segunda-feira, 27 de maio de 2019

A ARTETERAPIA NO ATENDIMENTO DE PACIENTE COM GAGUEIRA GRAVE

Desenho Automático, 1925 por André Aimé René Masson (1896-1987, France)

Por Sueli Antonusso - SP 
antonusso@gmail.com

De Botton (1969), filosofo e escritor suíço, refere-se a Arte, 
Como outros instrumentos, a arte tem o poder de ampliar nossas capacidades para além dos limites originalmente impostos pela natureza. A arte compensa algumas de nossas fraquezas inatas, nesse caso mais mentais do que físicas, fraquezas que podemos chamar de fragilidades psicológicas. (p. 5).
Entre a primeira e a segunda Guerras Mundiais surgiu o movimento artístico e literário surrealista que reuniu artistas de vanguarda e ganhou dimensão mundial. O surrealismo destacava o papel do inconsciente na atividade criativa influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856 – 1939). Alguns dos objetivos do surrealismo era produzir uma arte autônoma, livre do pensamento lógico e da consciência cotidiana buscando expressar o mundo inconsciente e os sonhos. 
Ainda que o reconhecimento da utilização das artes com fim terapêutico tenha surgido há bastante tempo, a estruturação de estratégias terapêuticas que deram origem a Arteterapia são mais recentes. O protocolo mais recente de atividades próximas a Arteterapia foi feito pelo médico alemão Johann Christian Reil, contemporâneo de Pinel, no início do século XIX. (SEI, 2011, p. 23). 
A Arteterapia propõe atividades artístico-expressivas com objetivo terapêutico. Materiais e recursos provenientes das Artes em geral são utilizados para realização de produções que ocorrem durante o processo terapêutico com a finalidade de atender a necessidade expressiva de cada indivíduo na busca de significado e sentido para a própria vida. 

No Brasil o exercício da Arteterapia fundamenta-se, de maneira mais frequente, em dois referenciais teóricos: a Gestalt-terapia e a psicoterapia Junguiana, enquanto que nos EUA e alguns países da Europa a psicanálise configura-se como estrutura na qual baseia-se o setting arteterapeutico. 
Para Freud (1909), médico e psicanalista alemão, a criatividade emana do inconsciente, de forma livre. Relacionou as imagens e sensações dos sonhos às lembranças de um passado reprimido e retido no inconsciente. Seus conceitos sobre arte foram extraídos do teatro grego, dos contos fantásticos alemães, de Shakespeare, entre outros artistas.
Contudo, Jung (1920), psiquiatra e analista suíço, empregava recursos da arte como elemento do tratamento. Solicitava que seus pacientes desenhassem seus sonhos e conflitos como atividade criativa e integradora da personalidade no qual atribuía significados simbólicos considerando o inconsciente pessoal e coletivo.
Em meu trabalho como arteterapeuta e psicanalista faço uma mescla entre a teoria psicanalítica e junguiana nos atendimentos em Arteterapia. 
Ao realizar encontros com grupos proponho atividades mais estruturadas. Utilizo recursos como filosofia, visualizações criativas, Rodas de Conversa, Arte Moderna, poesias, contos e mitologia para sensibilizar e estimular a expressividade de conteúdos inconscientes favorecendo, assim, o autoconhecimento e a ampliação do potencial criativo, a partir de um plano de ação pré-definido. 
Já, nos atendimentos individuais, o processo criativo é deixado mais solto e espontâneo, seguindo a proposta de Winnicott (2005 [1964 – 1968]), pediatra e psicanalista inglês, para as primeiras entrevistas por favorecer a confiança na relação no início do processo.
De acordo com Winnicott (2005 [1964 – 1968]), o paciente necessita de 
um setting estritamente profissional, no qual fique livre para explorar a oportunidade excepcional que a consulta proporciona para a comunicação. A comunicação do paciente com o psiquiatra referir-se-á às tendências específicas que têm forma atual e raízes que remontam ao passado ou se entranham profundamente na estrutura da personalidade do paciente e de sua realidade interior pessoal. (p. 230). 
Winnicott (2005[1964 – 1968]) criou o Jogo do Rabisco com a finalidade de oferecer ao paciente um setting profissional preparado para acolher seus sentimentos e emoções, uma forma de sustentação [holding] capaz de surpreender, facilitar a comunicação e a expressividade.
Utilizo o Jogo do Rabisco, desenvolvido por Winnicott, na primeira entrevista. Para ilustrar, trago um recorte do atendimento de A, adolescente de 17 anos que foi encaminhado com diagnóstico de gagueira grave e lggm restrita e pensamento concreto, segundo teste psicológico. 
Na primeira entrevista A mal conseguia pronunciar seu nome. Percebi que seria difícil manter um dialogo por meio da palavra. Propus o Jogo do Rabisco no qual fiz uma adaptação. Utilizei uma folha de papel sulfite, em branco, no formato A4. Com um lápis grafite fiz um rabisco na folha e sugeri que A desse continuidade fazendo outro rabisco com seu lápis e, assim, seguimos até que a folha estivesse preenchida. Em seguida pedi que A colorisse os rabiscos até encontrar alguma forma que tivesse algum significado e, assim, surgiu a imagem de um pinguim. 


