segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

TODA BELEZA SERÁ CELEBRADA

 


Por Tania Moreira, RJ/Fortaleza/CE

caminhartes@hotmail.com

 

 "A arte é uma redenção.

 Ela livra da vontade e, portanto, da dor.

Torna as imagens da vida cheias de encanto."

 Arthur Schopenhauer

 

             O grande filósofo grego Aristóteles, no primeiro capítulo de sua obra Metafísica afirma que é natural no ser humano o desejo de conhecer.  Para o filósofo, todos os seres humanos nascem para conhecer, absorver o novo, experimentar algo nunca visto ou percebido. Isso gera crescimento, aprendizado, expansão da capacidade de compreensão da realidade, mudança da cosmovisão. Por isso, somos dotados de um complexo sistema de percepção sensorial que nos possibilita absorver o mundo como se apresenta a cada um.

            Dentre tantas formas de absorver conhecimento, viajar é uma das mais prazerosas, imersivas e abrangentes de conhecer lugares, culturas, modo de vida e ser impactado pelas belezas dos lugares e suas culturas tão diferentes e algumas, milenares.

            Para quem aprecia e ama lugares onde as obras de artes fazem parte da rotina do povo parece muito natural o desejo de conhecer e explorar passo a passo tais locais, seja da ordem da beleza natural ou obras de artes como pinturas, esculturas, arquitetura.

            Mas, o que acontece quando o indivíduo é completamente imerso e excessivamente exposto a uma quantidade imensa de beleza em um curto período? 

Uma viagem de experiência estética transformadora

            Visitar a Itália é um sonho para muitas pessoas, pois segundo pesquisas é o quinto lugar mais visitado do mundo. Este sempre foi meu sonho, desde menina. Um sonho adiado por muitos anos, diante das prioridades que a vida nos impõe. Mas o dia chegou. Preparei-me da melhor forma que pude: estudei um pouco do lindo idioma, os costumes mais básicos de algumas cidades, selecionei os locais que gostaria de conhecer, deixando espaço no extenso roteiro para o inusitado também. E o inusitado se apresenta, pode ter certeza. Havia um misto de euforia da menina com a alegria da arteterapeuta que desejava ir além dos que os livros apresentam.

          Conhecer os monumentos históricos e icônicos realmente nos afetam. Como não se emocionar diante de construções milenares como Coliseu, Panteão, os corredores do museu do Vaticano, das magníficas Duomo de Milão e Florença? É tudo tão grandioso e incrível que só podemos concordar com Cardella (2012), “os lugares nos afetam. Promovem experiências estéticas”.


A experiência estética

           Ainda é possível ouvirmos que na Arteterapia não há preocupação com a beleza do trabalho realizado, e sim com a produção em si, ou seja, com o processo.  Sim, é verdade que na Arteterapia o processo é fundamental. Entretanto, não se pode prescindir da necessidade fundamental de nos conectarmos com o belo, com aquilo que nos possibilita de sublime, grandioso, gracioso, poético ou até o contrário, que nos cause sensações desagradáveis, desgostos, horror, rejeição. 

              Entretanto, é necessário pensarmos em experiência estética para além do campo das artes, ampliarmos para aspectos e fenômenos vinculados à sensibilidade, pois a palavra tem origem no grego,"aisthésis", e traz significados como: experiência, sensibilidade, conhecimento sensível, sentimento, sensação, percepção. É uma mudança de percepção da vida, um aprofundamento dos aspectos mais sensíveis. Uma reumanizarão da nossos sentidos para tudo que nos cerca, para o que amamos e realmente faz sentido para nós.

