"Pietá" Michelangelo
Eliana
Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
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No
percurso da formação de minha identidade profissional me deparei com a questão
sobre o que me diferenciava de uma psicóloga que se utiliza de técnicas
expressivas e uma arteterapeuta propriamente dita. Uma das respostas que
encontrei e me constituiu se dá no manejo dos materiais pelo arteterapeuta.
Tenho
pensado no arteterapeuta como um “promotor de encontros” entre o sujeito que
fala e um material que será facilitador de seu discurso, da elaboração de
conteúdos psíquicos e de retificações subjetivas a partir do ato criativo.
Neste sentido faz-se estrutural que o arteterapeuta se dedique a conhecer e se
aprofundar cada vez mais na riqueza e pluralidade de materiais possíveis a
serem aplicados no setting terapêutico.
O
arteterapeuta deve trabalhar com metáforas. Investir em apresentar para seu
paciente/cliente a analogia entre a questão trazida por ele e aquele material.
Sem o devido investimento na construção deste simbolismo o paciente pode não
compreender e não investir de si naquela criação, tornando o processo sem
sentido e inócuo. A delicadeza e destreza da construção das metáforas e
analogias entre as questões subjetivas e os materiais expressivos tem sido um
dos pontos mais trabalhados em supervisões que ofereço para arteterapeutas em
construção.
No
texto de hoje trago a reflexão sobre o processo criativo que refere-se ao ato
de retirar aquilo que não é, retirar o excessos, o que pesa e faz perder a
forma essencial: o esculpir.
Sobre a escultura
A escultura se faz por imagens plásticas em relevo
total ou parcial. É considerada a 4ª das artes clássicas. Através
da maior parte da história, permaneceram as obras dos artistas que
utilizaram-se dos materiais mais perenes e duráveis possíveis como a pedra - mármore,
pedra calcária, granito - ou metais - bronze, ouro, prata. Usavam-se ainda
materiais de origem orgânica como argila, terracota, ou materiais mais nobres
como madeira, marfim ou âmbar. Mas de um modo geral, pode-se esculpir em quase
tudo que consiga manter por pelo menos algumas horas a forma idealizada,
utilizando materiais como manteiga, gelo, cera, gesso, areia molhada..
A escolha de
um material normalmente implica a técnica a se utilizar. A
cinzelação, quando de um bloco de material se retira o que excede a
figura utilizando ferramentas de corte próprias. Já a modelagem, quando
se agrega material plástico até conseguir o efeito desejado e a fundição, quando se verte metal quente
em um molde feito com outros materiais.
Nas práticas da Arteterapia, a
modelagem é amplamente usada, mas hoje o processo protagonista é a cinzelação. Em
seu texto “Sobre a psicoterapia” Freud nos lembra as palavras do grande artista
Leonardo da Vinci:
“A pintura, diz Leonardo,
trabalha per via di pore, pois
deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali;
já a escultura, ao contrário, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a
superfície da estátua nela contida.” (FREUD,1905 [1904])
E esta metáfora se mostra riquíssima
ao arteterapeuta.
A escultura na prática da Arteterapia
“Como faço uma escultura?
Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário.”
Michelangelo
Freud
dizia que ao longo da vida, em seu processo natural de constituição, o sujeito
vai adquirindo e acoplando em si algumas orientações e diretrizes referentes à
educação, referências culturais, familiares, códigos de civilização... Mas
chega um determinado momento em que o sujeito se estranha, acha-se pesado e sem
forma, em angústia. Intuitivamente ao buscar um processo analítico percebe que
perdeu sua forma original e todo um trabalho de “retirar” se dá ao longo do
tratamento.
Naturalmente
este é um processo penoso pois, cada uma destas referências faz parte da
história do sujeito e sua constituição. Porém, agora pesam, e demanda alguma
quantidade de força para retirar tudo aquilo que não é mais necessário, ou
então que não é mais do sujeito. Esta força precisa ser bem dosada, pois se
demasiadamente fraca, não terá o efeito desejado. Se muito forte, pode machucar
o sujeito ou até mesmo ser retirada alguma parte que sim lhe pertence.
Freud
defende que o processo de análise é análogo ao processo da escultura. E aqui
faz uma distinção entre os métodos terapêuticos que trabalham com a sugestão
(análoga à pintura) e o método psicanalítico:
“De maneira muito semelhante, senhores, a técnica da
sugestão busca operar per via di pore; não
se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas
antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o bastante para
impedir a expressão da ideia patogênica. A terapia analítica, em contrapartida,
não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer
algo para fora...” (FREUD,1905 [1904])
Um
processo de esculpir. Retirar tudo que aquilo que se encontra na superfície da
forma estrutural nela contida. Este é um processo vivido no setting terapêutico
que pode ser objetivado com um material simples: o sabonete.
A
prática nos mostra que muitas vezes o paciente/cliente inicia este processo de
retirada ainda inseguro, sem saber que forma buscar, mas este é exatamente o
sentimento de quem se perdeu da forma essencial e deseja reencontrá-la. E este
reencontro só é possível quando há a disponibilidade do processo contínuo de
retirar, ainda que sem saber aonde este caminho dará.
O
reencontro da forma ali contida e escondida se dá de forma singular. Cada
imagem ou símbolo encontrado é único, remetendo-nos ao reencontro da verdade de
cada sujeito, sua singularidade.
Mas
neste trabalho também emerge uma segunda questão: o que fazer com os restos, com
tudo aquilo que foi retirado? No processo terapêutico esta reflexão se faz
muito simbólica pois há um convite a se nomear tudo aquilo que fez parte da
construção do sujeito e agora ele retira. Há uma grande tomada de consciência e
decisão sobre quais conteúdos devem efetivamente serem jogados no lixo ou quais
conteúdos não podem ser simplesmente descartados mas necessitam ser
transformados para que não pesem da mesma forma.
Este
processo tem se demonstrado profundamente tocante para aqueles que os
experienciam, pois convoca a responsabilização de cada sujeito, para que ele se
perceba e tome uma nova postura em relação àquilo que ele é e àquilo que lhe
causa sofrimento.
Referência
Bibliográfica:
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI
Acho essa questão essencial na dinâmica da arteterapia. No meu entender, que dialoga com meu modelo de praticar a Arteterapia, a via de pore e a de retirare são igualmente parte do processo. Pore não no sentido freudiano de sugestão, mas do modo como o proprio sujeito se constrói, em sua singularidade, na relação com o material a cada instante. A pintura pode "retirar" sentidos ocultos tanto quanto a escultura. Embora a primeira proceda preferencialmente por via dia pore (mas alguns operam também via retirare nesse processo) e a escultura, à priori (mas nem sempre exclusivamente) por retirare.
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