Por
Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
Sigo pensando sobre os
materiais “desinteressantes”. Em um texto anterior compartilhei algumas
reflexões sobre o trabalho com sucata nas práticas da Arteterapia. CLIQUE AQUI Neste
contexto, outro material que me atravessa profundamente são os retalhos.
Meu diálogo com os retalhos se
iniciou há alguns anos, quando na clínica arteterapêutica me deparei com uma
senhora polonesa, que trazia em sua biografia a Segunda Guerra Mundial. Em um
primeiro atendimento dispus sobre a mesa uma série de materiais, dos mais
variados estilos, tamanhos, formas, cores, texturas... E seus olhos pararam no
“saco de retalhos de papel”. Iniciou-se seu processo arteterapêutico quando ela
disse algo que nunca mais esqueci: “Eu
sou uma criança da guerra. Eu sei aproveitar os retalhos que a vida me dá.”
Sobre a história desta grande
mulher, publiquei neste blog uma “Exposição Virtual” de uma das fases de seus
trabalhos: uma série de colagens com retalhos de seus sucessivos exames
oftalmológicos. Para conhecer mais desta história CLIQUE AQUI.
Com ela aprendi a valorizar
ainda mais os retalhos, “restos” de trabalhos dos pacientes que passam pela
minha clínica. E assim vou alimentando a “caixa de retalhos” que compõe meu
repertório de materiais. Desta caixa (re)nasceram muitos trabalhos, histórias,
(re)construções, na arte e na vida.
Hoje compartilho algumas
aplicações que a “caixa de retalhos” podem despertar em um setting
arteterapêutico. Em sua essência, ela trará o convite ao integrar, recompor,
recriar, reconstruir, reinventar, ressignificar; Desta forma, algumas demandas
terapêuticas se mostram como um pedido intuitivo para que o arteterapeuta
promova o encontro deste material com o sujeito que fala.
Desconstruções
“Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”
Chico
Buarque em Roda Viva
Uma das
demandas que aparecem na clínica de forma recorrente são aqueles momentos em
que o sujeito percebe que velhos modelos não se aplicam mais. O que parecia
estabelecido como construções, relações, status quo, não estão funcionando como
antes. O tempo rodou, a roda viva passou, o mundo cresceu e a única
possibilidade se dá em ser empurrado para fora da zona de conforto.
Uma vez
constatado que aquelas expectativas não existem mais, restam-se seus
fragmentos. É tempo de redescobrir e reconstruir novas possibilidades, novas
composições, novos cenários.
É
simbólico visualizar que aqueles fragmentos não foram produzidos pelo próprio
sujeito, pois análogo à vida, aquela desconstrução não era seu desejo. Nas
palavras de Chico “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis
que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”.
Apropriar-se
dos fragmentos de um desejo desconstruído e responsabilizar-se pela
recomposição de um destino, este é o processo.
Em
meio ao caos
“Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”
Chico
Buarque em Roda Viva
Em
muitos momentos esta desconstrução não é feita de forma paulatina. Pelo
contrário. A roda viva passa com toda sua fúria causando o verdadeiro caos. A
morte de um ente querido, uma demissão inesperada, ou mesmo a instalação de uma
guerra.
São
momentos em que aquelas “lindas roseiras” que cultivamos com todo afeto e
investimos de nós mesmos, são carregadas abruptamente pela roda viva e
instala-se o caos. Espanto, dor, raiva, “não palavra”.
Aqui uma
referência histórica me ampara. A colagem adentrou oficialmente para História
da Arte no início do século XX, um período marcado pela emergência da Primeira
Guerra Mundial. Em meio ao advento da Arte Moderna, o Cubismo e o Dadaísmo
foram movimentos artísticos que investiram de forma estrutural em seus
processos com a colagem como expressão artística. Creio eu que assim:
“... os
artistas intuitivamente começavam através da arte, gerar
movimentos que reverberariam no coletivo. Buscando algum
possível, através da colagem os artistas fracionavam, selecionavam elementos
fragmentados, rejuntavam, recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo
que instiga a resiliência, individual e coletiva, movimentos que seres
humanos atravessados pelas destruições das guerras, mais do que
nunca necessitariam acessar.” (MORAES, 2017)
Nós no
Brasil não temos a experiência cotidiana de uma guerra declarada, mas de forma
não nomeada ela sim, nos assombra em forma de violências. Para além disto, nós somos
sujeitos da guerra da vida. Uma vez que ela se apresenta e se instala o caos,
como aproveitar os retalhos que a vida nos dá?
Memórias
e heranças simbólicas
Mas nem só de assombros vivem
os retalhos. Eles também carregam memórias. Cada retalho que compõe a caixa tem
os dedos, as histórias, a energia daqueles que os produziram. Cada forma foi
desenhada por alguém e pode servir de subsídio para a (re)construção de um
outro.
Em alguns momentos, pessoas
ensimesmadas pela dor, adquirem uma visão egocentrada (com seu ego no centro).
Para seu cenário, apenas um olhar, uma perspectiva, uma possibilidade (em geral
pessimista).
Ampliar o olhar para a caixa
de retalhos também significa buscar recursos em um espaço onde outras pessoas caminharam
e contribuíram para sua construção. Ali existem heranças simbólicas que podem
ser acolhidas como verdadeiros ouros e integradas em um espaço encaminhado para
o novo.
Seguindo meu diálogo com os
(aparentemente) “desinteressantes”, quantas riquezas uma caixa de retalhos pode
guardar...
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Referência
Bibliográfica:
MORAES, Eliana. Uma arte que
nos salve da loucura destes tempos: Dadaísmo e Arteterapia. Blog Não Palavra,
2017.
__________________________________________________________________________________Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Bem a proposito no dia de hoje, apos a destruição de parte de nossa memoria historica...
ResponderExcluirMuito simbólico voltar a ler o blog com este artigo....comecei com o de Colagem.🤩
ResponderExcluirOntem estava a pensar de onde vinha minha paixão pela colagem....Não fui criança de guerra mas de roça, do interior, onde havia abundância em diversos recursos, menos coisas prontas. O máximo que tinha era uma loja de tecidos. Lembro de minha avó fazendo imensas colchas de retalhos, de minha mãe e tias fazendo de tudo quanto é bordado e barras de macramê a crochê em sacos de algodão, transformando em lindas toalhas de banho,mesa e panos de pratos. Até hoje ganho de presente de minha mãe panos de prato! Chego à conclusão que aprendi com minha ancestralidade e com alegria a "juntar, a recriar". Gratidão a estas mulheres maravilhosas a você e esta senhora 🤲🌹