Por Isabel Pires - RJ
bel.antigin@gmail.com
No meu texto anterior, abordei a primeira parte
da biografia da artista surrealista Remedios Varo CLIQUE AQUI. Hoje, apresentarei o segundo
momento da vida da pintora e, em seguida, trarei um olhar sobre mais um de
seus quadros, que pode ser usado como estímulo projetivo no setting
arteterapêutico.
Remedios Varo, pintora espanhola contemporânea
de André Breton, envolve-se profundamente com o surrealismo e seus precursores
no início dos anos 1940, quando ela e seu companheiro, o poeta Benjamin Péret,
refugiam-se em Marseille por causa da ocupação nazista em Paris. Instalam-se na
residência que Peggy Guggenheim oferece aos artistas e intelectuais, e, neste
momento, Varo mergulha no círculo íntimo dos surrealistas.
Os primeiros anos de Remedios Varo no México
são permeados de buscas, pesquisas diversas e dúvidas quanto ao seu caminho de
criação. Nessa época, para sobreviver, a artista faz trabalhos publicitários e
decorativos, pintura de móveis para uma loja de decoração e imagens
publicitárias para a indústria farmacêutica Bayer, além de criar cenários de
teatro para o escritório britânico de propaganda antifascista, o que demonstra
seu desejo de engajamento político. Ao longo desse período, seu trabalho começa
a refletir seu questionamento sobre o ser e sobre o mundo, os mitos e as diferentes
formas de pensamento. Varo é particularmente influenciada pela cultura asteca,
que considera os seres humanos e os divinos como ambivalentes, afirmando a
dualidade do mundo. Assim, os mitos astecas possuem tanto o bem quanto o mal,
como a deusa Tlazolcotl, que simboliza a pureza, mas se alimenta da impureza. Dentro
da visão asteca de mundo, a dualidade se une, ou seja, está integrada, assim
como Jung nos explica sobre a união de opostos ou o “casamento alquímico”. Da
mesma forma, nos seus trabalhos, Remedios Varo realiza a união entre o ser e a
natureza, o universo e as forças cósmicas e exprime um pensamento mágico,
primitivo.
Em 1947, seu quadro A Torre já revela a
característica autobiográfica, as questões de identidade e a criação de estilo
singular de Remedios Varo. Neste mesmo ano, Péret retorna a Paris e o casal se
separa. Depois de uma viagem longa à Venezuela, Varo retorna ao México em 1949
e se casa, no mesmo ano, com Walter Gruen. Graças ao apoio financeiro e afetivo
do marido, a pintora pode se concentrar no seu trabalho criativo e se dedicar
às suas pesquisas de imagens. É o momento em que desenvolve seu estilo próprio,
inovador.
Em 1955, Remedios Varo participa de uma
exposição coletiva e, já em 1956, acontece a primeira exposição individual da
artista, sucesso de público e crítica. A partir daí, ela recebe várias
encomendas, e seu trabalho denota aspectos singulares, como o caráter híbrido
de suas obras, entre texto e quadro, e seu aspecto autobiográfico, em busca de
si mesma. Esse caráter híbrido é uma singularidade da obra de Varo, a qual se
situa entre a literatura e a pintura. De acordo com Garcia (2007), existe um
aspecto narrativo na obra da artista espanhola, como se houvesse uma
continuidade, uma cronologia entre suas telas, ao estilo de uma narração.
Pode-se perceber isso pela presença de personagens recorrentes em suas telas,
tais como a mulher pássaro, o homem de barba, o gnomo, a fiandeira, entre
outros. Tais personagens pertencem a uma história que demonstra o percurso de
busca ontológica e iniciática de Remedios Varo, dentro de um universo simbólico
lúdico e leve e, ao mesmo tempo, sério e profundo. Existe frequentemente uma
ligação explícita entre os títulos de suas obras e as imagens, de forma que a
pintura brinca com as palavras e as imagens. Por isso, pode-se ler os quadros
de Varo como poemas ou histórias, nos quais a artista espanhola subverte o
sentido das palavras e das imagens, conferindo-lhes uma significação nova e
singular.
