Por Tania Moreira, RJ/Fortaleza/CE
caminhartes@hotmail.com
"A arte é uma redenção.
Ela livra da vontade e, portanto, da dor.
Torna as
imagens da vida cheias de encanto."
Arthur
Schopenhauer
O grande filósofo grego Aristóteles, no
primeiro capítulo de sua obra Metafísica afirma que é natural no ser humano o
desejo de conhecer. Para o filósofo,
todos os seres humanos nascem para conhecer, absorver o novo, experimentar algo
nunca visto ou percebido. Isso gera crescimento, aprendizado, expansão da
capacidade de compreensão da realidade, mudança da cosmovisão. Por isso, somos
dotados de um complexo sistema de percepção sensorial que nos possibilita
absorver o mundo como se apresenta a cada um.
Dentre tantas formas de
absorver conhecimento, viajar é uma das mais prazerosas, imersivas e
abrangentes de conhecer lugares, culturas, modo de vida e ser impactado pelas
belezas dos lugares e suas culturas tão diferentes e algumas, milenares.
Para quem aprecia e ama
lugares onde as obras de artes fazem parte da rotina do povo parece muito
natural o desejo de conhecer e explorar passo a passo tais locais, seja da
ordem da beleza natural ou obras de artes como pinturas, esculturas,
arquitetura.
Mas, o que acontece quando o
indivíduo é completamente imerso e excessivamente exposto a uma quantidade
imensa de beleza em um curto período?
Uma
viagem de experiência estética transformadora
Visitar a Itália é um sonho
para muitas pessoas, pois segundo pesquisas é o quinto lugar mais visitado do
mundo. Este sempre foi meu sonho, desde menina. Um sonho adiado por muitos
anos, diante das prioridades que a vida nos impõe. Mas o dia chegou. Preparei-me
da melhor forma que pude: estudei um pouco do lindo idioma, os costumes mais
básicos de algumas cidades, selecionei os locais que gostaria de conhecer,
deixando espaço no extenso roteiro para o inusitado também. E o inusitado se
apresenta, pode ter certeza. Havia um misto de euforia da menina com a alegria
da arteterapeuta que desejava ir além dos que os livros apresentam.
Conhecer os monumentos históricos e icônicos
realmente nos afetam. Como não se emocionar diante de construções milenares
como Coliseu, Panteão, os corredores do museu do Vaticano, das magníficas Duomo
de Milão e Florença? É tudo tão grandioso e incrível que só podemos concordar
com Cardella (2012), “os lugares nos afetam. Promovem experiências estéticas”.
A experiência
estética
Ainda é possível ouvirmos que na Arteterapia
não há preocupação com a beleza do trabalho realizado, e sim com a produção em
si, ou seja, com o processo. Sim, é
verdade que na Arteterapia o processo é fundamental. Entretanto, não se pode
prescindir da necessidade fundamental de nos conectarmos com o belo, com aquilo
que nos possibilita de sublime, grandioso, gracioso, poético ou até o
contrário, que nos cause sensações desagradáveis, desgostos, horror,
rejeição.
Entretanto, é necessário pensarmos em experiência estética para além do
campo das artes, ampliarmos para aspectos e fenômenos vinculados à
sensibilidade, pois a palavra tem origem no grego,"aisthésis", e traz
significados como: experiência, sensibilidade, conhecimento sensível,
sentimento, sensação, percepção. É uma mudança de percepção da vida, um aprofundamento
dos aspectos mais sensíveis. Uma reumanizarão da nossos sentidos para tudo que
nos cerca, para o que amamos e realmente faz sentido para nós.
Segundo Reis:
A percepção estética
é diferente da percepção cotidiana. A percepção estética não visa ao objeto
segundo a sua finalidade prática ou utilitária, mas implica a abertura e
entrega do sujeito a um mundo sensível que o convida não a decifrá-lo, mas a
senti-lo. Na percepção estética, o sujeito não visa ao Telos (o conceito que
define o objeto para o pensamento), mas ao eidos (aquilo que se vê, aparência,
forma)
O belo, o harmônico e o estético surgem como
algo impresso não só na produção artística, mas também na qualidade do viver. (Ciornai,
p.66)
Ou
ainda como diz Simonini:
A experiência estética constitui-se
basicamente por um feliz encontro. Ela não implica unicamente em absorver a
beleza natural ou artística, por estarmos integrados a uma ou à outra, ou seja,
não é a beleza da natureza nem o belo da arte que entra em nós; mas sim, nós é
que penetramos nesses universos....A experiência estética pode desnudar o
indivíduo por inteiro, com a sua estrutura orgânica, com os seus sentimentos e
as suas emoções, mexendo com suas ideias e suas convicções, com a sua maneira
de pensar e agir.
Beleza em
excesso: Tudo é muito e demais!
Há
algum tempo venho buscando prestar atenção ao meu redor, ter um olhar mais
contemplativo para os objetos que encontro, durante as caminhadas, por exemplo.
Pode ser uma pedra, uma flor nova, uma árvore com galho quebrado, a luz do sol
quando incide de maneira diferente na paisagem.
