segunda-feira, 4 de maio de 2020

PARTICULARIDADES DA ARTETERAPIA



Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com

Nesse meu último texto em sequência, surgido a partir da minha monografia de final do curso de psicologia, intitulada “Arte como transformação: articulações entre o pensamento de Vygotsky, a psicologia e a arteterapia”, abordarei três aspectos importantes que marcam a singularidade do trabalho de arteterapia em relação a outros trabalhos terapêuticos em que a arte está presente. Hoje, a arteterapia constitui-se num processo psicoterapêutico de características próprias, singulares. Apoia-se em abordagens psicológicas diferentes que compartilham da mesma ideia central de que a arte contribui para a expressão da subjetividade.

Uma das características fundamentais da arteterapia é o universo da materialidade, que consiste na representação de conteúdos internos, desconhecidos do indivíduo, através do uso de materiais diferentes em diversas formas de expressão artística, como o desenho, a pintura, a modelagem, a música, a dramatização, a dança, entre outras, com suas variadas linguagens (plástica, escrita, corporal, sonora). Essas atividades artísticas ampliam as possibilidades de expressão do indivíduo para além da linguagem verbal, embora esta também faça parte importante do processo arteterapêutico. Assim, é fundamental, para o arteterapeuta, o conhecimento não apenas da enorme gama de materiais existentes, mas também e principalmente das propriedades terapêuticas de cada um deles e de suas linguagens subjetivas. Cada tipo de material pode mobilizar uma determinada reação e emoção no indivíduo, cada produção do indivíduo possui um significado particular, relativo a seu universo, sendo, portanto, algo que diz sobre ele. Assim, a escolha do tipo de material a ser usado deverá ser feita a partir da escuta do indivíduo, a qual vai revelar, ao arteterapeuta capacitado e atento, as questões a serem trabalhadas e o momento psíquico do indivíduo. Segundo Christo (2009, p.14), “uma técnica só deverá ser utilizada quando ela fizer algum sentido no tema que o indivíduo estiver trazendo”. A autora afirma que o arteterapeuta deve escolher determinada técnica em função das temáticas que o indivíduo traz para o espaço terapêutico e do que o está mobilizando no dia da sessão, sem haver uma programação antecipada da técnica a ser utilizada. Além disso, Tavares e Prestes (2018) também lembram que, uma vez que a arteterapia pode ser usada com todas as faixas etárias, desde a infância até a velhice, as fases de desenvolvimento do indivíduo também devem ser levadas em consideração na escolha do material a ser usado (por exemplo, deve-se atentar para a dificuldade de manejo de certos materiais pelo idoso que já apresente alguma debilidade física). E também contará para essa escolha de técnicas e materiais plásticos o campo de atuação, que, hoje em dia, varia desde o trabalho em instituições psiquiátricas até os hospitais e clínicas de tratamento de dependentes químicos, por exemplo. Além disso, há que se considerar, por exemplo, se o trabalho é individual ou em grupo. Finalmente, a praticidade ou não de uma técnica também deve ser considerada: materiais de difícil aplicação (como a litogravura, por exemplo) tornam-se praticamente inviáveis num consultório convencional.

Conforme Philippini (1998), as primeiras atividades plásticas devem exigir desempenhos mais simples, que envolvam prazer e ludicidade, para não agravarem as resistências pertinentes a qualquer processo terapêutico inicial. É comum, nas primeiras sessões, o desejo do indivíduo de “agradar” ao terapeuta com um bom desempenho estético, o que é expresso pela fala, frequentemente ouvida nesses momentos: “Eu não sei desenhar”. Por isso, comumente se inicia o processo com trabalhos em colagem, nos quais a imagem já está pronta (mas que, assim mesmo, fornecerá informações sobre aspectos psicodinâmicos daquele momento do indivíduo). Segundo Philippini (1998), podem-se usar, também, manchas, rabiscos, papeis rasgados, entre outros elementos ausentes de forma, para que o indivíduo entenda que não precisa “fazer bonito”. A utilização de materiais expressivos poderá variar de materiais que possibilitam maior controle, como a colagem, até os de maior liberação e fluidez, como a pintura e a modelagem.

