segunda-feira, 13 de junho de 2022

CONTRIBUIÇÕES DO ARTETERAPEUTA FRENTE A SOCIEDADE DO CANSAÇO

 


Eliana Moraes - MG

naopalavra@gmail.com 

Em 22 de abril comemoramos o dia do arteterapeuta. Considero este um dia importante para estabelecimento da profissão Arteterapia, uma homenagem aos profissionais que de forma tão engajada se dedicam em sua formação continuada e exercício de uma prática cada vez mais consistente, mas também, um dia para a conscientização da importância que a Arteterapia tem como prática, teoria e profissão na atualidade. 

Neste ano, para contribuir com esta reflexão, no mês de abril ministrei a palestra “Contribuições do arteterapeuta frente à sociedade do cansaço” em parceria com o Espaço Crisântemo, e hoje trago uma resenha deste encontro tão reflexivo quanto potente. 

Como base e estímulo disparador, parti do livro “Sociedade do Cansaço” de Byung-Chul Han,  um clássico sobre a sociedade contemporânea e seus excessos, a relação com o trabalho na atualidade e seu potencial de adoecimentos e esgotamento. É possível encontrar também, no youtube, um documentário de mesmo nome, pelo qual o autor reflete sobre os conceitos do livro aplicados, principalmente, mas não apenas, na cultura coreana.   

Han nasceu em 1959, na Coreia do Sul, mas migrou para a Alemanha, onde estudou Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique. Desde 2012 Han é professor de Filosofia e de Estudos Culturais na Faculdade de Artes da Universidade de Berlim e autor de inúmeros livros sobre a sociedade atual. 

O autor parte da reflexão sobre as patologias de nossos tempos:

 

Visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como a depressão, transtorno  de déficit de atenção com Síndrome de Hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem patológica do começo do século XXI. Não são infecções, mas infartos, provocados não pela negatividade  de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade. (HAN, 2017, 7-8) 

Han irá desenvolver ao longo do texto sua definição para negatividade e positividade, advindas de uma leitura histórica sobre a sociedade:


A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo,  entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos... (HAN, 2017, 23-25) 

Este é o caminho denunciado por Han: passamos de uma “sociedade disciplinar” descrita por Foucault em seu tempo, para uma “sociedade do desempenho” descrita pelo autor. Desta forma, não somos mais “sujeitos da obediência” e sim “sujeitos do desempenho e produção”. E assim, os conceitos de negatividade e positividade nos faz mais sentido:


A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição... [Na] sociedade de desempenho... O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de positividade... No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa, motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (HAN, 2017, 23-25)

 Em outras palavras, antes o que nos norteava era a negatividade da proibição, hoje migramos para a positividade de um poder ilimitado. Assim, também deslocamos as produções de sujeitos marginalizados: dos loucos delinquentes (tão bem descritos com Foucault em sua vasta literatura) para os depressivos e “fracassados” de nossos tempos.

Ao estudar esta parte do texto, uma fala tão atual e recorrente na minha escuta de pacientes e alunos me saltou à memória: “Não me sinto pronto, ainda não aprendi o suficiente.” 

O coração do livro está na descrição da “liberdade paradoxal” que que o sujeito do desempenho se encontra, sem dela ter consciência:

 

O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito da obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho.  O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é o ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal. (HAN, 2017,  29-30) 

É neste contexto que o autor localiza as patologias da Depressão e da Síndrome de Burnout, sintomas da atualidade que devem ser fonte de profundos estudos para terapeutas que os recebem em seu setting:

 

Alain Ehrenberg localiza a depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho... O que nos torna depressivos seria o imperativo de obedecer apenas a nós mesmos. Para ele, a depressão é a expressão patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo... a sociedade de desempenho, que produz infartos psíquicos... A Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida... O que o torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho. (HAN, 2017, 26-27) 

Cabe destacar aqui que a descrição desta forma de “trabalho” não se aplica apenas no campo profissional. O imperativo do desempenho se aplica na perspectiva do trabalho mas muito além dela. A demanda por excelência ou “vontade de 100%” (Frankl) pode acontecer em qualquer atividade que o sujeito pode se dedicar, seja um aprendizado, uma atividade física, um hobby, inclusive seu período de férias ou entretenimento.  