Essa pintura de Remedios Varo mostra a reclusão
do ser humano, num espaço restrito, marcado pelas próprias dimensões do quadro,
que possui três vezes mais altura do que largura. A corda, que possui a forma
circular, a mais estável segundo Kandinsky, faz um contraste com a linearidade
e a verticalidade do quadro.
Podemos observar a palidez
cadavérica do rosto e o aspecto fantasmagórico da personagem. Apesar disso, é
no seu peito que ocorre a ruptura do círculo, na altura do coração, substituído
por uma paisagem: uma metáfora de uma nova liberdade. Essa paisagem interior é
a que modifica a ordem do quadro, revelando ambiguidades e paradoxos. No centro
de um espaço fechado e sombrio, surge a tonalidade azul celeste, o que rompe
com os tons predominantes de vermelho amarronzado e cinza.
Mas a ruptura da corda também leva a
um rompimento da personagem, que não é apenas de carne e osso, mas também,
árvores, céu, plantas, como se esse círculo fechado, porém estável, a
protegesse e, agora, quebrado, desse lugar a outras formas de existência.
Assim, as aparências se “rasgam”, para dar lugar a uma nova realidade interior.
Logo, essa tela de Remedios Varo nos mostra uma liberdade interior resultante
de uma metamorfose exterior: a mudança da aparência da personagem revela uma
transformação profunda. E é por isso que seus cabelos são como galhos e suas
roupas lembram líquens, ou seja, a personagem parece estar em osmose com o
mundo à sua volta.
No entanto, a composição do quadro é
escura e estática, o olhar da personagem parece atormentado, a paisagem
interior é de inverno, com árvores sem folhas, como se a liberdade desejada
também fosse assustadora. Assim, essa obra de Varo parece nos mostrar que a
ruptura com os padrões convencionais e a criação de uma nova visão de mundo se
faz através do medo, mas é a única forma de escapar à morte do ser.
Na clínica, é frequente a repetição
de situações e atitudes por parte do cliente, que vem da necessidade da psique
de buscar uma elaboração de algum evento traumático ou marcante. Quando o
cliente precisa buscar romper esse ciclo vicioso e sinalizar isso, podemos usar
essa pintura de Remedios Varo como estímulo projetivo para se abordar a
repetição de algo que o incomoda e falar da possibilidade de rompimento deste
ciclo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
GARCIA, C. Remedios Varo: peintre surréaliste? Créations
au féminin: hybridation et métamorphoses. Paris : L’Harmattan,
2007.
Sobre a autora:
ü Arteterapeuta
e psicóloga
ü Mestranda
em História da Arte na Université Paris Nanterre
ü Autora
do texto: “Vygotsky e a arte”, no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não
Palavra
ü Autora
do artigo: “Havia uma menopausa no meio do caminho: a arteterapia na metanoia
da mulher de meia idade”, publicado na Revista da AATESP, v. 13, n.02, 2022,
que foi tema de palestra homônima ministrada no 24º Congresso Português de
Arte-Terapia “Arte, Saúde e Educação”, em outubro de 2023, em Lisboa, Portugal.
ü Nascida
no Rio de Janeiro, atualmente vive em Paris e realiza atendimentos clínicos
online em Arteterapia e psicoterapia.
Isabel, obrigada pela conclusão mais aprofundada da obra de Varo. Sinceramente, não tinha lido nada semelhante em minhas pesquisas sobre a artista. Os quadros de Varo tem este aspecto de profundo, um tanto lúdico, mas algo bem enigmático. Parabéns pelo texto e espero que seja um dentre vários durante seus estudos e pesquisas na Cidade Luz. Saudades.
ResponderExcluirObrigada, Tânia! Pesquisei num livro que comprei aqui em Paris. Achei muito interessante também. Vou buscar outros artistas, boa sugestão. Beijos
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