Por Eliana Moraes (BH) RJ
naopalavra@gmail.com
“Sobre o mesmo chão
está o muro
e o lado de lá, que
você esqueceu.
Meu chão é o mundo,
tem dois lados em
guerra.
Meu mundo é este chão
onde você cresceu e eu
também.
Ao redor de muitos,
me apontaram as cercas
e os muros,
Eu quis o caminho...”
Marcos Almeida em
“Sobre o mesmo chão”
Caminhamos para o fim de 2017
e olhando para trás começamos a refletir sobre aquilo que se passou e aquilo
que está por vir. Já há algum tempo venho aguçando minha escuta a partir da
clínica da Arteterapia e psicoterapia sobre as demandas terapêuticas trazidas
pelos indivíduos que se mostram como reflexos do cenário coletivo. Penso que faz
parte das articulações e estudos de qualquer terapeuta o movimento do social para a compreensão do sujeito angustiado, inserido na cultura. Mas neste ano, dei
passos em meu estudo sobre o papel da arte e do artista (ao qual tenho inserido
o arteterapeuta como função no social da atualidade) e pude me aprofundar na
percepção da importância deste que Kandinsky até mesmo chama de profeta:
“Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma
força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele. Ele vê o que será e o faz ver. Por vezes desejaria libertar-se
desse dom sublime, dessa pesada cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das
zombarias e do ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de
soltá-la das pedras que a retêm e, com todas as suas forças, impele-a para a
frente...
Aquele
que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um
profeta para os que o cercam. Ele ajuda a fazer avançar a carroça
recalcitrante... Essa multidão tem fome – muitas vezes sem que ela própria
esteja consciente disso – o pão espiritual quem convém às suas necessidades.”
KANDINSKY
Sem dúvida uma das questões
que mais apareceram em minha clínica, individual e grupal ao longo de 2017,
foi sobre relacionamentos, especialmente os atritos que em última análise
tiveram como disparador inicial a intolerância ao outro, ao diferente. Assuntos
não faltam, dentre eles, religião e política. Esta última me preocupa de forma
especial pois uma sensação muito estranha me toma quando penso que no próximo
ano teremos eleições federais e estaduais e a partir da minha sensibilidade
advinda da arte, visualizo um campo de guerra generalizado em nossa terra.
Um fenômeno de massa ao qual
faz crescer as cercas e os muros, dois lados em guerra, uns pela direita e outros
pela esquerda, e todos se esquecem que estamos no mesmo chão. Os conflitos
invariavelmente partem de um discurso polarizado: o ser humano com seu “eterno
dom” de se bipartir e oscilar entre os polos opostos.
Atendendo a convocação para o
artista que “apesar das zombarias e do
ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-las das pedras
que as retêm e com todas as suas forças, impele-a para frente...”, tenho me
inspirado nas cores para colocar pessoas diante de suas polaridades, para que
no diálogo com/entre elas percebam que “as partes” habitam em cada um de nós e justamente
a não integração delas é que promove o fenômeno da projeção daquilo que não
aceito em mim no outro. Assim dispersa-se de prioridades como relação e afeto e instala-se o clima do ódio.
“Traduzir-se”:
vivências em Arteterapia
Naturalmente o primeiro polo
em cores que visualizamos é o preto e branco. Binômio carregado de conceitos (e
também preconceitos) culturais, que podem encarnar significados como bom e mal,
certo e errado, luz e sombra e tudo o mais que cada subjetividade pode projetar.
Mas muitas vezes nos dispersamos de quantas possibilidades existem entre o
preto e o branco. As diversas tonalidades de cinzas que nos colocam em contato
com aquilo que a arte nos presenteia: o degradê.
Mandala para integração das diversas possibilidades em tons entre o preto e o branco
Mas antes que nossos
preconceitos nos afastem do cinza, trago a canção/poesia de Mateus Aleluia, que
me orienta à ressignificação desta cor tão generosa:
“Na
linha do horizonte tem um fundo cinza
Pra lá dessa linha eu me lanço, e vou
Não
aceito quando dizem que o fim é cinza
Se eu vejo cinza como um início em cor
Quando
tudo finda, dizem, virou cinza
Equívoco pois cinza cura, poesia eu sou
O traje
cinza lembra fidalguia
Quarta-feira cinza é dia de louvor
Vamos
celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor
Gota de
orvalho prateada é cinza
Massa encefálica é cinza, amor
A
purificação também se faz com cinza
Fênix renasceu das cinzas com honor
Só
quero dêngo quando o dia é cinza
Ler poesia e cantar ao sol
Dedilho
a viola e sonho colorido
E vejo no amante que o cinza desnudou
Vamos
celebrar, o amor há de renascer das cinzas
Vamos festejar o cinza com amor” Amor Cinza
Outra possibilidade de experienciar as
polaridades através das cores se dá quando exploramos o círculo cromático. Pela
teoria das cores, há aquelas que são opostas no círculo cromático causando um contraste baseando-se numa oposição de valores cromáticos. Formam-se os binômios que provocam efeitos de tensão e fusão espacial: vermelho/verde, amarelo/roxo, azul/laranja (OSTROWER, 1983). Experimentar estas
polaridades através de colagens ou pinturas nos colocam em diálogo com alguns dos
paradoxos que nos habitam como seres humanos. Mas vale ressaltar a sabedoria da teoria das cores quando nos diz que estas são “opostas e complementares”: formadas por uma cor primária (vermelho, amarelo, azul) e a secundária composta pelas outras duas (verde, roxo, laranja, respectivamente).
O
“traduzir-se” aos arteterapeutas
Diálogo com as cores opostas complementares: amarelo e roxo
Tenho oferecido a experiência
com as “cores opostas complementares” em diversos contextos da minha prática. Porém,
em especial, tenho proposto este mergulho especificamente aos arteterapeutas da
minha rede de influência por acreditar com toda minha energia que só poderão oferecer
ao social a integração das polaridades através da Arteterapia, aqueles que
estiverem em profundo contato com suas próprias metades, antagonismos,
contradições... Como disparador de grandes insights, podemos nos inspirar na poesia
“Traduzir-se” de Ferreira Gullar, que
retrata a condição das partes que o habitavam e aponta para a arte como um
caminho possível:
Diálogo com as cores opostas complementares: laranja e azul
“Uma
parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?”
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?”
Para 2018 está posta a arena para
o embate entre as polaridades. Polos opostos projetados no outro, mas que
efetivamente habitam na humanidade de cada um. Reconhecer as partes que dialogam/digladiam
no interior de cada sujeito é o grande desafio lançado. Em 2018 responderemos a pergunta
de Ferreira Gullar, traduzir uma parte
na outra parte será uma arte! Que nós arteterapeutas estejamos prontos e a
postos para oferecermos ao social os materiais propícios para a integração das
polaridades nas esferas individual e coletiva.
Diálogo com as cores opostas complementares: verde e vermelho
Referência
Bibliográfica:
KANDINSKY, Wassily. Do
espiritual na arte. 1991.
OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Editora Campus. 1983.
Excelentes e importantes reflexões! Parabéns, Eliana!
ResponderExcluirMuito actual seu texto, Eliana.
ResponderExcluirVamos tratar que as polaridades conversem entre se, vamos trabalhar pela união e não pela separação