segunda-feira, 29 de maio de 2017

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇAO



Por Tania Salete
taniasalete@gmail.com


“O Brasil é o maior mercado mundial do crack e o segundo maior de cocaína, conforme revelou o Instituto Nacional de Pesquisa de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os dados do estudo – que ouviu 4,6 mil pessoas com mais de 14 anos em 149 municípios do País – foram apresentados nesta quarta-feira na capital paulista.

 ( Fonte: Revista Isto é - 05.09.12 )

“Um dos principais problemas de saúde pública no mundo, o uso de drogas, incluindo álcool e nicotina, altera significativamente o Sistema Nervo Central – SNC e, apesar do perigo que essas substâncias podem ocasionar à saúde, o seu consumo só tem aumentado.”
 (Fonte: http://www.unasus.ufma.br – Universidade Federal do Maranhão)
Desde a antiguidade há relatos dos diversos usos de substâncias ou drogas com finalidades terapêuticas para tratamento de doenças e alívio de dores físicas. Entretanto, a ênfase geralmente estava mais associada aos rituais religiosos onde a ingestão da droga facilitaria o acesso aos deuses, a um estado de êxtase e transcendência. Em muitas culturas primitivas, era esta a função primordial, a busca pela divindade.

A sociedade passou por grandes e profundas transformações nos últimos séculos. Uma verdadeira revolução de valores, padrões culturais, tecnológicos e sobretudo sociais, imprimiram neste homem moderno um perfil totalmente diferenciado e em muitos aspectos, descaracterizado.
O psicólogo junguiano Luigi Zoja, em seu livro “Nascer não basta”, ressalta e associa o consumo de drogas a abolição dos rituais iniciativos que durante milênios organizaram de certa forma a vida psíquica e social dos povos:
“As passagens de uma etapa para outra são caracterizadas por situações de crises de transformação, nas quais a pessoa sente-se em geral perdida, desorientada, como se ficasse temporariamente desprovida da sua identidade anterior, e ainda sem a posse de uma nova identidade. Durante muitos milênios esses rituais organizaram a vida psíquica e social dos povos.” (ZOJA)

Persiste no indivíduo o desejo de mudança, de transcendência, de busca pelo preenchimento existencial porém, imerso na cultura consumista e acelerada de hoje, o ter em detrimento do ser, a banalização e até deterioração dos processos e valores basilares para o mínimo de equilíbrio mental e social, a droga surge como mais um objeto de consumo desenfreado e descontrolado para suprir as carências latentes. Como consequência, em muitos casos, observa-se um processo de adoecimento que termina em adicção. 
Adiccção vem do termo latino-romano, Addicctus, que significa "escravo por dívida" e era utilizado para expressar o fato de um homem, por não dispor de recursos, aceitar ser escravo para saldar a dívida contraída.
A definição descreve bem a situação do indivíduo, pois trata-se de uma doença crônica, com características progressivas, com diagnóstico, até o momento, incurável e em muitos casos letal ou com danos irreparáveis. Na esmagadora maioria dos casos, envolve perda da família, bens, emprego, profissão, amigos, relacionamentos, dignidade. Afeta o indivíduo em todas as áreas: física, mental, social e espiritual em uma espiral descendente e rápida. A reversão do quadro dependerá dos efeitos dos produtos químicos consumidos e das consequências destes, além de uma séria conduta e escolha de tratamento adequado.

Arteterapia colorindo vidas: Relato de caso

A Arteterapia é um processo terapêutico que utiliza a arte como espaço de criatividade, experimentação, transformação e facilitação de experiências simbólicas, expressão de emoções e sentimentos humanos mais íntimos.   
Iniciamos em fevereiro de 2013, em uma casa de recuperação para homens egressos de rua, um grupo de arteterapia a título de estágio, na época. Tínhamos disponível uma sala com equipamento necessário, local, hora marcada para os encontros e um grupo inicial de 13 homens. As idades variáveis entre 19 a 58 anos, todos adictos (substâncias entorpecentes variadas – cocaína, álcool, maconha, crack, cigarro, etc). Alguns com antecedentes criminais diversos e outros já haviam cumprido pena em regime fechado por vários anos, mas ainda não estavam reinseridos ou totalmente livres do vicio o que ocasionava repetidas recaídas e retorno às ruas e em condições de vulnerabilidade social.
Deste grupo, destaco o caso de E., 57 anos, alcoolista desde adolescência, sem registro de vínculo familiar, reincidente na instituição e reiniciando o processo dos passos propostos pela casa para recuperação. Desde o primeiro encontro, E. demonstrava pouco interesse nas atividades, falava pouco e interagia menos ainda com o grupo.
Com a evolução do trabalho, o contato com materiais diversos, foi provocando uma resistência maior em E., verbalizado pelo desejo de desistir do grupo. Nos momentos de compartilhamento, suas frases eram basicamente as mesmas: “Fiz qualquer coisa para ocupar a mente”!
Na observação e escuta espontânea durante as sessões seguintes, alguns comportamentos eram comuns e bem característicos deste público: impulsividade, dificuldade de enfrentar os problemas, baixa tolerância à frustração, pouca persistência na atividade, agitação ou apatia (dependendo do grau de comprometimento ou tempo na casa), oscilação de humor, imediatismo, acentuada baixa estima, vitimização, ansiedade, manipulação e carência afetiva e insegurança, além de uma identidade bem fragilizada.
Em alguns, percebia-se também déficit cognitivo e outros comprometimentos neurológicos associados a degeneração causada pela drogadição. Muitas vezes, era preciso explicar a atividade com calma e relativa simplicidade para que fosse possível a todos acompanharem ou mesmo sentirem-se mobilizados em participar da proposta.
No caso especifico de E., a resistência deu lugar a participação mais intensificada, sobretudo quando já na fase final do trabalho, foi proposto que o grupo escolhesse uma forma de artística para se expressar.  E. já tinha feito um desenho de paisagem muito bonito com lápis de cor e resolveu transferir este desenho para uma peça em tecido, tamanho de uma tela.  Sentia-se mais fortalecido, aceito, acolhido em sua produção, mais seguro para expandir sua criatividade sem preocupação com as opiniões externas.
Fortalecendo o EGO, a Arteterapia direciona a subjetividade, cada vez mais estruturada, no caminho da autonomia ou da autoria de pensamento. Por sua vez, a cada passo no sentido da valorização e do reconhecimento pessoais, aumenta o grau de motivação, de orientação e disposição para expressão de novas ideias, buscas de ideais, novas escolhas, favorecendo a vivência da liberdade.” (URRUTIGARAY)

