"O sono da razão produz monstros" Capricho 43
Liane Esteves – RJ
lianeesteves@gmail.com
A arte
tem importância fundamental na história da humanidade. Desde as expressões mais
antigas do homem cunhadas nas paredes das cavernas até os dias atuais, as
produções artísticas são testemunho de uma história pessoal e coletiva
estritamente relacionada a seu ambiente e época. Revelam aspectos muitas vezes
indecifráveis ou inadequados para os costumes e a cultura de determinado tempo
e local. Fazer um recorte histórico para melhor compreender os motivos e as
questões socioculturais subjacentes às manifestações artísticas propicia o
entendimento da dimensão psicológica por trás da criação das obras de arte.
Através da psicologia analítica podemos buscar uma forma de compreender, por
exemplo, a criação de obras grotescas, sombrias e que de alguma forma subvertem
as normas acadêmicas e os costumes de uma época.
Enquanto
indivíduos, buscamos uma unidade diante das polaridades que teimam em nos
cindir. Luz e trevas, bem e mal, deus e diabo dançam no desenrolar da história
e de nossas vidas. Ideias trevosas de repressão diante das luzes de novos
ideais teimam em travar uma batalha enquanto não aprendermos a dialogar com
elas e lhes dar a devida importância.
Neste
sentido algumas tentativas de diálogo são feitas, entre elas podemos citar as
criações artísticas. O universo da arte e da expressão artística envolve uma
série de fatores determinantes que contribuem para aflorar no artista questões
caras ao seu tempo. Além das particularidades pessoais e biográficas, o
contexto histórico e social no qual o artista está inserido muito influencia
sua vida psíquica e consequentemente sua produção artística.
Entender
os pares dessa dança de opostos na criação artística e também nos trabalhos
artísticos produzidos em processos terapêuticos como a arteterapia e
psicoterapia, pode auxiliar na compreensão dos mecanismos psíquicos envolvidos.
Acredito ser valoroso compreender a possibilidade de integração da sombra na
configuração estética. Jung nos deixou
como exemplo o Livro Vermelho ilustrado com as imagens que produziu oriundas
desse diálogo interno.
Para ilustrar
essa hipótese escolhemos o pintor e gravador espanhol Francisco de Goya e
Lucientes (1746-1828). O contexto da Espanha à época de Goya, sob o peso de um
regime absolutista e da tradição da igreja católica, frente às luzes da
revolução francesa e dos ideais iluministas são importantes na compreensão dos
aspectos acima citados.
"Aonde vai a mamãe?" Capricho 65
Goya
era pintor da corte espanhola, dotado de prestígio e profundamente envolvido
com os ideais iluministas. Em 1792 adquiriu uma grave doença que deixou como
sequela uma surdez permanente, provocando uma grande crise em sua vida e uma
transformação em sua obra. Todo um
cenário político e religioso afeta sua vida, seus amigos intelectuais são
perseguidos e a inquisição espanhola ganha novo fôlego. Paralelamente aos
retratos que fazia para a corte e a nobreza, passa a desenvolver uma série de
obras em que irá revelar uma sátira da sociedade espanhola de seu tempo,
sobretudo da nobreza e do clero, e também representar seres fantásticos e
delírios absurdos. Destaco aqui sua série de 80 gravuras intitulada Los Caprichos. Nestas gravuras pôde
explorar e inovar com auxílio dos efeitos da técnica da água-forte e água-tinta,
criando gradações de manchas do branco ao preto além de deformações e exageros
nas representações dos vícios e das atitudes questionáveis de sua sociedade.
Criticava o fanatismo religioso, as superstições do povo, o clero e a
Inquisição.
Podemos
aqui conjecturar que a doença e a surdez de Goya teriam facilitado sua
interiorização, mudado sua atitude e consequentemente sua criação artística. Seriam
suas pinturas e gravuras (repletas de visões oníricas, violência, sátiras e
críticas aos costumes, ao clero e ao regime absolutista) a expressão de seu
inconsciente e das sombras reprimidas? A irrupção de imagens grotescas em sua
obra seria a expressão da sombra pessoal do artista e também da sombra cultural
de seu país?
"Não escaparás" Capricho 72
Segundo
Jung, a sombra abarca todos os aspectos de nossa personalidade que
desconhecemos, negamos, achamos inaceitáveis e também aspectos da vida coletiva
pelos quais nos deixamos influenciar. Representa as características que
detestamos nos outros, sendo portanto, o oposto de nossa personalidade
consciente. Ter consciência da própria sombra é doloroso e difícil, razão pela
qual projetamos nos outros o que permanece rejeitado na região sombria do
inconsciente, sendo uma forma de defesa para aquilo que não aceitamos em nós. A
região da sombra, na estrutura tipológica de Jung, seria a que envolve a função
inferior e a terceira função auxiliar, em contraposição à região
"iluminada" da nossa consciência regida pela função principal e pela
segunda função auxiliar.