Treinar e sensibilizar o olhar para aquilo que é naturalmente comum, mas
que pode provocar sensações de bem-estar e prazer, é um exercício interessante
de contemplação, na minha concepção. Assim, tenho conseguido registrar através
de fotos, algumas imagens interessantes.
“A arte é um
recurso que permite retornarmos a uma concepção mais precisa do que é valioso
ao operar contra o hábito e nos convidar a redimensionar o que amamos ou
admiramos.” (Botton, Armstorong, p.59)
Voltando à viagem, chegamos a uma das cidades consideradas o berço do
Renascimento, Florença. É fascinante caminhar pelas ruas estreitas, vielas
repleta de histórias, nomes pitorescos, locais com abundância de obras de
artes, além de uma arquitetura esplêndida, seja pelos monumentos ou
simplesmente pelas paredes e portas belíssimas de várias igrejas. São inúmeras
praças, chafarizes, fontes, igrejas, diversas esculturas por todo lado. Nada é
simplório. Há significado em cada lugar por onde pisamos. As galerias como
Uffizi, da Academia de Belas Artes, os jardins de Boboli, Palácio Pitti,
Palácio Del Vecchio, possuem um extenso acervo de obras de artes gregas e
romanas, em sua maioria. Sem mencionar que cada igreja concentra em si uma
riqueza imensurável, tanto arquitetônica quanto de representações de artes,
como pinturas, afrescos, lustres, vitrais de tirar o fôlego. Um destaque especial
para o Davi de Michelangelo, com pouco mais de 5 metros de altura e pesando
mais de 5 toneladas de puro deslumbre. É considerado o ápice do trabalho do
gênio Michelangelo. Entretanto, contemplar suas obras inacabadas foi
emocionante também. Enfim, tudo é muito
e demais. É tanta beleza ao redor que rapidamente fui invadida por uma sensação
de deslumbramento, de alumbramento, em um estado absoluto de “não palavra”.
Porque é isso mesmo. Não há palavras suficientes para descrever tanta beleza,
grandiosidade e esplendor. Um verdadeiro arroubo de estímulos sensoriais e de
percepções. É difícil absorver tudo
aquilo em tão pouco tempo. A vontade é que o tempo congele para que possamos
degustar cada pedaço, cada esquina daquele lugar.
“Um dos aspectos
mais estranhos da experiência da arte é o seu ocasional poder de nos levar às
lágrimas: não diante de uma imagem angustiante e assustadora, mas de uma obra
de extraordinária graça e encanto que nos confrange por alguns instantes. O que
acontece conosco nesses momentos especiais de intensa reação à beleza?”
Botton, Armstrong, p.16
Obra: O escravo
barbudo (1536), Michelangelo
Davi, Michelangelo
(1501-1504)
SÍNDROME DE
STENDHAL
A
Síndrome de Stendhal, hiperculturemia ou síndrome de Firenze (Florença) é
considerada uma condição psicossomática causada pela exposição à abundante
riqueza artística de Florença. Seu nome vem do escritor francês Marie-Henri
Beyle, mais conhecido pelo pseudônimo Stendhal, que, em 1817, descreveu sua
visita à capital da Toscana: "Fiquei
em uma espécie de êxtase com a ideia de estar em Florença. Fui acometido de uma forte palpitação do
coração... minha força vital se esvaiu de mim e andei com medo constante de
cair no chão.”
Em
1979, a “Síndrome de Stendhal” foi nomeada e descrita pela italiana Graziella
Magherini, psiquiatra do Hospital Santa Maria Nouva, em Florença e autora do
livro La sindrome di Stendhal: il malessere del viaggiatore di fronte alla
grandezza dell’arte (A Síndrome de Stendhal: o Mal-Estar do Viajante Diante da
Grandeza da Arte).
Após
avaliar e observar 106 pacientes, todos turistas, que relataram sintomas como
sensação de desmaio, vertigens, pânico, alguns com dificuldades para respirar,
quando estiveram em contato com as obras de arte como as esculturas de
Michelangelo e as pinturas de Botticelli.
Em um
simpósio em 1999, Magherini apresentou sua metodologia e estudos, com relato de
alguns casos mais interessantes, sendo a maioria estrangeiros que chegando à
Florença, se sentiram realmente sufocados pela impossibilidade de escapar da
presença da arte e cultura renascentista presente em toda cidade. E ressalta
que, de alguma forma, todos reagimos à beleza e a arte de forma visceral, “pois
a viagem pela arte é uma viagem da alma” e pode sim, despertar sentimentos em
algumas pessoas, por vezes, incontroláveis.
A
Síndrome de Stendhal ainda não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM V) e nem na Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a saúde (CID), entretanto as pesquisas e
relatos continuam até hoje.
A Arteterapia
e o esvaziamento dos excessos
Retornando à rotina, percebi que estava com
alguma dificuldade de traduzir em palavras tudo que vivi durante os dias
intensos da viagem. As palavras pareciam
insuficientes para esvaziar-me das experiências vividas. Obviamente há inúmeros
fatores que contribuíram para essa sensação, como a necessidade de descanso,
fuso horário, entretanto, pensava como a Arteterapia poderia auxiliar um
paciente que trouxesse uma demanda semelhante, pois não é nada raro, em
contextos diferentes, recebermos pessoas com tais queixas, em especial
profissionais da área da saúde e educação, pessoas que se excederam de muitas
maneiras e trazem suas dores no corpo e na alma, sem se aperceberem que
precisam de escoar o excesso de tudo.
