segunda-feira, 8 de junho de 2020

VIVENCIANDO NOSSOS LIMITES COM ARTE, NA ARTE DE VIVER


Por Lidia Lacava - SP
lidialacava@gmail.com


Ao participar da palestra de Eliana Moraes – OS LIMITES E A CRIATIVIDADE – abri uma janela em minha memória que me fez recordar momentos em que ouvi ressoar palavras como: SIM... NÃO... PODE... NÃO PODE...! Essas palavras são apresentadas ao ser humano desde o momento de seu nascimento. A infância deixa marcas de várias situações em que tais mensagens nos eram ditas de maneira ríspida, doce, assertiva ou duvidosa. Sim, porque o limite pode vir de maneira duvidosa: “Será que realmente não poderá fazer? Mas... e se...?” O perfil daquele que dá o limite e do outro que o recebe varia muito, conforme as circunstâncias e os sujeitos.

Nesse passeio pelas fases da vida, deparo-me com uma leitura feita há tempos que falava sobre as três dimensões educacionais do “limite”, em uma obra de Yves de La Taille (2000), emérito professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Um dos significados da palavra “limite”, conforme explana esse professor, situa-se nas questões normativas onde se coloca o que é permitido e o que é proibido para o bem coletivo, como o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho. O princípio da isonomia é que caracteriza esse limite (embora saibamos que não é bem assim...).

Outro significado dado à palavra consiste na expressão “impor limites” quando se tem como alvo preservar a própria vida ou a intimidade da pessoa. Toca-se, neste caso, nas fronteiras daquilo que o sujeito deseja preservar: sua vida física, íntima, sua privacidade, seus valores, acertos ou desacertos.

Já o terceiro está relacionado à expressão “transpor limites” – esta carrega, junto a si, a ideia de maturidade e excelência. Busca-se ser melhor do que se é! Busca-se ir além, inovar, exercitar todo o potencial criador existente no sujeito, que se realiza por meio dos processos criativos que, nas próprias palavras de Fayga Ostrower, “está vinculado a uma série de ordenações e compromissos internos e externos” (2002, p.26).

É exatamente com este último sentido que percebo como a Arteterapia pode contribuir para que, neste momento repleto de desafios e de incertezas que estamos vivendo, consigamos ir além... muito além no sentido de buscar algo de novo, novas possibilidades em um tempo que se apresenta “estranho” e em um espaço externo/físico pequeno (nossa casa), que ampliou nosso espaço interno/existencial (nossas moradas internas).

Estamos aprendendo a viver polaridades, a viver o diferente, o que Edgar Morin (2000) traz, como uma das bases de sua pesquisa, o pensamento “complexo” – este termo, originário do latim complectere = significa aquilo que é tecido em conjunto. Assim, todas as características que atuam no ser humano, sentimentos e posturas, embora contraditórios e opostos, convivem não de maneira excludente, mas integradora. Homem sábio e louco; trabalhador e lúdico; prosaico e poético; aquele que experencia concretamente ou por meio do imaginário.

É dialogando essas polaridades que o homem deve fazer uso de sua imaginação, liberdade, criticidade e criatividade para se reinventar, para resgatar de dentro de si recursos internos de fé, coragem, destemor vivenciando a impermanência, isto é, a certeza de que tudo está em constante mudança.

Neste sentido, o arteterapeuta, ao entrar em contato com seus limites, exercita a característica do “transpor seus próprios limites” – transpor aquilo que permitirá que ele se renove, se reinvente, busque novas possibilidades para sua atuação profissional clínica e institucional. E, além disso, ele atua em muitas outras paragens, ao trazer para a realidade tudo o que alimenta o lado sensível, poético, lúdico e imaginativo do ser humano. Ele é o grande artista na arte do viver e reverbera todo seu conhecimento, sua sensibilidade, seu fazer aliado à criatividade para todos aqueles que estão à sua volta.

