Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com
Em uma oficina arteterapêutica - intitulada “Ordenando o caos”,
em caráter experimental, em uma casa cedida por uma amiga, aplicada em um grupo
de seis pessoas, em que cinco eram artistas, sendo a maioria parte da faixa
etária de cinquenta a setenta anos, contando apenas com um jovem - trabalhei inspirada em textos[1] e em uma aula, ministrada
no curso de arteterapia do Espaço Terapêutico Psi, sobre o Dadaísmo, da arteterapeuta
Eliana Moraes.
O Dadaísmo (1916)[2] se define por um movimento
artístico de vanguarda de cunho político. Ocorrido durante a Primeira Guerra
Mundial, o movimento é criado por um grupo de artistas e intelectuais, fundadores
do Cabaret Voltaire (Zurique), em uma
época em que a noção de racionalidade humana havia se esgarçado. Desde o Iluminismo,
o Ocidente acreditou que a razão levaria as sociedades e indivíduos a um
elevado grau de desenvolvimento, em que a felicidade humana seria plena
(GIANNETTI, 2002). Entretanto, especialmente com a culminação das guerras,
essas expectativas viram-se
frustradas. Desse modo, os valores vigentes passaram a ser questionados, e
muitas vezes combatidos, incluindo as noções estéticas e artísticas correntes.
O Dadaísmo surge como um sopro de destruição aos
padrões do que era considerado arte. Pressupunha a expressão do caos, da
desordem, da destruição, do absurdo e da irracionalidade. Contra o capitalismo,
os valores burgueses, o consumismo -
que representavam uma ordem social fracassada, erguida sob a égide da
racionalidade - seus poemas,
performances, trabalhos plásticos, entre outras linguagens, exploravam o
“automatismo”, o acaso, a espontaneidade e a irreverência (MARTINS, 1999;
MORAES, 2018).
Em tempos em que a organização social parece
desacreditada, expressar a destruição e o caos através da arte, e nesse caso,
mediante a arteterapia, abre espaço para explorarmos novos sentidos e
reordenamentos possíveis. É frequente nos sentirmos impotentes frente a
opressões externas e desarranjos sociais. A arteterapia, portanto, pode ser uma
ferramenta que nos encoraja a encontrar um lugar no mundo e a responsabilidade que
nos cabe nele, mesmo que em nível de nossos afetos e trânsitos cotidianos.
Responsabilizar-se, por
aquilo que nos é possível, é encontrar potenciais de transformação em si mesmo,
e diminuir o sentimento de impotência que leva ao imobilismo e ao aumento desenfreado
de diagnósticos de depressão.
Na oficina em questão
trabalhamos a destruição como acaso; o ato de destruir o que incomoda e de
reconstruir/reconfigurar sentidos a partir dos devires da vida, ou, como disse Sartre (2012) em virtude da
biografia de Saint Genet: a partir do que as pessoas fizeram de
nós[1]. Sem dúvida tivemos
distintas respostas evidenciadas nos trabalhos plásticos e nas falas que os
sucedem. Entretanto, o que marcou a oficina, segundo minha leitura, foi certa
dificuldade de alguns participantes reconfigurarem/reordenarem de forma ativa
suas trajetórias após a “destruição”.
Levo aqui em consideração, especialmente, o
fato de se tratar de pessoas que estão próximas ou já fazem parte da chamada
terceira idade. Existe, como sabemos, uma série de questões que envolve esse
período da vida. Em especial, no que toca a proposta da oficina, a sensação de
exclusão social e de não pertencimento. No entanto, como aponta a Organização
Mundial de Saúde (2017), a expectativa de vida aumenta ao longo das décadas, o
que nos traz cada vez mais a necessidade de pensarmos modos de possibilitarmos a
reintegração e sentimento de pertencimento dessa faixa etária. Mais uma vez, o
trabalho arteterapêutico, que, entre outras coisas, lança mão da arte como “conscientizadora”
e potencializadora de nossa ação no mundo, pode ser considerado uma ferramenta
bastante útil.