Li para A, usando a internet, sobre a vida dos pinguins. A mostrou-se interessado pelo fato de os pinguins serem pássaros que não podem voar, metaforicamente traz a ideia de que é um “ser” não convencional. Talvez, A tenha se identificado por ser negro, gago, diferente da maioria, “não convencional”. Além disso, tem a questão da submissão ao que é imposto socialmente, ao que é comum, “convencional”.  A, adolescente e “diferente” sinalizou que uma das suas questões poderia estar relacionada a ter que “submeter-se” às convenções, mesmo sendo “diferente” da maioria.
Os pinguins são seres sociais e comunicativos e A, apesar do largo sorriso simpático, apresentava muita dificuldade para se comunicar por causa da gagueira. Por serem sociáveis, os pinguins partilham a sobrevivência com o grupo. A, por sua condição, comentou sentir-se socialmente isolado.
A demonstrou ter gostado bastante de saber sobre a vida dos pinguins. Seja por identificação ou pelo estranhamento, A conseguiu contar-me algumas questões que lhe causavam muito sofrimento. 
Desde os cinco anos de idade, toda vez que o pai chegava em casa embriagado batia nele com um pedaço de pau, sem motivo. Atualmente, por ter crescido e estar mais forte passou a revidar as surras. Disse sentir muito ódio do pai. 
Falou sobre o bullying sofrido na escola por ser - “não convencional”, como os pinguins. Como os pinguins, gostaria de conviver socialmente, de ser aceito sem precisar passar por tanto preconceito. 
Assim que A terminou pontuei que talvez o desenho do pinguim tenha “facilitado” sua fala. Ele conseguiu, através do desenho, reconstruir uma pequena parte da sua história e contado um pouco sobre sua vida, fazendo uma pequena “pausa” em sua gagueira. Ele sorriu e concordou balançando a cabeça. 
Às vezes, a comunicação através da linguagem ou da palavra é bloqueada por ser angustiante. Quando a angústia provém de fases mais “arcaicas”, isto é pré-verbal, ou através do trauma o indivíduo sente de forma mais intensa pelo fato de não ter constituído recursos internos para lidar com sofrimentos profundos. Nesses casos, os recursos expressivos da Arte constituem canais criativos que facilitam a comunicação dessas experiencias de intenso sofrimento. 
Para Winnicott (2005 [1964 – 1968]), cabe ao terapeuta proporcionar, ao paciente, um relacionamento natural e humano, um vínculo capaz de tornar possível a integração da personalidade através do que chamou de Holding. O Holding consiste numa forma de “sustentação”, de disposição empática e afetiva para perceber e atender às necessidades do paciente. 
Nesse sentido, a Arte pode configurar-se como um meio no qual, somado ao Holding fornecido pelo setting arteterapeutico “pode colaborar para a emergência do gesto criativo e espontâneo do paciente, com a vivencia de ser alguém singular e único a partir da própria espontaneidade.” (SEI, 2001, p. 41). 
Dessa forma, acredito que podemos pensar a Arteterapia como um espaço continente e seguro, conduzido pelo arteterapeuta profissional que auxilia e facilita a comunicação de questões profundas da personalidade e possibilita a expressão criativa de forma livre e prazerosa, como num jogo ou numa brincadeira.

REFERENCIAS:

De Botton, A. e Armstrong J. Arte como terapia; tradução Denise Bottmann. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
Sei, M.B. Arteterapia e psicanálise – São Paulo: Zadodoni, 2011.
Winnicott, C. Explorações Psicanalíticas: D.W. Winnicott, Ray Shepherd & Madeleine Davis; Trad.: José Octávio de Aguiar Abreu – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. 
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Sobre a autora: Sueli Antonusso 

Arteterapeuta, com registro na AATESP – 453/0618. Especialista em Psicanálise e Orientação Profissional e Carreira pelo Instituto Sedes Sapientiae. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela PUC-SP. Idealizadora do projeto “CICLOS – que idade a idade tem?”. Atua com atendimento clínico à jovens, adultos, idosos e grupos, com o foco voltado para a ressignificação da história de vida e o acolhimento de demandas em fase de finalização e/ou início de Ciclos, como: início da idade adulta, maturidade, transição de carreira e tantas outras que fazem parte dos Ciclos de Transição. Coordenação de oficinas de Formação e Capacitação para educadores da rede pública. Realiza palestras e cursos destinados ao desenvolvimento pessoal e realização do potencial criativo com o objetivo de incentivar a exploração do novo e encorajar a autonomia.


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