Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
Robert
Bly coloca a imagem de que arrastamos uma sacola psíquica atrás de nós. Dentro
dela há tudo aquilo que não corresponde com as demandas e exigências do mundo
exterior.
Para
ele uma criança representa um globo de energia de 360º. É muita potência!
Suficiente para gerar desconfortos em nosso mundo civilizado. Não corresponde,
portanto, aos bons modos que uma comunidade deve ter. Dessa maneira, o mundo (pais, professores)
vão tolhendo tal potência. Porém há uma necessidade nisso, a criança realmente
precisa se adaptar ao mundo circundante, até mesmo para se perceber como um
indivíduo pertencente a um grupo, mas existe um custo para isso.
O
custo é o peso da sacola. Toda a potência que antes naturalmente existia, agora
não pode ser totalmente expressa. Ou seja, aquilo que desobedece às regras e a
ordem do mundo é jogado nessa sacola. Podemos até especificar alguns conteúdos
comuns da sacola de cada pessoa. Considerando que seguimos, mesmo que
inconscientemente, um imaginário cristão e, na contemporaneidade, vivemos a
força apolínea voltado ao sistema capitalista, já podemos imaginar o que existe
dentro da sacola de cada indivíduo ocidental moderno.
Através
da ótica da psicologia arquetípica, nossas forças arquetípicas são
representadas como os deuses. Esse texto tentará tirar da sacola um dos deuses
que há muito tempo habita no fundo da mesma, posto, incialmente, pela igreja.
Dioniso é o deus que tem se acostumado a ficar na sombra, no escuro, e como
toda força posta na sacola, ele escapa de maneiras distorcidas, afetando a vida
do indivíduo ou até mesmo do coletivo.
De
todo modo, tentar tirar Dioniso da sacola já é uma tarefa difícil, escrever
sobre ele é ainda mais, pois sua expressão atinge outros canais. Suas
manifestações, descritas pelos rituais dionisíacos, eram perpassados pelo
corpo. A comunhão com o deus, num sentido de experiência mística e espiritual,
se fazia no terreno corporal.
Como
essa força arquetípica foi banida há muito tempo ainda é possível que ocorram
muitas interpretações errôneas ao falar de Dioniso. A força dionisíaca não
representa o deus beberrão e potencialmente sexualizado como comumente vemos. O
corpo com Dionísio tem uma profundidade que abrange algo vivo e de organização
própria. Inclusive ao colocar em palavras corremos sérios riscos de reduzi-lo
daquilo que ele realmente é.
Lopéz-Pedraza
em seu livro ‘Dioniso no Exílio’ retrata: “Dioniso sempre é o corpo. Isto
significa abandonar o intelecto e estar no corpo, sentir o corpo”. (p. 41)
Diante dessa afirmação podemos considerar o quanto ter Dioniso dentro da sacola
é extremamente desvantajoso para o processo de individuação de cada pessoa. O
intelecto consegue explicar a psique, como um objeto, mas o corpo é a própria
psique, como sujeito, que se experimenta; experiência esta que encontramos no setting
terapêutico.
Dessa
forma, toda vez que contatamos a realidade corpórea estamos contatando a
realidade dionisíaca e, por sua vez, entrando no terreno fértil da psique. Mas
por que esse terreno se apresenta tão assustador para a maioria dos casos?
A
força de Dioniso já é irracional por natureza. Ela já nos vem distorcida por
suas características de ambivalência e de ser fora do controle na perspectiva
consciente. Porém, cabe a nós apenas sentir essa força. No entanto, por causa
de nossa tendência em empurrá-la sacola adentro, não nos permitimos nem sentir,
o que faz com que a distorção se amplie em proporções perturbadoras. Aí irrompe
Dioniso em sua forma patológica e devastadora, e essa patologia se instala
justamente em seu próprio terreno. O corpo e a psique fértil se transformam,
agora, em um terreno estéril ou, como diz Stanley Keleman, na terra devastada.
Há um desconhecimento absoluto do que se passa internamente e as emoções, antes
não reconhecidas, são ainda mais atacadas. Dionísio e o corpo são combatidos
por medicamentos e mais controle, ou seja, uma tentativa de empurrá-lo
novamente para a sacola.
Manter-se
nessa oscilação acaba exigindo mais da nossa saúde psíquica do que a sensação
de “conforto” quando recolocamos Dioniso na sacola. Assim vão, também, as
emoções, a intuição e os impulsos. A nossa autenticidade, portanto, fica
“ensacolada”. Dessa forma, podemos afirmar que a nossa autenticidade está
intimamente ligada a Dionísio. Tão intimamente ligada, que a distorção dessa
caraterística é interpretada como loucura. Tudo aquilo que extravasa, que toma
diferentes caminhos do habitual, assim como, a intensidade e o profundo têm
relação com o que é de mais autêntico em nós mesmos.
