos, assim como com a natureza intuitiva, iluminadora do fogo,
encarnada pelo Eremita que, com seu lampião, ilumina não apenas as sombras
sociais, mas também as pessoais, as quais sempre estão ligadas, umas às outras.
Assim, a orientação da oficina, foi a de realizar manchas aleatórias com o contato superficial entre o fogo e o papel, para que pudéssemos observá-las e quiçá identificarmos formas que nos abrissem diálogo com conteúdos inconscientes. Também foi utilizado material de colorir para que as formas identificadas fossem definidas. Abaixo vemos algumas das obras realizadas na oficina:
Clareando, Acolhendo e Libertando
Tristeza: O acúmulo que se dissipa
Fisgado pela boca
Com as imagens produzidas pelo fogo, algumas questões que pediam passagem, clareza e elaboração consciente puderam ser observadas. A oficina também buscou inspirar a ampliação da percepção de nossa natureza coletiva, e a compreensão de que o manejo do fogo interno[4], aquele que enseja a iluminação e criação, e não a destruição por seu descontrole, ou a apatia por sua ausência, podem viabilizar a criação de uma realidade possível e sustentável para todos, o que inclui o controle do próprio fogo externo.
[1] DUARTE, Mercedes.
Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog
Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
[2] A Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas inspiradas nos arcanos maiores
do tarô em diálogo com determinados elementos da arte.
[3] Esse manifesto, de caráter vanguardista,
foi escrito por Pierre Restany, Frans Krajcberg e Sepp Baendereck, no Alto Rio
Negro, na Amazônia, em 1978. Propunha perspectivas e uma estética artística que
expressassem uma relação humana de maior integração com a natureza, chamadas
pelo trio de Naturalismo Integral. Para mais, ver Fernandino (1998).
[4] Para mais ver O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico, de Horschutz (2011).
DUARTE, Mercedes (2021). Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio. Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/20215/. Acesso em 10/07/2022
FERNANDINO, Fabrício José (1998). Poesia das coisas naturais. 313p. Dissertação de Mestrado - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte
NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.
HORSCHUTZ, Renata Whitaker (2011). O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico. Cadernos Junguianos nº. 7- 2011, Revista Anual da Associação Junguiana do Brasil, São Paulo, Ferrari – Editora e Artes Gráficas LTDA, São Paulo. Disponível em http://www.psicologiasandplay.com.br/wp-content/uploads/2010/04/o_vaso_e_o_fogo_alquimico_formado_pelo_campo_relacional_terapeutico.pdf. Acesso em 10/07/2022
Filmes
Filme Documentário: Frans Krajcberg: Manifesto. Direção e roteiro: Regina Jehá. 2019 (98 min.).
Sites consultados
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
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