segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O ARQUÉTIPO DO CRIADOR FERIDO


Por: Ana Paula de Oliveira - SP

Instagram: @ana.oliveira_terapiaexpressao

Na história das civilizações, o domínio dos metais esteve intimamente associado à capacidade de desenvolvimento do homem. Ao término da chamada Idade da Pedra (período neolítico), a pré-história humana se dividiu em três períodos, de acordo com a predominância dos metais usados para a manufatura das armas e ferramentas: a idade do cobre, a idade do bronze e a idade do ferro. Os ferreiros eram os mestres da transformação dos metais em utensílios essenciais para todas as sociedades, e das suas figuras originaram-se crenças, mitos e lendas. Surgiram então os deuses ferreiros, ligados ao fogo e ao ferro e outros metais (ELIADE, 1979). Goibniu é o deus irlandês da forja, que com apenas três golpes de martelo era capaz de forjar uma arma (DAIMLER, 2016). Na mitologia celta galesa, Goibniu tem por equivalente o deus Gofannon. Kurdalægon é a divindade celestial dos ferreiros na mitologia dos ossétios (FOLTZ, 2019). Na mitologia ioruba, Ogum é o orixá ferreiro, senhor dos metais (PRANDI, 2019), sincretizado ao São Jorge da Igreja Católica.

Dentre estes deuses ferreiros, Hefesto é um dos mais importantes (CORDEIRO E PALOMO, 2007). Este deus grego tem em Vulcano o seu equivalente na mitologia romana. Hefesto manifesta-se nos nossos dias em figuras conhecidas da vida real e da ficção, como representantes legítimos de um arquétipo muito comum na humanidade: o arquétipo do rejeitado, abandonado ou do criador ferido.

Hefesto era um Deus artífice, ferreiro, artesão, criador de objetos mágicos, joias, armas, armaduras, armadilhas, dotado de grande criatividade. E por outro lado, anão, aleijado, deformado, rejeitado por isso por sua mãe Hera, (que se viu inferiorizada por produzir uma cria defeituosa). “Deus coxo e artífice genial, Hefesto carrega em si a contradição entre a perfeição e o erro, inconcebível em uma divindade, mas inerente à natureza dos seres humanos.” (CORDEIRO e  PALOMO). Hefesto é um Deus que não ri. Riem dele, gerando dor, ressentimento, e assim, o manifesto da sua expressão na arte. Ele trata da arte do riso “sério”, não o riso inebriado pela embriaguez, deboche que fere, mas a arte do riso recriador de si mesmo a partir das próprias feridas, se colocando humildemente diante delas. O riso, assim colocado, transmuta tristeza em alegria, o ódio em amor. Rir de si mesmo, traz dessa forma a aceitação de si.

Sua história fala dos rejeitados que foram aceitos, incluídos pelas obras que produziam. Abre espaço para a expressão da divindade do ser humano sendo humano e Deus num ato heroico de manifestar a sua beleza íntima através do talento que carrega em si. Integrando erro e acerto, feiura e beleza a seu tempo, somando sombra e luz na produção de obras na vida com o sopro do espírito vivo que carregamos em nós em essência e potencial. O deus ferreiro usou o fogo da criatividade a seu favor, sabendo esperar seu tempo para aprender e criar. Voltou ao mundo e apresentou-se às divindades com sua criatividade e com sua arte passou a servir ao coletivo. Nunca impôs sua presença e seu trabalho, se apresentando apenas quando convidado a estar e servir.  Sempre concentrado no seu ofício, sempre perfeito.

Hefesto sugere uma possibilidade de elaboração das dores pela criatividade laborativa, dedicada, meticulosa e persistente na realização dos projetos de vida. Neste contexto, a Arteterapia é uma facilitadora do contato com o mundo inconsciente do ser humano visando o alcance da totalidade do Ser. Aqui o alumínio ao contato de boleadores de metal empresta a possibilidade de fazer ceder o frio metal pela persistência e delicadeza do cliente. Com a fricção cria-se um calor na superfície e o alumínio, como o bronze e até outros metais que acabam por ceder. É interessante avaliar o limiar entre força e persistência, o calor das emoções que emanam no processo, sendo indicados, na minha experiência, para casos onde a raiva, a mágoa e o rancor marcaram as relações. Surgem então processos não verbais que permitem expressar conteúdos do inconsciente de difícil acesso, por serem chagas resistentes ao tratamento. 