Han nos alerta que este excesso de positividade tem um efeito direto em nossa capacidade de atenção:  

 

O excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica relacionada ao tempo e à atenção... A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório... Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem...

Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo. (HAN, 2017, 31-33) 

Apesar de nos descrever um cenário um tanto pessimista, Han também nos apresenta um caminho de esperança. Esse caminho se dá através da contemplação:

 

... [O] aprofundamento contemplativo... Os desempenhos culturais da humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, [e a arte], devem-se a uma atenção profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda...

Com o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os “dons do escutar espreitando” e desapareceria a “comunidade dos espreitadores”... O “dom de escutar espreitando” radica-se precisamente na capacidade para a atenção profunda, contemplativa, a qual o ego hiperativo não tem acesso. (HAN, 2017, 32-34) 

Espreitar significa observar atenta e ocultamente, espiar, perscrutar, esquadrinhar, intuir, prever, adivinhar. Para Han, o “escutar espreitando” é um hábito que vem se perdendo. Mas extraímos de seu texto que um caminho possível no meio deste cenário coletivo seria o “elemento contemplativo”:

 

Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade. Paul Cézanne, esse mestre da atenção profunda, contemplativa, observou certa vez que podia ver inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção profunda. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas...

Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá pra lá e não traz nada a se manifestar, mas a arte é uma “ação expressiva”. O próprio Nietzsche... Sabe que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo.” (HAN, 2017, 36-37) 

Em um capítulo do livro chamado “A pedagogia do ver”, Han nos revela que:

 

A vita contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche formula três tarefas, em vista das quais a gente precisa de educadores... Aprender a ver significa “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”, isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Esse aprender-a-ver seria a “primeira pré-escolarização para o caráter do espírito”. (HAN, 2017, 51) 

Contribuições da Arteterapia frente à Sociedade do Cansaço 



Contemplar significa o ato de concentrar longamente a vista, a atenção em algo. É uma profunda aplicação da mente em abstrações. Uma admiração, meditação, reflexão. 

É possível entrarmos em estado de contemplação através da natureza, da espiritualidade e... da arte. E aqui está o fio de ligação entre o cenário atual descrito por Han e os potenciais arteterapêuticos. Já em um primeiro momento a Arteterapia nos promove a aproximação com a arte como fruidores, o “aprender a ver”, a contemplar. 

Mas em especial, ela nos promove a aproximação com a experiência do fazer arte, o contato íntimo e pessoal com os materiais, o processo criativo e formação de imagens. O fazer criativo nos promove um convite ao demorar-se, ao aprofundamento, à experiência estética, além do autoconhecimento e a ressignificação de comportamentos e hábitos coletivos que, sem a devida crítica, nos levam a adoecimentos psíquicos. O “elemento contemplativo” oferecido e sustentado cotidianamente pela Arteterapia, eis sua contribuição frente à Sociedade do Cansaço.  

Para concluir esta reflexão, trago uma expressão artística me soprada ao ouvido por uma terapeuta, participante assídua dos eventos do Não Palavra. Entendo que esta música descreve a pausa necessária aos “sujeitos do desempenho” e que tais reflexões podem ser geradas e estimuladas no contato com a arte e com a Arteterapia. 

Pausa

5 a seco

 

Onde eu possa descansar daquilo tudo que já sei
De todo ouro que busquei
Do vício de me reinventar
Onde eu possa resgatar a dádiva de ser ninguém
De nunca mais falar de mim
Procuro esse lugar

Pausa para respirar no permanente vir a ser
Do desamparo de não ter
Do desespero de esperar
Pausa para repensar o que merece me mover

E esse lugar, se um dia houver
Eu chamarei de lar

E quando um dia voltar a perceber
A pulsação se acelerar
Eu voltarei a percorrer
O mar aberto do querer
Sem nunca esquecer pr'onde posso voltar

 

Bibliografia:

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, RJ. 2017.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"



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