A
formação da sombra se inicia na infância, durante o desenvolvimento do ego,
quando aspectos da personalidade vão sendo reprimidos ou negados em função de
uma adaptação ao ambiente externo. A sombra faz parte do inconsciente pessoal
do indivíduo e funciona como um tampão entre a consciência e o inconsciente
coletivo. Dessa forma, a sombra tem a importante função de impedir que
conteúdos arquetípicos invadam a consciência, evitando um colapso psíquico.
A
sombra, porém, apresenta também caraterísticas positivas, construtivas e
criativas necessárias à nossa consciência e que, portanto devem ser postas em
prática e não reprimidas ou negadas.
Contém potenciais de desenvolvimento desconhecidos pelo consciente,
podendo nos conectar aos nossos instintos e formas espontâneas de agir. Marie
Louise Von Franz sugere uma renúncia da vaidade e orgulho do ego para que seja
possível vivenciarmos aspectos que foram, equivocadamente, por ele considerados
negativos.
"Até seu avô" Capricho 39
A
sombra também se manifesta socialmente. Toda a sorte de desentendimentos entre
pessoas, grupos e comunidades são projeções dos aspectos inconscientes da
sombra. Eventos em massa estão sujeitos a contágios coletivos, como os eventos
históricos da Inquisição, Nazismo, entre outros.
Integrar
à consciência áreas sombrias da psique, nos tornarmos “íntegros”, seria parte
do processo de individuação. Para tanto, é fundamental nos confrontarmos com
nossa sombra e promover um diálogo entre ela e a persona, de forma a compensar
as polaridades entre ambas. Assim sendo, nossa integridade depende do bom
relacionamento entre nossas “entidades” psíquicas, o que pressupõe o
conhecimento das mesmas.
Para
Jung, a saúde de nossa psique está condicionada às relações harmônicas entre
consciente e inconsciente. Reconhecer as imagens arquetípicas do inconsciente
manifestadas nos sonhos, visões, sintomas e doenças e poder integrá-las à
consciência, superando uma percepção unilateral das experiências, é uma forma
de lançar luz nas áreas sombrias do inconsciente e avançar no processo de
individuação. Pressupõe-se que Goya teria feito uma espécie de diálogo com o
sombrio de seu inconsciente através de sua criação artística.
Hal Stone e Sidra Winkelman afirmam que é
“preciso uma grande coragem para permitir que a voz do demoníaco se expresse,
pois muito daquilo que ela tem a dizer é inaceitável para os nossos valores
tradicionais” (Zweig, pg. 311). É notória a coragem de Goya na fidelidade que
teve aos seus valores e à sua arte perante as perseguições inquisitórias de seu
tempo. Tal atitude corajosa fez dele um dos maiores artistas da história cuja
obra influenciou gerações de artistas e movimentos artísticos como o
Romantismo, o Expressionismo e o Surrealismo.
"Linda mestra" Capricho 68
Referências
Bibliográficas:
ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
JUNG, C. G. O Homem e seus símbolos. Rio de
Janeiro: Harper Collins, 2017.
_________. O eu e o inconsciente. O.C. Vol. 7/2.
Petrópolis: Vozes, 2018.
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo.
O.C., Vol. 9/1. Petrópolis: Vozes, 2017.
_________. A Função Transcendente. In: _______. A
natureza da psique. Obras Completas de C. G. Jung, Volume VIII/2. Petrópolis:
Vozes, 2000.
_________. Adaptação, individuação e coletividade.
In.: _______. A vida simbólica: escritos diversos. Obras Completas de C. G.
Jung Volume XVIII/2. Tradução de Edgar Orth. Petrópolis: Vozes, 1998.
_________. Da formação da personalidade. In:
________. O Desenvolvimento da personalidade. Obras Completas de C. G. Jung.
Volume XVII. Tradução de Frei Valdemar do Amaral. 2ª Edição. Petrópolis: Vozes,
1986.
TODOROV, T. Goya à sombra das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ZWEIG, C. e ABRAMS, J. Ao encontro da sombra – O potencial oculto
do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix.
_____________________________________________________________________
Sobre a autora: Liane Esteves
Arteterapeuta e Arte-educadora, especialista em História da Arte e
pós graduanda em Psicologia Junguiana. Faz atendimentos individuais e facilita
oficinas e vivências em Arteterapia.
Leciona
Artes Visuais na rede pública de ensino do Rio de Janeiro. Tem interesse em
Arte, Psicologia, Yoga, Vedanta, Espiritualidade, Sustentabilidade, Cinema,
Dança e Paisagismo. Acredita na Harmonia, Amor e Respeito entre os Seres.
Vi o filme As sombras de Goya duas vezês e sempre me compadeço da angústia do personagem Francisco de Goya, que ao perceber que a sua omissão com relação a sua retratada (magnifico quadro) demonstra uma expressão de muita dor...
ResponderExcluirAdorei o artigo! Acho que Goya representa muito bem mesmo uma das mais belas meia-luzes sobre nossas humanas sombras íntimas e socioculturais...
ResponderExcluirParabéns!!! Artigo muito interessante e gostoso de ler 😘... Não conhecia Goya... Maravilhoso
ResponderExcluir