por Maria Cristina de Resende
Ao longo da minha experiência em consultório, que está para
completar uma década, fui observando uma série de relatos a respeito de
situações onde podemos verificar o fenômeno da sincronicidade. Para aqueles que
vivem tais situações, são apenas coincidências, entretanto, para aqueles que
trabalham a partir da Teoria Junguiana ou flertam com seus conceitos, fica
claro que tais coincidências fazem parte deste grupo de fenômenos não
explicáveis pela lei de causa e efeito.
O ultimo relato ouvido no setting terapêutico foi de uma paciente que, numa mistura de
surpresa e medo, começou uma das sessões com esta frase: “tem uma câmera aqui dentro, pois tudo que é falado aqui gera uma onda
de coincidências bizarras”. Este fenômeno “bizarro” é a sincronicidade, descrita por Jung como:
“[...] a simultaneidade de um estado psíquico
com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de
um estado subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa”.
No livro Sincronicidade, 2011, Jung começa sua exposição
do tema apresentando uma série de pesquisas demonstrando a relação do individuo
com fenômenos sem relação causal e conclui que a lei de causa e efeito não se
aplica a tais eventos. Entretanto, eles se manifestam. Qual seria então a
explicação para eles? “[...] ao lado da
conexão entre causa e efeito, existe na natureza também outro fator que se
expressa na sucessão dos acontecimentos e parece ter significado”, ainda
que este significado seja difícil de ser reconhecido pelo pensamento ocidental
e racional. Jung então, se volta para a pesquisa dentro de tradições mais
antigas que podem nos ajudar a compreender um pouco sobre a temática.
Na filosofia tradicional chinesa o conceito do Tao é
usado por Jung para compreender sobre o sentido
dos eventos da sincronicidade. Muitas traduções podem ser encontradas para o
Tao, mas aquela que melhor o define é “nada”. “O ‘nada’ é evidentemente, o ‘sentido’, ou a ‘finalidade’, e chama-se
nada justamente porque em si ele não aparece no mundo dos sentidos, mas é
apenas seu organizador”.
“O sentido [Tao] é a simplicidade suprema sem nome.
Se os príncipes e os reis pudessem conservá-lo,
Todas as coisas seriam os seus comensais.
O povo viveria em harmonia, sem precisar de leis e
ordens.
O Tao não opera,
E, no entanto, todas as coisas são feitas por ele.
Ele é impassível
E, no entanto, sabe planejar.
A rede de céu é tão grande, tão grande,
De grandes malhas, mas não deixa escapar nada”
Isso me remete à ideia que defendemos ao longo de nossos
escritos sobre a busca na Arteterapia pelo significado da obra (O que é?), uma
busca reducionista que pode ser transformada pela compreensão da força e do
sentido que a obra possui (Como te afeta? O que te evoca?). Kandinsky dispensa
as formas libertando as forças e neste contexto o ateliê de Arteterapia pode
ser o local onde as formas podem ser libertadas e as forças podem ser evocadas.
Tais forças, presentes nesta malha organizadora que o Tao
apresenta, podem ser acessadas através do mergulho no setting arteterapêutico e no uso dos materiais com suas diferentes
linguagens. Esta modalidade de atendimento convida o paciente a estar em um
estado de atenção e reflexão intenso, pois aqui, durante o processo de sua
imagem, há a necessidade de um alinhamento entre a objetividade da realidade
material (incluindo os próprios materiais) e a realidade subjetiva, os afetos,
os desejos, o Eros. Neste alinhamento, tempo e espaço se reconfiguram e a malha
se torna acessível.
M. C. Escher.
Quando o paciente mantem este estado de atenção para além
do espaço terapêutico, as manifestações do fenômeno da sincronicidade podem
então ser facilmente observáveis. Sendo assim, a ocorrência desses fenômenos não
aumenta durante um processo terapêutico, elas se tornam mais claras, pois a
atenção dada a si mesmo pelo paciente o coloca em contato direto com esta malha
organizadora.
Sobre a atenção e o interesse e sua relação com a
sincronicidade, Jung relata em suas observações nas pesquisas iniciais que:
“Uma experiência constante em todos estes
experimentos é o fato de o número de acertos tender a diminuir depois da
primeira tentativa e os resultados são, consequentemente, negativos. Mas se por
qualquer motivo exterior ou interior ocorre uma reativação do interesse do SE,
o número de acertos volta a subir. A ausência de interesse e o tédio são
fatores negativos; a participação direta, a expectativa passiva, a esperança e
a fé na possibilidade da ESP [Extra-Sensory Perception, percepção
extra-sensorial] melhoram os resultados e, por isto, parecem constituir as
condições adequadas para que os mesmos se verifiquem”.
Sendo assim, concluo esta primeira explanação, com a
reflexão sobre a força e a profundidade de um processo arteterapêutico e sua
relação com a sincronicidade, isto devido à atenção e a percepção que tal
abordagem convida o paciente a ter. A arte por sua vez também nos afirma que o
mergulho diante do processo criativo de uma obra nos coloca dentro de um contexto
onde a própria existência é percebida enquanto fenômeno, e para tal afirmação
convido Argan a dizer sobre isso, a partir de Kandinsky:
[...]
A arte, portanto, é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria
consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da
realidade e lhe abre novas possibilidades de ação. E o que é conscientizado
pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto
fenômeno. A consciência “racional” assume o fenômeno enquanto valor, mas no mesmo instante perde-o
como fenômeno. A finalidade última de Kandinsky é levar o fenômeno enquanto tal
à consciência, de fazê-lo ocorrer na
consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na consciência é a própria
existência. Esta é a função insubstituível da arte”. (ARGAN, 1998, p. 320).
M. C. Escher.
Referências Bibliográficas:
ARGAN, G. C. Arte Moderna. 5º reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das
Letras, 1998.
JUNG, C.G. Sincronicidade. Vozes, 2011.
KANDINSKY, W. Do espiritual na arte e na pintura em particular. 2ª ed. 2ª imp. São Paulo : Editora Martins Fontes,2000.
KANDINSKY, W. Do espiritual na arte e na pintura em particular. 2ª ed. 2ª imp. São Paulo : Editora Martins Fontes,2000.
Contato: naopalavra@gmail.com
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