Convido Fayga Ostrower para, com sua reflexão, ampliar nosso pensar:

O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensívelcultural-consciente do homem e se faz presente nos múltiplos caminhos em que o homem procura captar e configurar as realidades da vida. Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências podem integrar-se em formas de comunicação, em ordenações concluídas, mas a criatividade como potência se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de se esgotar, liberando-se, se amplia (2002, p. 27).

É exatamente essa potência do criar que traz uma das marcas do ser arteterapeuta. Criar para ser, liberdade para existir de maneira mais coerente, integradora e realizadora. Criar raízes e asas – rever o passado para impulsionar o presente e poder voar, livremente, para aquilo que faz sentido no seu existir, sem deixar ficar no vazio as características do pertencimento que o enraíza em seu mundo pessoal e particular.

Quando falo em processos de criatividade, compartilho com vocês um dos conceitos da Gestalt-terapia que é o de “ajustamento criativo”. Para defini-lo trago as palavras de Beatriz Cardella em um de seus artigos da coleção Gestaltterapia (vol.2, 2014):

Ajustamento criativo é então a capacidade de pessoalizar, subjetivar e se apropriar das experiências que acontecem no encontro com a alteridade, processo contínuo no campo organismo/meio (2014, p.114).

Considero esse conceito uma das propostas da Gestalt-terapia que traz, em seu cerne, a possibilidade incessante de o ser humano tornar-se efetivamente “quem ele é” – a busca constante do “ser-si-mesmo” mediada pelo poder de criação. Neste sentido, a transposição de limites para exercitar a criatividade surge como algo que é urgente, que exige ser anunciado. Quando se fala em “ajustamento criativo” em um processo terapêutico, pontua-se a grande transformação daquilo que deverá ser transformado, desvelado como algo inovador e integrador na existência do sujeito.

Trazer esse conceito para a Arteterapia enriquece-a de maneira significativa, pois somente a Arte, em suas enormes variáveis, conseguirá evocar e desvelar no Homem a sua verdadeira essência. Somente ela dará coragem e fé para que o impulso da transformação aconteça.

Entendo que quando se fala de relação – “eu x tu / eu x isso” (Martin Bubber), deve-se pensar também no aqui-e-agora como um continuum, isto é, como um perdurar-se no momento presente, podendo “dar um tempo” para que o sentido maior da experiência aflore. Saber ajustar, discriminar o “para quê” de determinada situação, para depois poder ressignificá-la e integrá-la criativamente na própria existência.

O “ajustar”, como “ação de integrar(-se)”, traz a ideia de duas ou mais coisas que se amoldam, de sentimentos opostos que poderão fazer parte do sujeito, mas de maneira que se completem, conferindo e dando autoria a toda capacidade de subjetivar o “existir”. Busca-se um todo mais coerente e consciente, não deixando de validar medos e desafios que possam acontecer sempre.

Vivenciamos momentos de abertura, de ultrapassar limites, de entrega e aceitação que podem conferir ao “aqui-agora” das nossas relações, uma outra qualidade de vida, nos permitindo vislumbrar novas possibilidades de transformar-a-ação.

E a Arteterapia, nesse sentido, é generosa, pois ela chega devagarinho, aceitando o outro como é possível ele vir, buscando sempre, através de experimentos mediados pela tinta, colagem, argila, escrita poética, música e outros recursos facilitar o mergulho e o diálogo com os personagens que habitam as várias moradas interna de cada ser humano.

Encerro essa reflexão trazendo um pensamento de Ponciano Ribeiro, um dos grandes representantes da Gestalt-terapia atual, que enfatiza:

A pessoa humana é uma manifestação, é uma explicitação do mistério e da força do mundo presentes nele e, ao mesmo tempo, em que estar incluído no mundo limita sua liberdade, torna-o partícipe dessa força gigantesca que movimenta o Universo, fazendo a liberdade humana, ainda que limitada, infinitamente grande, como uma potencialidade eternamente disponível para entrar em ação (RIBEIRO, 2011 apud CARDELLA, 2014, p. 86).

