Beatriz Milhazes
Por Eliana Moraes (MG) RJ
Instagram @naopalavra
“... Então, por favor,
É melhor não mexer nessa dor!
Parece descaso mas é um estrago
passar essa tarde mexendo no horror.
Parece loucura mas é uma tortura
matar essa tarde lembrando o terror.
É melhor não mexer com essa dor!
Com o dia rolando assim lindo e calado,
com as notas musicais de um teclado,
em meio à cidade do ofício e do riso,
do afeto e do lixo, não acho difícil
a gente pescar – a beleza
a gente sacar – a beleza
a gente firmar – a beleza
a gente espiar – a beleza
a gente se amar – na beleza,
pra gente gozar.
Então, por favor,
é melhor não mexer com essa dor!
Parece mentira mas dá ziquizira
roer esta tarde com ódio e bolor.
Parece bobagem mas é sacanagem
perder esta tarde brindando o rancor.
É melhor não mexer com essa dor,
que a tarde é linda, que a tarde é boa
e, antes que seja tarde, boa tarde, amor!”
Em “Boa tarde, amor”
Iniciei o período sabático vivido na passagem
de 2018 para 2019 buscando um esvaziamento. Após um ano de muita atividade,
faz-se necessário um desacelerar e silenciamento. Silêncio. Este é essencial
como pausa, mas também como abertura de espaço para o novo.
Em silêncio tentei ouvir o que o novo ciclo
teria a me dizer e são em momentos como estes que as (memórias das) sincronicidades
começam a aparecer. Lembrei-me que ao longo do ano, recorrentemente me
impactavam algumas publicações do professor Marcos Quintaes que trazia como
legenda “Só a beleza nos salvará”.
Lembrei-me também que estudar sobre o conceito de Estética para a arte me tocou
sobre aquilo que não é da ordem da futilidade, mas da experiência do Belo. No
segundo semestre, me dediquei ao estudo sobre a artista brasileira Beatriz
Milhazes, tida por alguns críticos como “um oásis do Belo na arte
contemporânea”. Por fim, absolutamente não por acaso, no meu aniversário fui
presenteada por uma pessoa tão querida, com o livro “A fúria da Beleza” de
Elisa Lucinda (suas poesias ilustram este texto) e assim compreendi: meu
coração está na busca pelo Belo.
Hoje retomo um fragmento de meu primeiro
texto de 2018 ao qual percebo que nele permaneço:
“Há algum tempo tenho
investido na percepção dos fenômenos sociais da atualidade e estimulado
arteterapeutas que me cercam para que exercitem seu olhar para os movimentos
coletivos de seu tempo e do seu campo de influência, e assim orientem seu
trabalho e propostas em Arteterapia. Emprestar seu corpo, sensações e intuições
para a captação e tradução para a esfera objetiva os movimentos da humanidade,
compõe a função do artista ao longo da história. Conscientizando-se desta
função, podem os arteterapeutas imbuídos desta sensibilidade, orientar suas
práticas arteterapêuticas, em propostas estruturadas ou semi-estruturadas, para
não oferecerem temáticas a partir de seus próprios desejos, mas oferecer os
materiais e linguagens expressivas que as pessoas estão tão carentes e
nos pedem intuitivamente.” (MORAES, 2018)
Este caminho de desenvolvimento da
sensibilidade artística é absolutamente íntimo e pessoal. E aqui reforço meu incentivo
para que cada arteterapeuta participe deste esvaziamento de si e (se) ouça como
pode exercer seu ofício, oferecendo os materiais e estímulos que o social nos
pede. Neste texto compartilho minha experiência pessoal, que não é “a verdade”
ou “a solução”, mas a minha contribuição: a experiência do Belo.
A beleza como
resistência
“Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter a consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa, um golpe.
Um bote que nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho...
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!...
Acontece as vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real...
Penso, as vezes que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é dessa flechada de luz
que nasce o acontecimento poético...
Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!”
Em “A fúria da Beleza”
Não há dúvidas, temos um ano bastante desafiador pela frente. Como
terapeutas, somos convocados a atuar junto à indivíduos afogados em suas dores
pessoais e coletivas. Como arteterapeutas, somos portadores de instrumentos
expressivos, organizadores, orientadores e criativos através da arte. É
necessário resistência, firmeza, tônus, atitude. Foi neste sentido que o título
do livro de Elisa me capturou: “a fúria da Beleza”, com a força tal qual uma
“porrada”.
Beleza, reencontrei-me com esta palavra, tão desgastada e desconfigurada
pelo senso comum – assim como a palavra “estética” para o campo da arte – como
algo exterior, fútil, banal ou vulgar.