A proposta arteterapêutica foi trabalhar o ressentimento e a mágoa através da impressão de uma imagem sobre a folha de alumínio com a técnica da latonagem. Após entrar em contato com o sofrimento que gera mágoa, rigidez e raiva expressei em uma folha sulfite uma imagem gráfica simbólica do que sentia e a transferi para uma folha de alumínio com a ajuda de um lápis grafite de ponta grossa para não furar a folha metálica. Feito isso iniciei o processo de marcar, dar volume, ressaltar partes, arredondar, suavizar, oferecer detalhes, com o auxílio de boleadores de metal e óleo de coco para não riscar a folha e perceber a pressão necessária para fazer o metal ceder sem feri-lo. Aos poucos, no trabalho delicado de paciência e cuidado a imagem vai criando beleza e o meu olhar endurecido como aquela placa metálica foi acessando novas possibilidades de entendimento. Finalizada a atividade plástica dei seguimento ao meu processo com uma escrita criativa que me trouxe realmente um novo olhar sobre uma crença limitante que eu carregava.



Para tornar mais acessível o material, adaptei a folha de alumínio para latinhas de refrigerante, sucos e cerveja utilizando a parte interna. Os boleadores de metal usados na técnica eu também substitui por lápis sem ponta. Esta técnica já foi testada com crianças, jovens, adultos e idosos. É inevitável a frustração que vem com o rompimento da folha nos primeiros contornos e com ela os conteúdos a serem observados, mas a persistência e o aprendizado da delicadeza são as chaves para o desenvolvimento deste trabalho arteterapêutico.                                                                  

Existe um homem simples e rústico que habita em Hefesto, que as letras não corromperam, que o verbo não deturpou.            Ele tem a pele queimada e as roupas surradas, seus calçados não têm beleza e seus cabelos caem descuidados no seu semblante sereno. Não é de muito dizer, porém é de muito ver e ouvir. Não luta por reconhecimento e glória. Não deseja altares e nem perde a paz do sono por poder. Sabe que tem somente suas mãos e a força do seu querer a eles deve seus dias e sua vida. Parece solitário, mas é companheiro da sua liberdade e não se deixa escravizar. Da dura armadura forjada com o tempo, no calor das batalhas silenciosas do ser, no escuro e frio, sujo e empoeirado nasce um homem forte e corajoso. Por vezes é triste, mas nem por isso sombrio, ele segue seu destino, sua luta diária.

Ele carrega no peito uma dor calada, nunca confessada. Sim, ele sente, ele amou e ama. Ele um dia entregou sua pele, sua alma, suas vísceras, todo seu ser a uma verdade em forma de promessa. Um desejo de realidade, uma talvez ingenuidade, como uma criança que acredita estar protegida e nunca só.

Sim, dentro dele existe calor. À sua volta tudo é o espelho de ausência, como todo o material que trabalha. Aprendeu na alma a forjar o metal, a dar forma a ele, a fazê-lo arte, a torná-lo útil e belo. Fez dele morada das suas emoções e com seus sentimentos esculpiu, forjou cada detalhe que hoje o compõe. Quem o vê assim entregue ao seu ofício o tem por ignorante, um desalmado ser incapaz de delicadeza e percepção das sutilizas do amor e do sentir. 

Esse passante desavisado e indiferente o toma por si. Quem mais seria capaz de tratar o duro aço, o frio metal, o nobre cobre e a cobiçada prata com tal delicadeza como se estivesse diante de fina seda? Quem, senão alguém que tem profundos e nobres sentimentos seria capaz de ver no frio metal a beleza da flor e tratá-lo como a um tecido de rara nobreza? De forjar na sua dura pele as marcas profundas que gritam no seu ser? 

O som do metal parece aos ouvidos um canto triste de dura realidade, o toque forte da conquista da persistência e da resignação tem o gosto seco do mais fino vinho que soube esperar para obter seu sabor, e traz consigo o perfume balsâmico da verdadeira sabedoria. Sabe enfim, completar o ciclo das suas infinitas luas, terminar todos os seus ciclos e se integrar a si mesmo.