A gradação das diferentes linguagens expressivas costuma variar do plano bidimensional para o tridimensional. De acordo com Philippini (1998), pode-se e deve-se observar quais modalidades expressivas mais se adequam e mais facilitam o processo do indivíduo, de forma que ele possa resgatar, ativar e expandir suas possibilidades criativas singulares. Na abordagem junguiana, seguida por Angela Philippini (1995), esse processo criativo visa desbloquear e trazer à consciência o lado sombra, conteúdo desconhecido da psique humana, através da produção de imagens, que representam símbolos importantes para aquele indivíduo em seu processo de autoconhecimento.

A lista de materiais que podem ser utilizados em arteterapia é infindável e vai desde a colagem, o desenho, a pintura e a modelagem, passando pelo bordado, o mosaico, o uso de sucata até a contação de histórias, a tecelagem e a escrita criativa. Por isso, cabe ao arteterapeuta o estudo e experimentação constante de novos materiais e novas técnicas artísticas, em suas próprias produções, além do uso em seu trabalho com os pacientes. Para o arteterapeuta e sua formação, é fundamental que a experimentação artística seja parte de sua vida, de seu próprio processo de autoconhecimento, o que fará com que seu trabalho com o outro ganhe profundidade, intuição e empatia (PAIN E JARREAU, 1996).

Outro aspecto fundamental do processo arteterapêutico é a atuação do arteterapeuta na condução desse processo. Além de oferecer o material mais adequado ao indivíduo dentro de suas temáticas e possibilidades momentâneas, cabe ao arteterapeuta atuar como mediador do processo. Segundo Urrutigaray (2011, p.98), o profissional de arteterapia “deve buscar, intencionalmente, que o indivíduo perceba suas características e qualidades individuais presentes na obra (...)”, o que pode trazer à consciência acontecimentos psíquicos ainda não percebidos pelo paciente. Como explica Urrutigaray (2011), o trabalho do arteterapeuta deve ser o de estimular a produção do paciente e acompanhá-la até o fim, observando as reações e a fala do indivíduo enquanto executa seu trabalho artístico.

Assim, o papel do arteterapeuta será o de acompanhar o paciente, numa trajetória de incertezas, experimentações, construções e desconstruções, cujo norteador serão as produções pictóricas e a fala do paciente. Cabe ao arteterapeuta ser o facilitador do processo, ao mesmo tempo em que deve evitar racionalizações e interpretações reducionistas das imagens criadas. Por intermédio da sua escuta sensível e de seu olhar atento, o arteterapeuta capacitado convida o indivíduo a explorar suas criações artísticas para a conscientização de conteúdos até então desconhecidos, que podem, assim, ser elaborados, integrados e trabalhados com autonomia pelo próprio paciente. Nesse sentido, é de fundamental importância que o paciente se sinta à vontade no setting terapêutico, termo que se usa para o local onde a sessão acontece. Deve ser um ambiente tranquilo, acolhedor e sagrado  ̶  “sagrado no sentido de permitir a observação da intimidade, da particularidade de cada indivíduo” (URRUTIGARAY, 2011, p. 118).

Outra peculiaridade importante da arteterapia é o fazer criativo, que permite ao indivíduo agir sobre suas questões, não apenas falar sobre elas. Moraes (2018), que é psicóloga, arteterapeuta e escritora, define o conceito de “agir criativo”:

O agir amparado pelo continente do setting arteterapêutico através da criação é uma especificidade da Arteterapia dentre os procedimentos terapêuticos. Dessa forma, o setting configura-se como um ambiente suportado pela transferência com o arteterapeuta para que o cliente/paciente vivencie-se no fazer, articule-se em si, alcançando níveis de consciência mais elevados. Que, através da criação, ele se perceba em suas repetições, resistências, sintomas, e tenha a oportunidade de enfrentá-las. Que em meio a essa experiência tome decisões sobre esse enfrentamento (ou não) e que assim se responsabilize por si como autor e protagonista de sua obra/história, alcançando uma realidade nova em dimensões novas. (MORAES, 2018, pp. 75-77)