No campo da filosofia, o termo estética se refere à uma dimensão da experiência e da ação humana, que possibilita
caracterizar algo como belo, agradável, sublime, grandioso, alegre, gracioso,
poético, ou então como feio, desagradável, inferior, desgracioso, trágico. Num
sentido psicológico, refere-se às experiências e aos comportamentos emocionais
que as coisas belas provocam nas pessoas, como sensação de enlevo,
sensibilidade, afetividade, profundidade, “eternidade”.
Neste sentido, as vivências arteterapêuticas são grandes promotoras de
experiências com a beleza. Através delas proporcionamos aquilo que é sensível,
sublime, poético, profundas emoções e sensação de enlevo – que penso eu, hoje
tão escassos em solo brasileiro. Quando repetimos o bordão “em Arteterapia a
estética não é importante”, estamos usando esta palavra em um sentido comum.
Como arteterapeuta, gosto de trabalhar com a perspectiva de Kandinsky, que fala
do “Belo Interior” e é com este conceito que oriento meu paciente sobre a
estética em Arteterapia.
No livro “A arte como terapia” os autores abordam o receio recorrente
quanto àqueles que buscam o “gracioso” na arte, como se significasse uma falta
de envolvimento com a complexidade e os problemas sociais. Mais ainda, o medo
de que o gracioso nos deixe entorpecidos e fiquemos pouco críticos e atentos às
injustiças à nossa volta. Porém, defendem:
“A
preocupação é que a gente se sinta alegre e contente com excessiva facilidade,
com uma visão francamente otimista da vida e do mundo. Em suma, que nos
sintamos esperançosos sem justificativa.
No
entanto... longe de termos uma visão cor-de-rosa e sentimental demais, durante
a maior parte do tempo sofremos de excesso de melancolia. Temos grande
consciência dos problemas e das injustiças do mundo – só que nos sentimos muito
fracos e pequenos diante deles.
A alegria
é uma grande proeza, e a esperança merece celebração... Os problemas atuais,
raramente são criados por gente com uma visão muito cor-de-rosa das coisas; os
problemas do mundo nos são apresentados com tanta frequência que precisamos de
instrumentos para preservar o ânimo.” (BOTTON & ARMSTRONG 13-16)
No romance “O idiota” de Dostoiévski, o protagonista, moço tomado como
um bobo, afirma que “somente a beleza
salvará o mundo”. Sendo tolice ou não, minha oração em 2019 também vem em
forma de poesia:
“Deus salve as belezas corajosas!
Elas esparramam a atitude e
no seu jeito explícito
o seu Van Gogh.
Estilhaçam as pinceladas a tela da vida,
pintam ousadas, como um Dalí enlouquecido,
seu teor, seu clamor, seu alarido.
Deus salve as belezas corajosas
e proteja o coração de seus vencidos.”
Em “Reza forte”
Referências
Bibliográficas:
BOTTON, Alain de &
ARMSTRONG, John. Arte como terapia. Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014.
LUCINDA, Elisa. A fúria da Beleza. Editora
Afiliada, Rio de Janeiro, 2006.
MORAES, Eliana. Para 2018, olhos de sementes:
diálogos com a argila. Blog Não Palavra, 2017
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI
Eliana, adorei a forma delicada e ao mesmo tempo realista que você usou para abordar o tema. Você nos lembrou que beleza é muito mais que aparência, fato que costumamos esquecer em nossa rotina corrida e, em muitas circunstâncias, superficial. Obrigada pela oportunidade de reflexão. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada Rita!
ExcluirVocê está neste texto junto comigo! Um beijo!
Eliana, a delicadeza das ideias de seu trabalho na Artetertapia e de seu interior conjugam , realmente, com as palavras vindas de Elisa em seu livro "A Fúria da Beleza" e a beleza das obras de Beatriz Milhazes , de quem tanto admiro e trabalho na escola com crianças. Parabéns, pois somente uma pessoa bela interiormente, como você, promoveria um encontro, para " uma pausa, mas também como abertura de espaço para o novo." Bjs.
ResponderExcluirLucia querida!
ResponderExcluirMuito Obrigada pelas suas palavras!
Elas me motivam a continuar!
Um beijo!
Comentário enviado por Tania Salete:
ResponderExcluir"Uauuu!!! Que beleza de texto! Que força propulsora com a delicadeza das palavras, da poesia. Que não nos faltem instrumentos de expressividade para oferecer, para fazer uso pessoal de cada um e sobretudo, que nossos olhos contemplem as diversas formas de belezas ao redor. Que a nossa beleza interior resplandeça a "fúria" necessária! Parabéns!"