Para entoar o canto seco do metal e conferir a ele beleza e arte é preciso ter uma alma sensível e experiente no sentir. Ter caminhado distâncias sem fim pelas veredas das emoções mais marcantes. É preciso ter vivido com intensidade, ter chorado com profunda dor, ter se contentado com a rústica simplicidade de estar vivo, ter se banhado de gratidão à vida, ter se saciado de humanidade. Ter provado o doce e o amargo a ponto de com o simples olfato saber diferenciá-lo. Para saber forjar o metal e ver nele arte monumental, escandalosa de tanta força e sobriedade, é preciso ter vivido com a alma, é preciso ter sorvido do ódio e do perdão. É preciso saber sonhar e desesperar, ter e perder, lutar e sempre vencer porque sabe que na aparente derrota se esconde a real vitória. É preciso ser sábio, é preciso ser velho no espírito e ter o vigor de um jovem que não se sacia com um único olhar.

É atingir a simplicidade de viver o dia de hoje. A paz de executar sua tarefa com primor, sem julgamentos nem lamentos de quem não se desprende do passado que já morreu, sem a ambição que lhe faz viver do futuro sem o conhecer. É ser feliz agora, é gostar do que se tem hoje. É ter a certeza que a vida é infinita como infinita foi até hoje. É deixar que no rosto estejam apenas as marcas do tempo como gentil aliado, feliz companheiro da vida, não como o carrasco que lhe arranca das mãos a força, dos pés o chão, da cabeça a esperança e do coração o amor.

Quem é capaz de forjar a própria armadura sabe que por trás dela existe um homem frágil, humano, forte e sensível. Que existe um ignorante e um sábio. Um velho e uma criança. Que já viveu muito e ainda não viveu tudo. Que sofreu quedas e desilusões, mas, também aprendeu a se erguer e ter esperança.

BIBLIOGRAFIA

BOLEN, J. S. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. Paulus, 2002.

CORDEIRO, A. M.; PALOMO, V. Hefesto, o arquétipo do criador ferido. Alvarenga, MZ e col, 2007.

DAIMLER, M. (2016). Pagan Portals-Gods and Goddesses of Ireland: A Guide to Irish Deities. John Hunt Publishing.

DINIZ, L. Mitos e arquétipos na Arteterapia: os rituais para se alcançar o inconsciente. Rio de Janeiro: Wak, 2010.

ELIADE, M. (1979). Ferreiros e alquimistas. Zahar ed.

FOLTZ, R. (2019). Scythian Neo-Paganism in the Caucasus: The Ossetian Uatsdin as a 'Nature Religion'. Journal for the Study of Religion, Nature & Culture, 13(3).

PRANDI, R. Ogum: caçador, agricultor, ferreiro, trabalhador, guerreiro e rei. Pallas, 2019.

SIQUEIRA, G. T. Hostilidade: Uma Revisão de Literatura no Referencial Teórico junguiano. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

VERGER, P. F. Orixás. Edizioni Associate, 2005.

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Sobre a autora: Ana Paula de Oliveira



Mandala Terapeuta, Arteterapeuta, Enfermagem Unicamp, Especialista Saúde Pública Unicamp. Projetos: Deusas e Mandalas e Mulheres Lobas – Estudo e vivência a partir dos Contos do Livro Mulheres que Correm Com Os Lobos. Atendimento utilizando a técnica das Mandalas Espontâneas.

Instagram: @ana.oliveira_terapiaexpressao


9 comentários:

  1. Maravilhoso texto! Maravilhosa proposta! Parabéns!!!

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  2. Maravilhoso texto! Maravilhosa proposta! Parabéns!!!

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  3. Parabéns!! Adorei seu trabalho. Criativo e interessante.

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  4. Belíssimo texto, Ana! Me tocou profundamente... Muito obrigada por tê-lo escrito!!

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  5. Sensacional, Ana!
    Escrita profunda e não conhecia a possibilidade da técnica que você nos apresenta. Bem significativa... restauradora. Parabéns!

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  6. Legal desconhecia o assunto vou estudar mais sobre isso, muito obrigada por compartilhar conosco.

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  8. Muito bom ! Parabéns.

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