Assim... quando o arteterapeuta se compromete a entrar em contato com seus próprios limites, certamente irá transpô-los com Arte na majestosa e desafiadora Arte de Viver.

REFERÊNCIAS:
CARDELLA, B.H.P. Artigo - Ajustamento criativo e hierarquia de valores ou necessidades, in FRAZÃO,L.M. & FUKUMITSU, K.O. Gestalt-terapia – conceitos fundamentais. Vol. 02. São Paulo: Editora Summus, 2014.
LA TAILLE, Y. DE. Limites: três dimensões educacionais. São Paulo: Ed. Ática 2000.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Ed. Cortez, 2000.
OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.

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Sobre a autora: Lidia Lacava



Caminho pelas trilhas da saúde e educação buscando o “ser criativo” e “transformador” que existe dentro de cada um de nós! Desafiador e valioso!!!


Com formação em Letras (Usp) e Direito (Puc) percebo que dar aulas em cursos de Pós-graduação em Psicopedagogia e Arteterapia é dar vez e voz ao que minha alma pede!

Várias formações me guiam nessa caminhada: Especialização em Psicopedagogia e Arteterapia (Instituto Sedes Sapientiae); Psicomotricidade (Instituto Pieron); Arte-reabilitação (AACD). Psicologia Analítica (Unicamp). Gestalt-terapia (Instituto de Gestalt).

Fiz Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie) buscando integrar Educação e Arte – esses estudos se transformaram em um livro: “Eros e Psiquê – um caminho possível para pensar a docência.” Tenho artigos publicados em outros livros e revistas. A palavra falada ou escrita aliada à arte, organiza meu pensar!

Amplio esses fazeres no AION - Espaço do Encontro, situado em Itu, e é nele que acontecem os “grandes encontros”!

Individualmente ou em grupo, os atendimentos e oficinas com grupos diversificados, se propõem a ser um lugar/espaço para alimentarmos nosso ser-criança, nosso ser-adulto, nosso ser em constante vir-a-ser... atemporal!!!

Você sempre será bem-vindo... aguardo sua presença!

9 comentários:

  1. Que texto riquíssimo! Parabéns, profa.Lidia e gratidão pelos caminhos percorridos através de cada palavra! Um verdadeiro presente e um texto de celebração e esperança no agir e criar pautado na generosidade ímpar que a Arteterapia tem em suas asas!

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  2. Grata pelo retorno, Caminhartes!
    Realmente os arteterapeutas têm um tesouro em mãos!!! Voemos!!!

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  3. Nossa, que texto, completo, que será lido por mim algumas vezes para muitas reflexões. E o que eu levo de bate-pronto deste texto ? “Transpor os meus próprios limites”.
    Lídia, Parabéns pelo seu primeiro (?) texto aqui no blog. Que venham muitos outros textos para continuar nos inspirando e nos alimentando.
    Um grande abraço,
    Claudia Abe

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  4. Cláudia, bom te receber por aqui! Realmente pensar os significados do termo "limite" nos faz ampliar, cada vez mais, nossas reflexões pessoais do "ser arteterapeuta" e sua atuação profissional! Reverberemos... Grata

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  5. Texto maravilhoso, trazendo o que é realmente o limite e o transpor os limites, convidando a Arteterapia como este instrumento. Gratidão e parabéns.

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  6. Grata pela mensagem, Ângela! Realmente estamos sendo colocados à prova... respirar fundo, nos alimentarmos de fé, coragem e crença de que é possível transpormos nossos limites! Sempre... basta um lampejo da nossa vontade Abçs

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. ... Interessante a sua criatividade. As luminárias também nos iluminam. Parabéns.

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  9. Grata Solange, pela presença por aqui... Sim... sempre somos iluminadas pela luz e brilho da Arteterapia.

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