 Segundo Reis:

A percepção estética é diferente da percepção cotidiana. A percepção estética não visa ao objeto segundo a sua finalidade prática ou utilitária, mas implica a abertura e entrega do sujeito a um mundo sensível que o convida não a decifrá-lo, mas a senti-lo. Na percepção estética, o sujeito não visa ao Telos (o conceito que define o objeto para o pensamento), mas ao eidos (aquilo que se vê, aparência, forma)

 O belo, o harmônico e o estético surgem como algo impresso não só na produção artística, mas também na qualidade do viver. (Ciornai, p.66)                 

            Ou ainda como diz Simonini:

       A experiência estética constitui-se basicamente por um feliz encontro. Ela não implica unicamente em absorver a beleza natural ou artística, por estarmos integrados a uma ou à outra, ou seja, não é a beleza da natureza nem o belo da arte que entra em nós; mas sim, nós é que penetramos nesses universos....A experiência estética pode desnudar o indivíduo por inteiro, com a sua estrutura orgânica, com os seus sentimentos e as suas emoções, mexendo com suas ideias e suas convicções, com a sua maneira de pensar e agir.                                                                                                                                                      

Beleza em excesso: Tudo é muito e demais!   

            Há algum tempo venho buscando prestar atenção ao meu redor, ter um olhar mais contemplativo para os objetos que encontro, durante as caminhadas, por exemplo. Pode ser uma pedra, uma flor nova, uma árvore com galho quebrado, a luz do sol quando incide de maneira diferente na paisagem.  Treinar e sensibilizar o olhar para aquilo que é naturalmente comum, mas que pode provocar sensações de bem-estar e prazer, é um exercício interessante de contemplação, na minha concepção. Assim, tenho conseguido registrar através de fotos, algumas imagens interessantes.

                                “A arte é um recurso que permite retornarmos a uma concepção mais precisa do que é valioso ao operar contra o hábito e nos convidar a redimensionar o que amamos ou admiramos.” (Botton, Armstorong, p.59)

             Voltando à viagem, chegamos a uma das cidades consideradas o berço do Renascimento, Florença. É fascinante caminhar pelas ruas estreitas, vielas repleta de histórias, nomes pitorescos, locais com abundância de obras de artes, além de uma arquitetura esplêndida, seja pelos monumentos ou simplesmente pelas paredes e portas belíssimas de várias igrejas. São inúmeras praças, chafarizes, fontes, igrejas, diversas esculturas por todo lado. Nada é simplório. Há significado em cada lugar por onde pisamos. As galerias como Uffizi, da Academia de Belas Artes, os jardins de Boboli, Palácio Pitti, Palácio Del Vecchio, possuem um extenso acervo de obras de artes gregas e romanas, em sua maioria. Sem mencionar que cada igreja concentra em si uma riqueza imensurável, tanto arquitetônica quanto de representações de artes, como pinturas, afrescos, lustres, vitrais de tirar o fôlego. Um destaque especial para o Davi de Michelangelo, com pouco mais de 5 metros de altura e pesando mais de 5 toneladas de puro deslumbre. É considerado o ápice do trabalho do gênio Michelangelo. Entretanto, contemplar suas obras inacabadas foi emocionante também.  Enfim, tudo é muito e demais. É tanta beleza ao redor que rapidamente fui invadida por uma sensação de deslumbramento, de alumbramento, em um estado absoluto de “não palavra”. Porque é isso mesmo. Não há palavras suficientes para descrever tanta beleza, grandiosidade e esplendor. Um verdadeiro arroubo de estímulos sensoriais e de percepções.  É difícil absorver tudo aquilo em tão pouco tempo. A vontade é que o tempo congele para que possamos degustar cada pedaço, cada esquina daquele lugar.

                             “Um dos aspectos mais estranhos da experiência da arte é o seu ocasional poder de nos levar às lágrimas: não diante de uma imagem angustiante e assustadora, mas de uma obra de extraordinária graça e encanto que nos confrange por alguns instantes. O que acontece conosco nesses momentos especiais de intensa reação à beleza?”

                                             Botton, Armstrong, p.16

 

                                              


 Obra: O escravo barbudo (1536), Michelangelo             



           Davi, Michelangelo (1501-1504)


SÍNDROME DE STENDHAL

               A Síndrome de Stendhal, hiperculturemia ou síndrome de Firenze (Florença) é considerada uma condição psicossomática causada pela exposição à abundante riqueza artística de Florença. Seu nome vem do escritor francês Marie-Henri Beyle, mais conhecido pelo pseudônimo Stendhal, que, em 1817, descreveu sua visita à capital da Toscana: "Fiquei em uma espécie de êxtase com a ideia de estar em Florença.  Fui acometido de uma forte palpitação do coração... minha força vital se esvaiu de mim e andei com medo constante de cair no chão.”

