segunda-feira, 20 de junho de 2016

OBSERVAÇÕES DA CLÍNICA

Por Maria Cristina de Resende
crisilha@hotmail.com


Foto: Fernando Hargreaves # Não Palavra Arteterapia

Ao longo desta semana, durante os atendimentos da clínica, comecei a observar mais profundamente o impacto das experiências de experimentação livre dos materiais expressivos usados na Arteterapia. Sabemos que o uso de tais ferramentas expressivas expõem diversos conteúdos emocionais que habitam nossa alma mais profunda e que as imagens produzidas a partir de técnicas diretivas ou não, podem (ou não), nos indicar áreas emocionais muito afetadas. Mas o que minha observação começou a apontar era o quanto o processo de experimentação livre pode abrir caminhos para uma experimentação maior na vida e de vida!

Essa é a história de um jovem rapaz que durante muito tempo fora visto como um ser diferente, um pouco mais acanhado, com dificuldades de ir para o mundo. Um dia ele precisou seguir adiante, mas algo o impedia de fazer: a insegurança. Sua mãe sabia que era hora de ir para o mundo, mas seus olhos e gestos sutis não permitiam que o jovem seguisse, “ele é muito imaturo, não sabe se virar”. Um a um, os que conheciam conquistavam novas etapas da vida enquanto seu desejo de conquistar aumentava, assim como suas dúvidas.

Em um dos atendimentos sugeri: “Vamos até os materiais e observe aqueles que te capturam”. Assim ele fez, escolheu materiais, a princípio desconexos, texturas diferentes, cores diversas e nenhum direcionamento. Apenas a sugestão: “O que você pode fazer com as escolhas que fez?” E então, o olhar foi longe, como Pollock diante de uma tela em branco, assim mergulhou o olhar do jovem rapaz. Distante, duvidoso e inseguro, sem saber o que fazer, nem por onde começar. O tempo era dele, não do relógio, e eu estava li, ao seu lado, paciente, apenas ao seu lado.

E então ele começou a se aproximar dos materiais, sentir suas possibilidades, organizá-los diante do suporte e imaginar. Sim, o fundamental: imaginar! E então alguma coisa foi sendo construída, alguma relação foi sendo estabelecida e no final a surpresa e o sorriso. “Sim, eu consegui fazer”. Sim, ele consegue, mas sua insegurança o impede de se aproximar de suas habilidades e naquele momento ele experimentou fazer algo mesmo sem saber o quê, fazer algo mesmo com medo de não saber fazer. Porém, o ato de fazer o estimulou a continuar fazendo até que sua libido fosse satisfeita, até que sua obra estivesse terminada.

Essa experiência pode ser considerada uma metáfora para a vida. O estímulo ao uso de materiais estimula o indivíduo a perceber o que o captura, aproximando-o de seus desejos, estimula sua imaginação abrindo caminho para que novas imagens surjam em sua mente sem a censura do certo e errado.  E principalmente estimula o “fazer criativo”, ou seja, o que Argan chama de agido, ou seja, o processo, o movimento de fazer algo com consciência de si dentro deste processo. Assim ele fez, percebeu que a insegurança diante de materiais aparentemente sem relação não o impediu de criar, e enquanto fazia, enquanto se entregava ao devir, a insegurança se tornou a certeza de que “eu sou capaz”.
“[...] a arte é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades de ação.”[1]
O que a experiência da clínica me mostrou ao longo de quase uma década de atendimentos é que a realidade que se cria dentro do consultório precisa ser potencializada até que transborde para fora daquele espaço terapêutico, e então as experimentações de materiais se transformam em experimentações na vida e, portanto, de vida!



[1] ARGAN, Giulio. Arte Moderna. 5ª reimpressão. Ed. Companhia das Letras. 1998.

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