“Estupendamente
funda, a beleza, quando é linda demais, dá uma imagem feita só de sensações, de
modo que, apesar de não se ter consciência desse todo, naquele instante não nos
falta nada”. (Morais, p.179)
No caso específico da necessidade
de escoamento, a opção foi produzir uma imagem que representasse minimamente
aquela sensação: técnica mista de colagem com guache em bastão com glitter. As
cores são intensas e vibrantes, mas apresenta uma maciez que foi interessante
na hora da execução. Pois, a ideia era que este “escoamento” do coração fosse
algo suave, harmônico, belo. Este primeiro movimento foi muito benéfico e abriu
novas possibilidades.
Acervo
pessoal: Metade coração pulsando e transbordando
Caminhando sob a orientação
da minha arteterapeuta, a segunda opção foi usar tinta guache ou acrílica.
Utilizei um papel com gramatura alta (300g), tinta acrílica azul com adição de
um fluidificador (base de resina acrílica), muito utilizado para técnicas de
pintura fluida. Assim, a tinta não ficaria tão viscosa, facilitando o derramar
sobre a superfície escolhida. O objetivo principal era promover a sensação de
escorrer o que fosse possível naquele momento.
Oliveira afirma:
A atividade
de lançar as tintas sobre diferentes suportes mobiliza todo o corpo, em
especial a respiração e a parte superior do corpo. E, com a mesma intensidade,
mobiliza a fantasia, em função das cores, luzes, sombras e formas que vão
surgindo a partir dos gestos que as mãos vão fazendo sobre a tela, tecido ou
papel.
Imagem:Freepik.com
As experiências continuam
acontecendo, através de um desdobramento mais criativo, sem tanto bloqueio,
inclusive este texto é uma das modalidades, pois compartilhar esta experiência
é uma outra forma de escoar, derramar sobre os leitores as emoções vivenciadas
naquele momento.
Conclusão
Seja ouvindo uma música linda, que nos eleva, ou
diante de uma obra que nos arrebata a alma por sua beleza infinita, podemos
contar com as ferramentas que a Arteterapia nos proporciona para extrair de
dentro de nós, dos nossos pacientes, as pérolas que nem sempre as palavras são
capazes de traduzir. O fazer arteterapêutico é por si só uma celebração a nossa
beleza interna.
Citando a artista plástica e
professora Mazé Leite, “nos sentimos em arrebatamento, nos sentimos inteiros,
como se não pudesse haver separação entre nós e todo universo. Estes momentos,
para quem tem a sorte de ter acesso a eles, são uma absoluta necessidade para o
ser humano”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOTTON, A.; ARMSTRONG, J. Arte
como terapia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
CIORNAI, Selma (org.). Percursos
em Arteterapia: Ateliê terapêutico, arteterapia no trabalho comunitário,
trabalho plástico e linguagem expressiva, arteterapia e história da arte.
São Paulo: Summus, 2004.
MORAIS, Eliana. Pensando a
Arteterapia: volume 2 . 1.ed. São Paulo: Semente Editorial, 2019.
ARTIGOS E SITES:
REIS, Alice C, A experiência estética sob um olhar fenomenológico. Periódicos
de Psicologia – PePsic. Disponível em https://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v63n1/v63n1a09.pdf, Acesso
04/12/2024
SINDROME DE
STENDHAL. Disponível em: https://amarello.com.br/2014/12/cultura/sindrome-de-stendhal/ . Acesso em: 11/11/ 2024.
SINDROME DE
STENDHAL: Loucura gerada pela beleza. Disponível em: https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/sindrome-de-stendhal . Acesso em: 25/11/2024
SIMONINI, Wanelytcha. A Experiência Estética.
Disponível em: http://academiabrasileiradeartes.org.br/a-experiencia-estetica/ . Acesso em 11/11/2024
LEITE, Mazé, A
BELEZA SALVARÁ O MUNDO. Disponível em: /https://grabois.org.br/2016/03/03/a-beleza-salvara-o-mundo/ . Acesso em:02/12/2024
OLIVEIRA, Santina R, POTÊNCIA SIMBÓLICA E
EXPRESSIVA DA PINTURA NA ARTETERAPIA. Disponível
em: https://www.ijba.com.br/blog/a-potencia-simbolica-e-expressiva-da-pintura-na-arteterapia.
Acesso em 03/12/2024
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Sobre a Autora: Tania Moreira
Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em psicopedagogia/UERJ. Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede). Atuou de 2021 a 2023 como Arteterapeuta na Clínica Conecta/IPREDE, compondo equipe multidisciplinar no atendimento de crianças no Transtorno do Espectro Autista.
Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia
Textos publicados no Blog:
ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016
PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017
FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017
DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018
O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018
LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018
DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019
ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020
ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA – 2021
COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023
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