Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
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Há
algum tempo comecei a me debruçar nas obras de James Hillman. Foi e ainda é uma
relação ambivalente. Em um ponto, me desperta um encantamento de ver a profunda
perspectiva que ele faz da vida (trazendo nesta o seu potencial psíquico). Mas outro,
é uma perspectiva que nos tira do eixo, e entende-se eixo como as bases da
psicologia moderna que conflui com nossa forma de apreensão e percepção da
consciência do ego, analítica, racional que, nas palavras do mesmo, representa
a visão diurna.
James
Hillman foi um analista junguiano renomado, que a partir de suas reflexões e
experiências, deu forma à psicologia arquetípica. Tal psicologia vem com uma proposta direta de
questionar o fazer psicologia, não só na “ciência” que leva seu próprio nome,
mas o fazer psicologia de uma forma ampla que abarca as experiências do mundo.
Para conhecê-lo mais a fundo, deixo como sugestões algumas obras dele: “Re-vendo a psicologia”, “O mito da análise”,
“Suicídio e alma”, “Ficções que curam”.
Foi
nessa proposta de questionar o fazer psicologia que, ao ler e digerir Hillman,
saí do eixo. E é aí que nos deparamos no como a psicologia estudada se encontra
num terreno há muito tempo gasto, contaminado e viciado pelas perspectivas
desde o século XIX. A orientação e a visão da psicologia, como bem sabemos,
moldou-se em formas para compreender e apreender a psique. No entanto, Hillman
colocou em seus livros a ideia interrogativa: Como a psique pode ser
compreendida através de formas, uma vez que ela é plural e profunda? E assim
partimos no caminho de não saber o que é psique, mas simplesmente enxergá-la
como realidade viva e que, esta realidade, está em qualquer e todo lugar, mas é
preciso se aprofundar para vê-la. Afirma Hillman: “A tarefa da psicologia é
oferecer um caminho e encontrar um lugar para a alma dentro do seu próprio
campo.” (2010, p. 26)
Dessa
forma, ao experienciar a psique nas situações,
estamos vendo a alma, que para Hillman, tem seu movimento muito mais
presente e veemente do que o movimento do ego e sua psicologia. Diz ele: “A
alma se faz na rota do mundo”. (2013, p. 78) Podemos compreender que, em um
passo que o ego dá, lá nas nossas profundezas, existe um mundo inteiro de
deuses que se intercruzam, fazendo com que esse mundo anímico reverbere naquele
pequeno passo que o ego deu. E só podemos observar a psique olhando para esse
mundo de deuses, ou entrando na linguagem de um deles. De todo modo, a
psicologia arquetípica é muito mais complexa e profunda do que isso e seria um
trabalho impossível traduzir a obra de Hillman em alguns parágrafos, além do
mais, de tentar uma explicação sobre a fenomenologia da alma de forma analítica
e racional.
Acontece
que durante minha relação ambivalente com Hillman, fui levada de maneira que
meu mundo anímico me mostrou o caminho para que meu ego desse os passos, no
grupo de estudos “Teorias da arte e Arteterapia” onde fui apresentada a um
outro estudioso, cujo o encontro foi numinoso. Esse estudioso levantava as
mesmas ideias de Hillman (claro que com poucas divergências, mas
inacreditavelmente poucas), só que ao invés de ser no campo da psicologia ele
era do campo da arte. Aí já podemos tirar algumas conclusões. Se Hillman nos
apresenta a experiência da alma no mundo, nada como o campo da arte para falar
sobre ela e, a partir disso, vemos o quanto a ciência da psicologia, com nossas
teorias racionalistas e personalistas, não estavam dando conta sobre a alma. A
arte revela a psique e a psique se expressa através da arte.
Wassily
Kandinsky foi um artista renomado e professor em Bauhaus. Através de suas
experiências e reflexões, foi um dos nomes que participou na reformulação da
trajetória da arte, ajudando na formação da arte abstrata e no movimento da
arte moderna. De maneira semelhante a Hillman, Kandinsky, questionava os
caminhos por onde a arte foi se encaminhando. A arte naquela época (até o início
do século XX) também estava num campo gasto e contaminado, ele a chamava de
“arte pela arte”. Foi em sua obra “Do Espiritual na Arte” que Kandinsky se
aprofundou na alma da arte.
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE INTERIOR E CULTIVO A
ALMA (SOUL MAKING):
"Amarelo-Vermelho-Azul" Kandinsky
O
princípio da necessidade interior é a premissa do livro “Do espiritual a arte.”
Kandinsky, adentrando à arte abstrata, enfatiza o universo das cores e das
formas e afirma a existência de um universo interior em cada cor, forma e todas
as combinações possíveis e infinitas entre esses elementos. Diz Kandinsky:
“(...)toda a coisa exterior também encerra,
necessariamente, um elemento interior (que aparece, segundo os casos, mais
fraca ou mais fortemente). Portanto, cada forma também possui um conteúdo
interior. A forma é a manifestação exterior desse conteúdo. Tal é a
definição do seu caráter interior. (...) Esse princípio recebeu o nome de Princípio
da Necessidade Interior.” (p. 76)
Para
ele tais elementos exercem uma influência direta sobre a alma. E o artista que
conseguir sentir a vibração desta, na realização de sua obra, está seguindo o
princípio da necessidade interior. Uma arte que não siga esse princípio, ou
seja, que fica preso apenas ao material (superficial) é uma arte degradada para
Kandinsky.