A respeito do fazer criativo, Philippini (1996, p. 3) menciona o poder das mãos como instrumentos terapêuticos. Explica que, em tempos muito antigos, na Índia, por exemplo, as mãos ligavam-se ao Divino, através de rituais e posturas, apresentando uma função simbólica e transcendente. Em arteterapia, resgata-se o valor das mãos como instrumentos de construção, ao se “por a mão na massa”; mãos que traçam linhas, fios, que moldam, rasgam, amassam, colam... numa infinidade de movimentos e ações, que transformam o exterior (materiais) e o interior (psique do indivíduo). O indivíduo sai do passivo para um estado ativo. Boechat, prefaciando a obra de Urrutigaray (2011) reflete que é preciso libertar as mãos ocidentais, aprisionadas por uma cultura racionalizante, “cerebral”, que tiraniza a vivência emocional. Ainda segundo esse autor, o psiquismo permeia o corpo todo – inclusive braços e mãos –, logo é necessário que se libertem energias esquecidas. E a arteterapia cumpre esse importante papel, ajudando na recuperação de atividades abandonadas e no renascimento de habilidades já esquecidas.

É importante lembrar que esse texto foi escrito no ano passado, logo antes do isolamento social. Hoje, algumas práticas criativas ainda usadas em atendimentos online precisam contar com a limitação, a falta ou a escassez de materiais, o que exige do profissional o exercício de sua flexibilidade e criatividade. É um desafio, que pode ser contornado, por exemplo, com o uso de práticas artísticas imateriais, como contos, música, vídeos, filmes, poesias... e muita imaginação. A tecnologia, que muitas vezes pode despotencializar o trabalho das mãos, agora vem para nos auxiliar na obtenção de recursos digitais, provando ser, também, um instrumento útil e válido para o trabalho criativo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


·         BOECHAT, W.; A libertação das mãos. In: URRUTIGARAY, M.C. Arteterapia: a transformação pessoal pelas imagens. 5ed. Rio de Janeiro: Wak, 2011.
·         CHRISTO, E. Criatividade em arteterapia: pintando e desenhando, recortando, colando & dobrando. 5 ed. Rio de Janeiro: Wak, 2009.
·         MORAES, E. Pensando a Arteterapia. 1 ed. Divino de São Lourenço, ES: Editora Semente Editorial, 2018.
·         PAIN, S.; JARREAU, G. Teoria e Técnica da Arte-Terapia: a compreensão do sujeito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
·         PHILIPPINI, A. Mas o que é mesmo arteterapia? Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de Janeiro, volume V, n. 5, 1998. Pomar.
·         -------------------. Materialidade e arteterapia. Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de Janeiro, volume III, n. 3, 1996. Pomar.
·         -------------------. Universo Junguiano e Arteterapia. Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de Janeiro, volume II, n. 2, 1995.
Pomar.
·         TAVARES, J.; PRESTES, V. Arteterapia como estratégia psicológica para a saúde mental. Revista de Inicação Científica da Unifarma, Paraná, vol. 3, n., 2018. Disponível em: <http://revista.famma.br/unifamma/index.php/RIC/article/view/392> Acesso em: 04/09/19.
·         URRUTIGARAY, M.C. Arteterapia: a transformação pessoal pelas imagens. 5ed. Rio de Janeiro: Wak, 2011.

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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires





Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®,  Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo

A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.

3 comentários:

  1. Muito bom seu artigo, Isabel. Lembro-me da frase da Nadia Boulanger, emérita professora de piano do Conservatório de Paris, que dizia que as 'Mãos pensam". Ou melhor:"As mãos se igualam ao pensamento ou rivalizam com ele".

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  2. Sim, no mergulho em nossa subjetividade podemos encontrar pistas, conexões sobre nós mesmos.. Acho também fundamental não estabelecermos relações mecanicistas com o mundo ¨real". (Onde está o real: na vigília ou nos olhos acordados, bem arregalados?).É tudo tão delicado! Obrigada Isabel pelo artigo.

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