O trabalho arteterapêutico propicia mais esperança e confiança no próprio potencial para superar as dificuldades do tratamento, a luta constante contra a doença e um posicionamento mais firme diante dos desafios no dia-a-dia.  Tem muita efetividade para o adicto auxiliando na mudança de postura do isolamento afetivo e social, podendo ativar e conectar algumas de suas potencialidades adormecidas, aumentando sua autovalorização, autoestima, ajudando-o a perceber e identificar novas alternativas, que promovam, acrescente e  colaborem em sua recuperação e reconstrução enquanto indivíduo e cidadão.
Nosso grupo terminou com 9 componentes, a maioria apresentando melhoras significativas e alguns reinseridos no mercado de trabalho, porém mantendo o vínculo com a instituição.
Quanto à E., após o término do quadro, revelou-nos que na juventude e antes de perder “tudo como ser humano”, era pintor profissional, mas que nunca mais havia se permitido pegar em um pincel, pois para ele aquela atividade o havia “jogado no mundo da bebida e das drogas e depois na rua”. Relatou que se sustentava na rua pintando o “retrato” das pessoas na praia e com o dinheiro que ganhava, comprava algum material e depois consumia as drogas. Até que não foi mais possível pintar.
A Arteterapia foi como um instrumento de resgate e reconciliação com a sua arte, de maneira agora mais saudável e equilibrada, com possibilidade de reencontro com o artista adormecido. Algum tempo depois, soubemos que o quadro de E. foi doado à casa de recuperação e posteriormente representou a mesma em uma exposição que aconteceu numa conferência sobre Recuperação de Egressos de Rua em Londres. CLIQUE AQUI

Conclusão:
A recuperação de adictos é um processo longo, contínuo e permanente  que dura a vida toda, mas que é conquistado um dia de cada vez, um passo por vez, e a Arteterapia pode  ser uma ferramenta fundamental nesta conquista.
Referências Bibliográficas:
- PHILIPPINI, Angela – Cartografias da coragem – 4ª edição – Wak Editora, 2008
- UTTUTIGARAY, M C- Arteterapia – A transformação pessoal pelas Imagens – Rio de janeiro, Wak Editora, 2011
- ZOJA, Luigi, Nascer não basta, Axis Mundi Editora, 1992

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Sobre a autora: Tania Salete


Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.


14 comentários:

  1. Eliana, muito obrigada pela oportunidade de compartilhar minhas experiencias com este grupo tão diferenciado! Confesso que estou emocionada ao ler o texto.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Excelente. Texto com grande sensibilidade e percepção das carências humanas. Num mundo cada vez mais individualista enxergar o outro e a arte do outro é raridade.
    Parabéns, Tânia!

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  4. Texto maravilhoso, escrito por uma pessoa de muita sensibilidade e profissional competente. A Arteterapidez é uma ferramenta eficaz na recuperação da autoestima de quem necessita de cura emocional, psicológica,afetiva,e sofre com enfermidades neurolóticas. Parabéns pelo lindo trabalho!

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  5. Texto maravilhoso, escrito por uma pessoa de muita sensibilidade e profissional competente. A Arteterapidez é uma ferramenta eficaz na recuperação da autoestima de quem necessita de cura emocional, psicológica,afetiva,e sofre com enfermidades neurolóticas. Parabéns pelo lindo trabalho!

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  6. excelente! Texto
    No qual a autora enfatiza ,através de sua experiência profissional , a importância da ARTETERAPIA enquanto ferramenta eficaz no processo de recuperação e inclusão social junto a pessoas adictas.

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  7. Que trabalho bonito o seu, Tania, de cuidado com o outro, mas de uma forma tão especial! E certamente mais recomendável que outras abordagens, às vezes traumáticas...

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  8. Lindo texto e o trabalho. O descobrir de uma nova maneira de "ouvir"... A vida se revelando em arte, fazendo renascer a esperança do viver. Parabéns, Tânia.

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  9. Que beleza e integridade proporciona a arteterapia.

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  10. Que experiência maravilhosa, poder ajudar o outro através da arte.
    Parabéns Tânia pelo texto e pelo trabalho desenvolvido

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  11. Importantíssimo o seu trabalho. É preciso que as pessoas se convençam que arte,enquanto terapia, é uma forma de expressão extremamente eficaz no trato com o DQ. Parabéns.

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  12. Parabéns pelo trabalho! Ser sensível ao próximo é uma dádiva de Deus! E q arteterapia possa ser divulgado de uma forma q possa ser difundido no Brasil todo! Deus abençoe!

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  13. Com toda razão a arte também auxilia no processo de restauração, especialmente se aliada a terapias de edificação espiritual. Parabéns pelo texto! Demonstra muito conhecimento e sabedoria.

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  14. Excelente reflexão, temos necessidade de divulgar mais sobre esse tratamento pois realmente é um problema de saúde pública... Parabéns irmã...

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