            Em 1979, a “Síndrome de Stendhal” foi nomeada e descrita pela italiana Graziella Magherini, psiquiatra do Hospital Santa Maria Nouva, em Florença e autora do livro La sindrome di Stendhal: il malessere del viaggiatore di fronte alla grandezza dell’arte (A Síndrome de Stendhal: o Mal-Estar do Viajante Diante da Grandeza da Arte).

            Após avaliar e observar 106 pacientes, todos turistas, que relataram sintomas como sensação de desmaio, vertigens, pânico, alguns com dificuldades para respirar, quando estiveram em contato com as obras de arte como as esculturas de Michelangelo e as pinturas de Botticelli. 

            Em um simpósio em 1999, Magherini apresentou sua metodologia e estudos, com relato de alguns casos mais interessantes, sendo a maioria estrangeiros que chegando à Florença, se sentiram realmente sufocados pela impossibilidade de escapar da presença da arte e cultura renascentista presente em toda cidade. E ressalta que, de alguma forma, todos reagimos à beleza e a arte de forma visceral, “pois a viagem pela arte é uma viagem da alma” e pode sim, despertar sentimentos em algumas pessoas, por vezes, incontroláveis.       

           A Síndrome de Stendhal ainda não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V) e nem na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a saúde (CID), entretanto as pesquisas e relatos continuam até hoje.

A Arteterapia e o esvaziamento dos excessos

             Retornando à rotina, percebi que estava com alguma dificuldade de traduzir em palavras tudo que vivi durante os dias intensos da viagem.  As palavras pareciam insuficientes para esvaziar-me das experiências vividas. Obviamente há inúmeros fatores que contribuíram para essa sensação, como a necessidade de descanso, fuso horário, entretanto, pensava como a Arteterapia poderia auxiliar um paciente que trouxesse uma demanda semelhante, pois não é nada raro, em contextos diferentes, recebermos pessoas com tais queixas, em especial profissionais da área da saúde e educação, pessoas que se excederam de muitas maneiras e trazem suas dores no corpo e na alma, sem se aperceberem que precisam de escoar o excesso de tudo.

“Estupendamente funda, a beleza, quando é linda demais, dá uma imagem feita só de sensações, de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo, naquele instante não nos falta nada”. (Morais, p.179) 

              No caso específico da necessidade de escoamento, a opção foi produzir uma imagem que representasse minimamente aquela sensação: técnica mista de colagem com guache em bastão com glitter. As cores são intensas e vibrantes, mas apresenta uma maciez que foi interessante na hora da execução. Pois, a ideia era que este “escoamento” do coração fosse algo suave, harmônico, belo. Este primeiro movimento foi muito benéfico e abriu novas possibilidades.

                                   


                                              Acervo pessoal: Metade coração pulsando e transbordando

                  Caminhando sob a orientação da minha arteterapeuta, a segunda opção foi usar tinta guache ou acrílica. Utilizei um papel com gramatura alta (300g), tinta acrílica azul com adição de um fluidificador (base de resina acrílica), muito utilizado para técnicas de pintura fluida. Assim, a tinta não ficaria tão viscosa, facilitando o derramar sobre a superfície escolhida. O objetivo principal era promover a sensação de escorrer o que fosse possível naquele momento.              

                Oliveira afirma:

A atividade de lançar as tintas sobre diferentes suportes mobiliza todo o corpo, em especial a respiração e a parte superior do corpo. E, com a mesma intensidade, mobiliza a fantasia, em função das cores, luzes, sombras e formas que vão surgindo a partir dos gestos que as mãos vão fazendo sobre a tela, tecido ou papel.

  


 
Imagem:Freepik.com

 

                 As experiências continuam acontecendo, através de um desdobramento mais criativo, sem tanto bloqueio, inclusive este texto é uma das modalidades, pois compartilhar esta experiência é uma outra forma de escoar, derramar sobre os leitores as emoções vivenciadas naquele momento. 