O fato de alguns participantes terem tido
dificuldades na ressignificação e/ou reorganização de seu “caos” não anula o
poder do processo terapêutico. De acordo com Angela Philippini (1998) o uso da
palavra, por exemplo, quando expressa a tomada de consciência dos processos
terapêuticos, só acontece
algumas vezes anos depois, quando a energia psíquica
tiver podido pouco a pouco, percorrer a “distância” que separa os
processos psíquicos primários [que não passam pelo crivo da consciência], dos
processos psíquicos secundários de elaboração simbólica. De todo o modo (...)
já terá o indivíduo vivenciado dentro de si, aquilo que efetivamente a arteterapia
tem de mais benéfico e produtivo terapeuticamente, que é: expressar, configurar,
e materializar conflitos e afetos, realizando um conjunto de atos que podemos
designar genericamente como: “O FAZER TERAPÊUTICO” (1998, s/n).
É esse
“fazer terapêutico”, mencionado por Philippini (1998), que pode nos munir de
força criadora para transformar a realidade que nos cabe. Já o trabalho arteterapêutico
em grupo tem a particularidade de mobilizar redes, afetos e espelhos. Um dos relatos
mais comoventes da oficina, que envolvia a maior parte dos participantes que
eram atores, foi sobre o quanto o fechamento de um teatro onde atuavam estava afetando
o participante. Esse relato/revelação comoveu a todos que estavam implicados na
situação, promovendo acolhimento, solidariedade e desejo de enfretamento da
situação.
De acordo com Ligia Diniz, no processo de
maturidade
várias etapas precisam
ser percorridas e elas vão desde a preocupação meramente egóica até um outro
patamar que implica na abertura para o social e transcendente. Tendo
reconhecido seu valor pessoal e tendo se apropriado de sua própria luz, o homem
pode, então colocá-lo a serviço de um benefício coletivo. (...) Confrontando-se
com aspectos esquecidos do eu, relacionando-se com as perdas inevitáveis ao
longo da jornada, mergulhando no inconsciente, encarando a própria sombra, o
ser humano é capaz de corrigir rotas e transcender (p.113).
Obviamente que não existem fórmulas fáceis para
lidarmos com as opressões externas e com aquilo que elas nos causam. Mas
elaborar maneiras de construirmos caminhos alternativos, mesmo que pouco
expressivos aos olhos alheios, é um alento, e é possível quando estamos atentos
ao nosso lugar no mundo, e encontramos e produzimos meios de expressão,
integração e solidariedade. Que consigamos então produzir mais arte terapêutica
e construir mais teatros, nas ruas, nas casas, nas vilas e nas favelas.
[2] Seu manifesto, escrito pelo poeta romeno Tristan Tzara
(1896-1963), data de 1918, quando alcançou maior visibilidade.
[3] Nesse contexto podemos substituir a palavra “pessoas” por “vida”. O fragmento sartreano completo, largamente citado, é: “o importante não é o que as pessoas fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que elas fizeram de nós” (SARTRE, 2012, p.49, tradução nossa).
Referências
Bibliográficas:
DINIZ,
Ligia. Espiritualidade e Arte Terapia. Arte
Terapia: Coleção Imagens da Transformação.
vol. 10, nº 10. Rio de Janeiro: Pomar, 2003.
GIANNETTI,
Eduardo. Felicidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
MARTINS,
Ana Maria Pina. Movimento Dada: O banal e o indizível. Análise Psicológica [online], vol. 17, nº 4, pp. 723-726. Lisboa,
1999.
MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. Divino de São Lourenço: Semente Editorial,
2018.
OPAS/OMS
Brasil. Expectativa de vida aumenta para
75 anos nas Américas. 2017.
Disponível
em:
PHILIPPINI, Angela. Imagens da Transformação. Coleção de Revistas de Arteterapia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Pomar, 1998.
SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet: actor and
martyr. Traduzido por Bernard Frechtman. University of Minnesota: Press
edition, 2012.
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Socióloga/ Mestre em Ciências Sociais/
Arteterapeuta em Formação
Texto sensacional e atividade muito interessante, complementada por uma análise muito consciente. Parabéns!
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