A
loucura, de certa forma, faz parte dos rituais dionisíacos, mas, sendo o corpo
o representante máximo da comunhão com o deus, toda a emersão dessa força é
contida no mesmo. López-Pedraza esclarece a diferença entre uma possessão
dionisíaca e a histeria. A possessão, que se revelava na dança, era uma maneira
de entrar em contato com o deus, naquele exato momento do ritual; a histeria,
por outro lado, “(...)supõe uma ausência de corpo psíquico(...)” (p. 55),
fazendo com que exista um transbordamento desorientado de aspectos
inconscientes, ocorrendo em momentos considerados inoportunos para o
consciente. Em outras palavras, não há corpo consciente para segurar na
histeria, uma que vez a realidade corpórea se encontra na sacola que
carregamos.
Friso
a realidade corpórea, pois esta difere de corpo. Dioniso preenche a realidade,
onde permite deixar o corpo no seu estado natural. Este estado representa a
vitalidade, ação e a comunicação do mesmo, onde a psique pulsa através de
emoções e ideias. Conforme Estés:“Na psique instintiva, o corpo é considerado
um sensor, uma rede de informações, um mensageiro com uma infinidade de
sistemas de comunicação - cardiovascular, respiratório, ósseo, nervoso,
vegetativo, bem como emocional e o intuitivo.” (p. 251)
Atualmente
o corpo não condiz com seu estado natural, ele se encontra mortificado pelas
intenções da mente. Por exemplo, o emudecemos com remédios que nos impede de
sentir dor (a dor é um tipo de fala corporal) e o escravizamos, o forçando a
entrar em forma, com dietas rígidas e exercícios excessivos, para moldá-lo à
uma estrutura diferente da original. Entrar em contato com o corpo vai por
outro viés, o viés do sentir.
O
contato com Dioniso, portanto, constela esse estado natural, como diz
López-Pedraza:“(...)significa sentir-se em seu próprio corpo, na emoção
particular do momento em que se está vivendo.”(p. 54). Dessa forma, tem-se uma
consciência da emoção e de como e onde ela se instala na realidade
corpórea.
No
contexto clínico: corpo e arte
No
setting terapêutico o corpo se presentifica mais que a palavra. Esta pode ser
manipulada, o corpo não. Este escancara a psique com seus complexos e sintomas.
Assim, trazer a potência dele pode trazer benefícios para o processo
terapêutico. O corpo identifica, contém e, paradoxalmente, dissolve a emoção
que ainda não foi elaborada, essa é a psicologia dionisíaca. Diz López-Pedraza:
“(...) Dioniso permite uma perspectiva arquetípica para relacionar-se e para
diferenciar nossas emoções, como uma via de acesso ao mundo interior.” (p.45).
Sabendo que esse acesso ao mundo interior se encontra, em muitos casos,
embotado ou até mesmo impossibilitado, o corpo oferece o vaso para que a emoção
possa ser experenciada, ou pode até ser visto como um fazer criativo dentro da
experiência terapêutica. Cláudia Brasil coloca a importância do corpo na
análise como o nascimento de uma nova consciência. Dar forma através do ato
criativo significa dar corpo. E para autora: “(...) corporificar é tornar real,
é dar um nome, um lugar para ideia ou fantasia.” (p. 62)
A
utilização da arte na clínica possibilita que os complexos saiam do campo do
abstrato e tomem forma, se corporifiquem. Este processo está sob desígnio de
Dioniso, pois este é o deus que não reside no Olimpo e sim na terra junto com
os mortais. Ou seja, através dos rituais/processos criativos, ele consegue trazer
para a vivência no aqui e agora. Os verbos “corporificar” e “encarnar”
representam movimentos de aterrar (voltar para a terra).
Robert
Bly diz que quanto maior a sacola, menor a energia que a pessoa tem no seu
consciente. Assim, o processo de individuação passa pelo desconforto ou até
mesmo pelo pânico de abrir a sacola. Mas durante o processo, há a possibilidade
de se surpreender e até mesmo de se encantar com as descobertas que possam
surgir. Como um quarto que se manteve há muito tempo trancado, podemos
encontrar nele coisas que nos remetam até uma certa alegria, mas que por conta
das circunstâncias externas foram obrigadas a serem confinadas. A partir desse
trabalho energias podem ser liberadas.
Dioniso
é uma dessas energias e a comunhão com esse deus nos desperta a autenticidade,
emoções, impulsos, sensações e até mesmo a poesia (Dioniso desceu ao Hades em
busca da poesia para salvar a cidade de Atenas (Aristófanes apud
Hillman)). Tais elementos se apropriam no corpo, trazendo a sua potência e fazendo
com que a realidade corpórea retorne ao seu estado natural. Este é um dos
caminhos para a conquista da saúde psíquica.
Precisamos do corpo, e dessa
forma, precisamos de Dioniso.
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BLY, Robert, In
ZWEIG, Connie. ABRAMS, Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra. 1. ed. São
Paulo: Cultrix, 1994.
BRASIL, Claudia. Cores, formas e expressão: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana
BRASIL, Claudia. Cores, formas e expressão: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana
ESTÉS, Clarissa
Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
HILLMAN, J. O sonho e o mundo
das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013
LOPEZ-PEDRAZA, Rafael.
Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus,
2002.
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Sobre a Autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.
Que belíssimo texto... parabéns pelo blog.
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