Por Erika Coracini - SP
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@erika.coracini
A contação de histórias tem permeado os percursos arteterapêuticos conduzidos por mim: a história narrada como ponto de partida para uma criação artística, e para o reconhecimento e a elaboração de um sentimento ou de um conflito em questão.
Quem ouve histórias imagina os personagens e as situações de acordo com as experiências que já vivenciou. O sujeito se projeta nas situações vividas pelas personagens, e através desta projeção consegue identificar sentimentos e reações suas na história contada. Assim, o sujeito tem maior facilidade em elaborar e em expor seus sentimentos, seja pela palavra ou por imagens simbólicas.
Segundo Bonaventure (1992), os contos nos mostram como os personagens processaram conflitos como os da infância, da adolescência, os grandes problemas da existência, e como a sabedoria popular os resolve. Há como que um encantamento, um efeito observável e também misterioso, vindo de sua linguagem mágica.
As histórias e contos representam o universo simbólico e os problemas da humanidade, pois trazem sentimentos, conflitos e inquietações que permeiam o pensamento de todos: cada história apresenta, através da narrativa do personagem, uma maneira de resolver esses conflitos e assim humaniza os desafios vividos por todos.
É com este intuito que a história está presente no setting terapêutico: o paciente se reconhece e através da materialização artística proposta em seguida, pode elaborar como aquela história perpassa sua vida e seus conflitos. A possibilidade do sujeito se identificar e a percepção de não estar sozinho, alivia e impulsiona o sujeito a elaborar e encontrar caminhos para si.
“Outro aspecto importante a ser destacado, quanto aos benefícios do uso terapêutico dos contos ou histórias infantis, é a melhora na comunicação e capacidade de expressão, à medida que as narrativas auxiliam o processo cognitivo de construção do verbal, levando as crianças a criarem suas próprias histórias, enriquecendo a vida imaginária, ampliando assim, as possibilidades de representar afetos e conteúdo emocional. “ (MARTINS, 2020, p. 17)
Ler e ouvir histórias faz o sujeito pensar em si mesmo, muitas vezes entrando em contato com sentimentos e conflitos difíceis de lidar. Segundo Perrow (2013, p. 16), as histórias são poderosas pois trazem à tona emoções internas e questões presentes em todas as pessoas, seu trabalho é invisível, sem se darem conta as pessoas identificam-se e transformam-se junto com as personagens e o enredo da história.
O livro Vestido de Menina de Tatiana Filinto e Anna Cunha por exemplo, tem proporcionado boas vivências terapêuticas na minha clínica. O livro conta a história de uma menina que tem um vestido feito de muito fios diferentes, durante a história ela vai se dando conta que os fios nasciam de conversas ouvidas na sua casa, fios ora compridos, ora truncados, fios nascidos nas gargalhadas do dia a dia familiar, alguns grossos e cheios de nós, e assim, pouco a pouco seu vestido foi crescendo junto com ela, e a menina vai se dando conta que alguns fios pesados não são dela, percebe que às vezes seus fios se emaranham nos fios de outras pessoas, e por fim, a menina, crescida, se dá conta de que pode se tornar ela mesma a narradora da história dos fios que compõem o seu vestido.
A primeira pergunta que o livro nos traz é “com quantos fios se faz uma história?”. A partir desta pergunta, propõe-se que cada um escolha um fio comprido que representa a sua própria história, em seguida, vem o convite para se dançar com o fio da história de cada um, até que o fio trace um caminho numa folha de papel. Quase sempre o fio ganha alguns nós durante a dança. O caminho/fio é observado pelo paciente e ele escolhe um trecho para representar uma cena de sua história pessoal. E assim, o paciente se apresenta à partir daquela memória.
Essa história reaparece instigando outras perguntas no setting: “quais fios carregamos que não são nossos?”; ou “ como a história da minha infância foi compondo o vestido que eu uso para estar no mundo?; ou “como podemos pegar nas mãos este fio e sermos enfim narradores da nossa própria história?” Assim, cada paciente vai trazendo seu olhar, e cada pergunta vai trazendo novas perguntas para o processo terapêutico.
Através da Arteterapia embalada por histórias, é possível revelar e desbloquear o potencial criativo do paciente e estimular sua capacidade de identificar e expressar suas emoções. Assim, mesmo diante da dificuldade de acessar o afeto e a entrega, as histórias trazidas, propõem aos pacientes um exercício de autorregulação e gerenciamento dos inúmeros sentimentos que vivenciam todos os dias.
De acordo com Perrow (2013), na elaboração de histórias, as metáforas surgem contribuindo para uma construção de uma ponte com a imaginação do ouvinte, integrando os estados de desequilíbrio e desconforto, como também os de equilíbrio, reconfortantes.
“O próprio enredo constrói a “tensão” conforme a história se desenvolve, levando a trama para dentro ou através do comportamento “desequilibrado” e novamente para fora, na direção de uma solução integral e positiva (que não induz à culpa).” (PERROW, 2013, pg 16)
A escuta e contação de histórias, a elaboração de narrativas, o espaço de fala, e as produções a partir dos inúmeros instrumentos arteterapêuticos que podem ser utilizados durante as sessões, oferecem recursos para que os pacientes elaborem seus sentimentos, reconhecendo seus espaços de dor, para que se possa percorrer os caminhos e vislumbrar dissoluções de conflitos.
Bibliografia
BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Editora Paulus, 1992.
DUCHASTEL, Alexandra. O Caminho do Imaginário: O Processo de Arte-terapia. Paulus Editora; 1ª edição (1 dezembro 2010).
MARTINS. Tatiane Terres. A UTILIZAÇÃO DE HISTÓRIAS NO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO DE CRIANÇAS ABRIGADAS - Revista Arteterapia Cores da Vida, Ano 16 - Volume 27 - Número 2 - Julho – Dezembro - 2020
PERROW, Susan. Histórias Curativas para Comportamentos Desafiadores Ed. Antroposófica. 2ª edição 2013.
URRUTIGARAY, Maria Cristina - Arteterapia - A transformação pessoal pelas imagens. - Maria Cristina - Ed. Wak - 6ª edição – 2023.
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Sobre a autora: Erika Coracini
Arteterapeuta, atriz, arte
educadora, contadora de histórias e mãe.
Especializou-se em Arteterapia no Instituto Faces, onde também cursou Orientação e Arteterapia Familiar. Em formação de Análise Bioenergética pelo IABSP. Formada pela ECA/USP, Mestra pela USP sob o tema “Jongo e Teatro – Leitura de Princípios Performáticos da Festa”. Foi docente da Escola Superior de Artes Célia Helena. É fundadora do grupo Tá na Boca do Conto. Realiza vivência corporais, atendimentos individuais e grupais emArteterapia.
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