Tal
movimento fica mais evidente na arte abstrata (não que a arte figurativa não
exerça o princípio), mas esta arte traz à tona os elementos que ecoam no
interior do artista e desse interior é extraído determinada forma e determinada
cor, sem que se encaixe em uma figura específica. Aparenta não ter valor algum,
mas “A aparente pobreza converte-se em enriquecimento interior.” (p.77)
Quando Kandinsky descreve o princípio da
necessidade interior, pode-se traçar um paralelo com o que Hillman chamou de
cultivo de alma. A alma para este
não é uma substância, mas sim uma perspectiva; uma perspectiva de
aprofundamento e reflexão, diz Hillman “(...) para estudar a alma devemos ir
fundo, e quando vamos fundo estamos envolvidos com a alma.” (2013, p. 49).
O
ir fundo tem suas particularidades e não conseguimos atingir essa profundidade
com nossa perspectiva diurna, que literaliza e analisa a experiência. A literalização é um dos caminhos que nos
tira da perspectiva da alma. Essa dinâmica corresponde naquilo que deparamos
quando as pessoas vão ao museu e simplesmente ou superficialmente passam o olho
nas telas, achando-as bonitas ou feias, porém sem ser tocadas pela obra, ou
seja, sem tocar a alma. A falta do princípio da necessidade interior, assim
como o cultivo da alma, torna a ida a um museu algo enfadonho ou que só tem a
função de ser um lugar turístico da cidade visitada. Nas palavras de Kandinsky:
“(...)num catálogo: nomes dos artistas, títulos
dos quadros. As pessoas, catálogos em punho, vão de uma tela a outra;
folheiam-no e leem os nomes. Depois tornam a sair, tão ricas ou tão pobres
quanto estavam a entrar, e imediatamente se deixam reabsorver por suas
preocupações, que nada têm a ver com a arte. O que elas vieram fazer aqui? Cada
quadro encerra misteriosamente toda uma vida com seus sofrimentos, suas
dúvidas, suas horas de entusiasmo e da luz.” (KANDINSKY, 2015, p. 30)
No
entanto isso se estende a todo evento. Diante desses eventos da vida, podemos
nos limitar a ficar no que só é aparente (no material como disse Kandinsky),
julgando os aspectos como bonito ou feio, adequado ou inadequado, certo e
errado, preso, portanto, em um oposicionalismo que é limitante. (Hillman,
2013). A alma é muito mais, “... por “alma” refiro-me à possibilidade
imaginativa em nossa natureza, o experimentar através da especulação reflexiva,
do sonho, da imagem e da fantasia - aquele modo que reconhece todas as
realidades como primariamente simbólicas ou metafóricas.” (HILLMAN, 2010, p.
28) Portanto, podemos considerar cada evento como um quadro que encerra
misteriosamente toda uma vida psíquica, de sofrimentos, dúvidas, morte, luz,
sombra, riqueza, etc... Essa é a pluralidade.
Trabalho arteterapêutico
Essa
percepção é fundamental na clínica da psicologia profunda, assim como todas as
terapias que trabalham com o ser psíquico, pois quer dizer que se trabalha com
a alma. Observar um sintoma, uma fala, um ato falho, um conflito ou um sonho, é
observar, em primeiro plano, algo que tem uma aparência. Porém, enxergar o
conteúdo interior dessas questões, no sentido de realidade simbólica e
metafórica é enxergar além da aparência e ver a essência, a alma. É o que
Hillman afirma de ‘ver através’, e é assim que se vê o psíquico.
Diz
Jung: “A alma é um território em si, com leis que lhe são próprias.” (2007, §
22) E é nessa terra de leis próprias que reside nossa psique. Tentamos
explicá-la e compreendê-la, mas sempre ficamos com a impressão de não conseguir
atingi-la. A lei da consciência que propõe a explicação e a compreensão não é a
mesma lei da alma. É dessa forma que experimentamos esse território, ou
experienciamos a alma como perspectiva, de forma imaginativa e metafórica, ou,
como fala Kandinsky, através das cores e da forma.
Finalizo
com a similaridade dos dois autores em duas citações sobre a arte:
Diz
Kandinsky: “Todos esses artistas procuram na forma exterior, o conteúdo
interior.” (p. 53) Diz Hillman “Uma
imagem na poesia e todo o processo imaginativo na música, claro, precisam ser
ouvidos com o ouvido, mas são ouvidos por um terceiro ouvido, um ouvido
interno.” (p. 93)
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2010.
______________. O sonho e
o mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
JUNG, Carl. Gustav. A
prática da psicoterapia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
KANDINSKY, Wassily. Do
espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
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Sobre a autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.
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