Conclusão

         Seja  ouvindo uma música linda, que nos eleva, ou diante de uma obra que nos arrebata a alma por sua beleza infinita, podemos contar com as ferramentas que a Arteterapia nos proporciona para extrair de dentro de nós, dos nossos pacientes, as pérolas que nem sempre as palavras são capazes de traduzir. O fazer arteterapêutico é por si só uma celebração a nossa beleza interna. 

              Citando a artista plástica e professora Mazé Leite, “nos sentimos em arrebatamento, nos sentimos inteiros, como se não pudesse haver separação entre nós e todo universo. Estes momentos, para quem tem a sorte de ter acesso a eles, são uma absoluta necessidade para o ser humano”.

  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BOTTON, A.; ARMSTRONG, J. Arte como terapia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

CIORNAI, Selma (org.). Percursos em Arteterapia: Ateliê terapêutico, arteterapia no trabalho comunitário, trabalho plástico e linguagem expressiva, arteterapia e história da arte. São Paulo: Summus, 2004.

MORAIS, Eliana. Pensando a Arteterapia: volume 2 . 1.ed. São Paulo: Semente Editorial, 2019.

 

ARTIGOS E SITES: 

REIS, Alice C, A experiência estética sob um olhar fenomenológico. Periódicos de Psicologia – PePsic.  Disponível em https://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v63n1/v63n1a09.pdf,                                                 Acesso 04/12/2024 

SINDROME DE STENDHAL. Disponível em: https://amarello.com.br/2014/12/cultura/sindrome-de-stendhal/ . Acesso em: 11/11/ 2024. 

SINDROME DE STENDHAL: Loucura gerada pela beleza. Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/sindrome-de-stendhal . Acesso em: 25/11/2024 

SIMONINI, Wanelytcha. A Experiência Estética. Disponível em: http://academiabrasileiradeartes.org.br/a-experiencia-estetica/ . Acesso em 11/11/2024 

LEITE, Mazé, A BELEZA SALVARÁ O MUNDO. Disponível em: /https://grabois.org.br/2016/03/03/a-beleza-salvara-o-mundo/ . Acesso em:02/12/2024 

OLIVEIRA, Santina R,  POTÊNCIA SIMBÓLICA E EXPRESSIVA DA PINTURA NA ARTETERAPIA.   Disponível em: https://www.ijba.com.br/blog/a-potencia-simbolica-e-expressiva-da-pintura-na-arteterapia. Acesso em 03/12/2024


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Sobre a Autora: Tania Moreira



Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede). Atuou de 2021 a 2023 como Arteterapeuta na Clínica Conecta/IPREDE, compondo equipe multidisciplinar no atendimento de crianças no Transtorno do Espectro Autista.

Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia

Textos publicados no Blog:

ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017

DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018

O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018

LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018

 DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019

ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA – 2021

 

EXPERIENCIAR É BEBER DA PRÓPRIA FONTE – 2022

COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023

PRÁTICAS ARTETERAPÊUTICAS COM CRIANÇAS NO TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA - 2023

2 comentários:

  1. Tania,
    que texto é esse ?!!!!!
    Já começa com uma foto belíssima e inspiradora...Veneza ???
    Transformar uma experiência de viagem em um texto gostoso de se ler, ah, que delícia, do início ao fim. Completo. Você conseguiu inclusive me trazer memórias afetivas por aqui.
    A Síndrome de Stendhal, quando ouvi sobre ela pela primeira vez, chegou a me assustar, mas foi preciso vivenciar essa experiência em Firenze (Florença), para entender sua potência.
    Essa viagem, com certeza ampliou seu repertório, e assim, você irá utilizá-lo inúmeras vezes junto à Arteterapia.
    Seu texto transborda beleza...seu lado técnico está presente, mas você deu espaço para seus sentimentos e emoções.
    Muito em breve, você não falará mais Florença, Milão...e sim Firenze, Milano...
    Você se transformou, tornando isso nítido na foto da sua biografia ao final do texto.
    É, o Velho Continente mexeu mesmo com você!
    Bem vinda à Itália, bem vinda à Europa, bem vinda ao Mundo !
    Parabéns!!! Você alimentou sua alma !!
    Um grande beijo, Claudia Abe

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    1. Obrigada, Cláudia! Suas palavras são estimuladoras e enchem o coração de alegria.

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